A dramaturgia de Fernando Arrabal
Fernando Arrabal é, sem sombra de dúvida, um dos nomes mais inquietantes e singulares da dramaturgia do século XX. Espanhol de nascimento, francês por naturalização e cidadão do mundo por inclinação, Arrabal construiu uma obra que escapa às definições fáceis, dançando entre o absurdo, a crítica social, o delírio poético e a experimentação radical. Nascido em Melilla, enclave espanhol no norte da África, em 1932, sua biografia é marcada desde cedo por tensões políticas e familiares que ecoariam em quase toda a sua produção artística — seu pai, oficial republicano, foi preso e desapareceu durante a ditadura franquista, um trauma pessoal que moldou profundamente sua visão de mundo.
Autor de peças, romances, ensaios, filmes e até partidas de xadrez comentadas com fervor, Arrabal faz parte do que se convencionou chamar de “teatro do pânico”, movimento fundado ao lado de Roland Topor e Alejandro Jodorowsky nos anos 1960. Inspirado no deus grego Pã e seus arroubos de terror e êxtase, o pânico, para Arrabal, não é desespero gratuito, mas uma tentativa de romper com as estruturas lógicas, morais e formais herdadas do teatro tradicional — sobretudo o francês. Sua obra, muitas vezes tida como escandalosa ou incompreensível por certos críticos, na verdade, propõe uma nova gramática da cena, em que o grotesco e o lírico convivem com naturalidade, e o espectador é convocado a abandonar o conforto passivo da poltrona.
“Fernando Arrabal não é apenas um dramaturgo; é um acontecimento. Sua dramaturgia não serve para entreter, mas para desinstalar — um verbo raro e precioso nas artes cênicas contemporâneas.”
Um dos aspectos mais relevantes da dramaturgia de Arrabal é sua capacidade de mesclar o trágico e o cômico com uma destreza que beira o surreal. Peças como O Arquiteto e o Imperador da Assíria (1967) ou Fando e Lis (1955), talvez a sua mais conhecida, não se contentam em narrar histórias; elas expõem estados emocionais, traumas coletivos e absurdos existenciais com uma crueldade poética. Em Fando e Lis, por exemplo, acompanhamos um casal em busca de uma cidade mítica chamada Tar, em um percurso de degradação física e psicológica que lembra tanto Beckett quanto Antonin Artaud. A peça foi censurada em sua estreia na Espanha franquista — uma prova, talvez, de que tocava nervos ainda expostos da memória coletiva.
O teatro de Arrabal é frequentemente associado ao do absurdo, mas essa comparação deve ser feita com cautela. Embora compartilhe com Beckett ou Ionesco o gosto pela ilogicidade e pela crítica ao vazio existencial, Arrabal vai além: seu teatro é também profundamente político, mesmo quando recorre a metáforas ou símbolos. O Cemitério dos Automóveis, por exemplo, é uma parábola distópica em que o automóvel se torna símbolo da civilização decadente e da violência institucionalizada. Suas peças não pedem clemência: exigem do espectador uma tomada de posição, ainda que no terreno instável da alegoria.
Entre o grotesco e o sagrado
Outra marca de sua dramaturgia é o elemento religioso — ou melhor, antirreligioso. Arrabal não esconde sua ojeriza à hipocrisia das instituições religiosas, mas tampouco renega o fascínio pelo sagrado, entendido como experiência limite. Muitas vezes, seus personagens transbordam de referências bíblicas ou litúrgicas que são desconstruídas ao ponto da blasfêmia, não por irreverência gratuita, mas como forma de expor o sofrimento humano travestido de dogma. O efeito, muitas vezes desconcertante, é de uma espiritualidade ferida, que ressurge em meio aos escombros do teatro burguês.
Não menos importante é sua relação com o corpo. O corpo, para Arrabal, é palco e personagem. Ele sangra, urina, grita, dança, se contorce — é veículo de expressão e de transgressão. Não por acaso, suas encenações e seus filmes (como Viva la Muerte!) causaram escândalo: o corpo não mente, e em Arrabal ele se transforma em território de resistência, tanto simbólica quanto estética. O erotismo, a dor, a exposição — tudo isso é matéria dramatúrgica. Em um tempo de assepsia e autocensura, sua obra permanece uma bofetada de carne viva.

No entanto, a força de Arrabal está também em sua coerência interna. Por mais caóticas ou perturbadoras que pareçam suas peças, elas obedecem a uma lógica própria — a lógica do delírio lúcido, da imaginação indisciplinada e do inconformismo radical. Mesmo aos 92 anos, continua ativo, escrevendo e participando de debates culturais com o mesmo espírito inquieto que o tornou uma figura de culto na Europa. Em tempos de teatro domesticado e ideias pasteurizadas, sua obra é um lembrete valioso: o palco ainda pode ser trincheira, espelho quebrado, altar profano.
Fernando Arrabal não é apenas um dramaturgo; é um acontecimento. Sua dramaturgia não serve para entreter, mas para desinstalar — um verbo raro e precioso nas artes cênicas contemporâneas. Quem o lê ou o assiste não sai ileso. E talvez seja exatamente esse o seu maior mérito.
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