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A questão socioambiental com Gabriel Menezes

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Há mais de 15 anos o empreendedor social Gabriel Menezes, empreende nas frentes de economia solidária, comércio justo, Ecomercado e desenvolvimento local, mobilizando comunidades e articulando parcerias para implementação de iniciativas socioambientais. No Instituto AUÁ é presidente e vem desenvolvendo, como empreendedor social, a Agência de Ecomercado e o Empório Mata Atlântica, além de coordenar a Rota do Cambuci, onde reforça a necessidade de trabalhar por práticas sustentáveis. “Acredito que primeiro é importante entendermos a diferença entre solidariedade e caridade. Costumo dizer que a caridade está relacionada ao amor incondicional, ou seja, você doa o que pode para ajudar os outros, sem esperar nada em troca. Já a solidariedade, vem do Latim “Solidum”, quando todos se juntam para formar uma unidade, ou seja, ela é condicional, está relacionada ao famoso “um por todos e todos por um”. Muitos entendem que Economia Solidária é simplesmente ajudar os pobres e excluídos comprando seus produtos e serviços, sendo que o que ela propõe é um novo padrão de relação econômica baseado na cooperação, no empreendedorismo e na sustentabilidade socioambiental, em vez da competição, do emprego e do lucro predatório, independente de segmento de mercado, ou classe social”, afirma o ativista.

Gabriel, antes de mais nada, nos fale um pouco da sua história profissional até chegarmos aos dias atuais.

Em 1998, com 21 anos, iniciei minha primeira atividade empreendedora na área socioambiental no Centro Cultural Projeto Equilíbrio, no bairro de Pinheiros em São Paulo, onde, além de gerenciar cerca de 3 eventos noturnos por semana para mais de 3 mil pessoas, assumi o cargo de Diretor Social da ONG e coordenei a Coleta Seletiva de resíduos sólidos para financiamento de atividades culturais e esportivas com as crianças da vizinhança. Em 6 meses já coletávamos em mais de 100 pontos, entre casas noturnas, restaurantes, escritórios, residências e até a própria Secretaria Estadual do Meio Ambiente, chegamos a 20 toneladas de resíduos por mês e mais de 30 crianças atendidas diariamente. Neste meio tempo também trabalhei como voluntário na ONG Constelação com atividades de desenvolvimento comunitário em um conjunto popular habitacional no Parque Continental, em Osasco.

Depois disso, mergulhei na área da cultura popular, produzi e gerenciei mais de 200 eventos em 3 anos, mas acabei cansando da vida de produtor cultural. Foi então que resolvi dar uma virada na vida, iniciei o curso de Geografia na USP e tive contato com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, onde conheci a Economia Solidária e trabalhei como técnico de incubação de 2002 a 2004 no Capão Redondo e Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo. Paralelamente, fazia um trabalho voluntário de desenvolvimento comunitário com a Associação Constelação num conjunto habitacional popular em Osasco.

Com o nascimento da Laura, minha primeira filha, busquei mais trabalhos e logo assumi a diretoria como Secretário Geral do Instituto Cooperando, que realizava oficinas e projetos de economia solidária e jogos cooperativos para empresas e governos, lá atendemos mais de 2 mil pessoas em situação de extrema pobreza nas Zonas Leste e Sul de São Paulo. O grupo se dividiu e em 2005, com o nascimento da Luana, minha segunda filha, foquei mais ainda no empreendