A entrevista exclusiva do portal Panorama Mercantil com a ex-secretária de Educação do Estado de São Paulo, Rose Neubauer, é um mergulho fascinante na revolução educacional que ocorreu durante seu mandato. No período em que liderou a Secretaria Estadual de Educação, durante o governo de Mário Covas, Rose Neubauer enfrentou desafios significativos em um momento de mudanças globais, marcado pelo início da globalização e da revolução tecnológica. Ela se deparou com um sistema educacional estagnado, com altos índices de evasão escolar, repetência e baixa qualidade, e a necessidade urgente de implementar políticas públicas eficazes. A entrevista destaca três eixos fundamentais que sustentaram essa revolução educacional: racionalização organizacional, modernização e melhoria da qualidade. Esses pilares foram a base para a transformação de um sistema educacional gigantesco, com milhões de alunos, milhares de escolas e centenas de milhares de professores e funcionários. Os resultados dessa reforma são impressionantes: a taxa de reprovação e o abandono escolar no Ensino Fundamental caíram significativamente, tornando SP líder na redução da distorção idade/série em todo o país. Rose Neubauer ressalta a importância da descentralização/municipalização. É autora de “Sem medo de mudanças: Política educacional paulista – 1995-2002”.
Rose, quais obstáculos específicos você enfrentou ao liderar a revolução educacional em São Paulo durante o seu tempo como secretária estadual de Educação?
Ao assumir a Secretaria Estadual da Educação em 1995, sabíamos que enfrentaríamos vários desafios. Era uma Secretaria que possuía uma máquina gigantesca, altamente centralizada, com muito pouco poder na ponta, com grande inércia burocrática e, por isso, resistente a mudanças. Para se ter uma ideia, na época, a Secretaria tinha 6 milhões de alunos, 300 mil funcionários entre professores, administrativos e operacionais. Sabíamos que precisaríamos realizar várias mudanças para obtermos resultados significativos.
Qual foi a abordagem adotada para lidar com a inércia burocrática e o corporativismo que resistiam às mudanças no sistema educacional paulista?
A abordagem a ser adotada começou, em 1994, durante a campanha do governador Mário Covas. O grupo de educadores que trabalhou na proposta de educação e que me acompanhou para a Secretaria, tinha grande experiência de pesquisa, observação e estudos em educação. Eu havia coordenado, entre 1992 e 1994, com parte e desse grupo, uma pesquisa sobre os principais projetos da Secretaria da Educação durante três anos, e havíamos detectado problemas e distorções que teriam que ser enfrentados e corrigidos. As propostas de mudanças já estariam presentes no programa da Campanha de Covas e tornou-se o programa do Governo que foi colocado em prática. Sabíamos também que além de um projeto bem delineado, era importante manter um diálogo constante com os diferentes atores da área educacional e, principalmente, contar com o apoio incondicional do governador para colocar as várias mudanças em prática.
Como você e o grupo de educadores que colaboraram com você conseguiram articular os três eixos – racionalização organizacional, modernização e melhoria da qualidade – para promover essa revolução educacional?
O grupo de educadores que iria compor o 1º. escalão da Secretaria Estadual da Educação com apoio do governador Mário Covas, trazia na sua experiência uma série de pesquisas nacionais e internacionais, que mostravam que quando uma máquina educacional tinha resultados muito ruins, como era no caso do estado de São Paulo com evasão e reprovação de 25% de seus alunos, ou seja, com o fracasso anual de 1 milhão e meio de alunos, não era possível ter apenas mudanças pontuais. Uma única bala de prata. Eram necessárias ações para atuar em três grandes eixos – racionalizar e modernizar a máquina, desconcentrar e descentralizar e promover a melhoria da qualidade na educação, este o objetivo principal da ação desse grupo.
Quais foram os principais critérios técnicos utilizados na escolha dos dirigentes regionais que contribuíram para o sucesso da reforma educacional?
A Secretaria Estadual com uma máquina enorme, mais de 6 milhões de alunos, possuía, na época, cerca de 140 diretorias regionais, distribuídas por todo o estado, de acordo com o total de alunos e a extensão territorial. Eram Sub-Secretarias. A experiência anterior tinha nos mostrado que esses dirigentes regionais eram indicados politicamente para exercerem esses cargos. Consequentemente, tinham maior identificação e alinhamento com o político que os indicara com as propostas da Secretaria da Educação. Assim, precisávamos fazer uma mudança radical nessa situação para garantir o comprometimento dos diretores regionais com os projetos desencadeados. A escolha desses dirigentes foi feita em duas etapas por um órgão externo da Secretaria e com competência na área – a FUNDAP. A primeira etapa consistiu em uma prova para verificar o conhecimento dos aspectos pedagógicos, legais e administrativos que possuíam. A prova foi realizada e organizada pela FUNDAP, conforme os critérios e diretrizes da Secretaria da educação. Feita a prova, os três mais bem colocados em cada diretoria regional, apresentaram uma proposta de plano de atuação na região, usando indicadores – como repetência, evasão de alunos, formação de professores, oferta de nível e modalidade de ensino. Para balizar a segurança dos candidatos era feita uma entrevista com cada uma sobre o plano de ação e o melhor colocado foi indicado pelo Governador. Foram critérios basicamente técnicos de competência pedagógica, administrativa e organizacional.
Por que a descentralização e a municipalização foram escolhidas como estratégias-chave para implementar mudanças no sistema educacional em São Paulo?
A máquina gigante e paquidérmica da época tinha muita dificuldade de acelerar processos de mudança e atuação na ponta do sistema. Assim, foram adotadas duas estratégias: a desconcentração – dar mais poder às instâncias que estão na ponta (por exemplo: ampliar significativamente os recursos para a escola utilizar a partir de orientações técnicas; pequenos e médios consertos; aquisição de material didático; atividades pedagógicas como levar os alunos em concertos, bibliotecas, museus, etc.). A outra estratégia foi a de descentralização – mudança de poder da administração da educação. São Paulo era o estado que tinha a menor quantidade de educação municipalizada – 10%, enquanto a média no Brasil era de 30%. São Paulo tinha municípios muito competentes, com muitos recursos que estavam oferecendo educação pré-escolar de ótima qualidade. Então, foi feita uma aposta que seriam capazes de gerenciar bem as séries iniciais do ensino fundamental, o que depois seria estimulado com os recursos do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). Descentralizamos durante a nossa administração cerca de 2 milhões de alunos para os municípios, o que provou ter sido uma decisão muito sábia pelos indicadores de qualidade da educação municipal. Os municípios tiveram um papel muito importante no acesso e na melhoria da qualidade da educação.
Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao transferir unidades escolares e alunos para as prefeituras como parte da descentralização/municipalização?
A municipalização começou a ser feita vagarosamente, pois, era necessário manter um diálogo aberto com as prefeituras, os vereadores, as escolas de cada região, os pais e os professores. Para o município aceitar a municipalização ele assinava um convênio e tinha que levar a escola como um todo. Não era possível os professores e demais funcionários perderem os seus cargos em suas regiões em consequência da municipalização da escola. Ou seja, a prefeitura levava um pacote fechado: o prédio da escola – instalações físicas, todos os equipamentos, os professores e profissionais pedagógicos, e os demais servidores. No entanto, isso ocorreu sempre com muito diálogo no ritmo que desejasse. Por exemplo, determinada prefeitura poderia levar uma escola em um ano, experimentar e avaliar como foi municipalizar. Havia grande aceitação porque a população ficava na maioria dos municípios mais perto do poder local, e este se mobilizava mais rápido para resolver eventuais problemas. Assim, as demandas municipais por mais escolas aumentaram e as prefeituras ainda passaram a se beneficiar mais ao receber diretamente os recursos do Fundeb – Fundo da Educação Básica (inicialmente o Fundef), proporcional ao número de alunos atendidos. Dessa forma, através da compra direta da merenda, de materiais para as escolas, reformas e construções de prédios, eles reforçavam e vitalizavam a economia local. Consequentemente, a municipalização foi um sucesso com pouco mais de alunos do ensino fundamental frequentando escolas municipais. O mais importante é que hoje isso está claramente refletido no fato de São Paulo liderar o Ranking de Competitividade dos Estados (as informações foram organizadas pelo CLP – Centro de Liderança Política, em parceria com a Gove Digital e a Seall), no qual entre as 15 cidades, com mais de 80 mil habitantes, que ofertam a melhor qualidade de educação 8 delas são paulistas e entre as 15 com o melhor acesso à educação, 14 são de São Paulo. A municipalização foi uma política que se consolidou em São Paulo e no Brasil.
Como a construção de um sistema de avaliação impactou positivamente nos indicadores educacionais, especialmente na redução da evasão escolar e da distorção idade/série?
Antes de 1995 praticamente não havia avaliação do rendimento escolar. Falávamos que no passado a educação era melhor, mas não tínhamos nenhum dado concreto para avaliar aquela qualidade e os pontos deficitários a serem corrigidos. São Paulo foi pioneiro na introdução de um sistema contínuo e fidedigno de avaliação educacional – o SARESP. A administração tomou a decisão de que faria avaliações sistemáticas, ano a ano, do universo total dos alunos das diferentes séries. Essa avaliação foi fundamental para orientar o planejamento da Secretaria e de cada escola, detectar os alunos que precisavam de maior acompanhamento e reforço da aprendizagem, concentrar esforços, capacitar professores e supervisionar cuidadosamente. Foi uma política que nunca mais teve retrocesso.
Quais foram os aspectos mais críticos em garantir que a cultura da repetência fosse superada e substituída por um modelo mais eficaz de progressão dos alunos?
O Brasil sempre foi um dos campeões de repetência mundial. Observando rankings nacionais e internacionais, o país está entre os piores qualificados quanto ao desempenho de seus alunos. Pergunta-se: quais os benefícios da repetência? A cultura da repetência, historicamente, foi empregada para atemorizar e levar os alunos a ficarem mais comportados e submissos. Vários estudos feitos por pesquisadores importantes, como Costa Ribeiro e Poppovic, vinham mostrando, desde a década de 1970, que a repetência não refletia melhoria do desempenho escolar. Ao contrário, o aluno repetente tinha maiores chances de se tornar multi-repetente e abandonar a escola. Além disso, a repetência é normalmente uma violência cognitiva, ou seja, porque o aluno que foi mal em uma única matéria, tem que refazer todas as outras nas quais teve bom resultado? Isso estimulava a evasão escolar. Os professores viam na organização em ciclos com a repetência só a cada quatro anos uma perda do poder de controle de suas classes. Acabava-se com a palmatória psicológica que fere a autoconfiança do estudante de que é capaz de aprender e progredir.
Crianças e jovens têm diferentes ritmos de aprendizagem. Acredito na progressão continuada em ciclos, pois, reconhece que o aluno está sempre aprendendo/progredindo, de acordo com o seu ritmo. O que fizemos nesse sentido foi fazer com que o aluno tivesse a oportunidade de aprender progressivamente garantindo e oferecendo a todos os alunos com dificuldade de aprendizagem uma hora de aula a mais de aulas de recuperação três dias por semana e um mês nas férias. Era semelhante ao professor particular que as famílias mais abastadas oferecem aos seus filhos. A progressão continuada em ciclos foi adotada por vários estados brasileiros e avaliada pelo MEC constatou que os alunos em progressão não tinham resultados piores que os alunos com reprovação série a série, e tinham mais sucesso em continuar os seus estudos e alcançar o ensino médio. Infelizmente, a garantia de horas de recuperação foi descontinuada em algumas administrações posteriores e retomada em outras, descontinuidade essa que prejudica a melhoria de desempenho dos alunos. É preciso abandonar a cultura da repetência e fazer da aprendizagem um momento de aventura e sucesso dos alunos.
Por que a participação e o apoio do governador Mário Covas foram tão essenciais para o sucesso da revolução educacional em São Paulo?
As mudanças foram muitas e impactantes. Sistêmica. Como bem definiu o professor Fernando Abrucio, da FGV, uma reformulação total do sistema. Da municipalização à progressão continuada, era uma nova visão das políticas educacionais. O governador Mário Covas, acreditava na educação e seu apoio foi essencial. Ele afirmava que: “A Educação era a única herança que podemos deixar para as crianças das classes mais pobres e vulneráveis”. Daí o seu total apoio possibilitou que as mudanças que fossem realizadas.
Quais foram os principais resultados do seu trabalho, em termos de taxas de reprovação, abandono escolar e distorção idade/série, e como esses resultados contribuíram para a construção de uma escola mais adequada ao século XXI?
Quando se observa as estatísticas educacionais de hoje e desde a década passada, nota-se como as medidas tomadas foram acertadas. Os indicadores educacionais de São Paulo desde o final dos anos 1990 serão os melhores do Brasil. Por exemplo: em 2020, o estado atendia nas escolas quase a totalidade da população de 06 a 14 anos. Tinha o maior percentual de jovens de 16 anos – 93% – que tinham completado o ensino fundamental de 9 anos; entre os jovens de 15 a 17 anos, 87% estavam matriculados no ensino médio; e 86,5% dos jovens de 19 anos já tinham finalizado esse nível do ensino. Esses dados estão muito acima das estatísticas do Brasil na totalidade e dos outros estados. São muito importantes porque as pesquisas mostram que a maior escolaridade afasta o jovem da droga, da marginalidade e melhora suas oportunidades de emprego e salário. Isso mostra o acerto das políticas educacionais do final dos anos de 1990. Além disso, São Paulo exibe uma média de 12 anos de escolaridade para a população de 18 a 29 anos que estava na escola lá no final dos anos 90 e começo dos anos 2000. Isso significa que permaneceu na escola e teve sucesso. Na distorção idade/série indicador que mostra se o aluno cursava o no ano escolar na idade correta, São Paulo tem o melhor dado do país, somente 12% estão fora da faixa correta. Goiás que vem logo depois tem 20%, e a média da distorção do Brasil é de 26%, ou seja, diferente de São Paulo, no Brasil a repetência sem sucesso continua sendo praticada. As mudanças feitas também se refletiram no desempenho dos alunos. Em 2019, São Paulo atingiu metas de desempenho maiores do que as metas que tinham sido projetadas para o estado, tanto para as séries iniciais (6,7) do ensino fundamental quanto para as séries finais (5,5).
Ou seja, a política educacional eleita e em grande parte continuada desde meados dos anos 90 possibilitou ao estado posição de liderança na garantia de acesso, correção da distorção idade/série e indicadores de desempenho favoráveis, embora ainda seja necessário melhorar a qualidade do ensino. É importante observar que esses resultados da política educacional implementada estão certamente correlacionados e tem contribuído para São Paulo apresentar as menores taxas de violência do país. O número de mortes por assassinato é o de 7 mortes a cada 100 mil habitantes, o menor do país. Em 23 estados esse número é maior do que o dobro do de São Paulo. Nota-se, assim, que São Paulo tem feito a sua obrigação pela melhoria da qualidade do ensino e do acesso das suas crianças e jovens à escola.
Como você vê a relevância das mudanças implementadas durante o seu mandato em relação às propostas de mudanças no Novo Ensino Médio e aos desafios educacionais que ainda persistem no Brasil?
Sou uma grande fã da mudança que foi feita no ensino médio e vejo como lastimável se houver um retorno ao modelo antigo. O Brasil é um dos pouquíssimos países com um ensino médio só acadêmico. A maioria dos países tem parte significativa de jovens cursando itinerários técnicos profissionalizantes. A mudança feita, o chamado Novo Ensino Médio, proporcionou ao jovem que ali estuda, a maioria na faixa entre 15 e 20 anos, a possibilidade de uma iniciação à formação profissional, qualificando-o para uma entrada melhor no mercado de trabalho. A maioria da nossa população de jovens tem que trabalhar, precisa ajudar as suas famílias e ter seus próprios recursos. O Novo Ensino Médio como proposto, com pelo menos 1.200 horas de formação técnica profissional e 1.800 horas de formação acadêmica geral, garante um equilíbrio muito grande entre preparar o jovem para ser um cidadão – que sabe ler e escrever, fazer cálculos matemáticos, conhecer os fenômenos da natureza – e também que pode se qualificar, por exemplo, como um auxiliar ou técnico de enfermagem, de administração ou de logística. As inúmeras pesquisas mostram que isso possibilita ao jovem, facilidade de ingresso no mercado de trabalho e melhores salários. Eu sou uma grande fã da mudança proposta pelo Novo Ensino Médio.
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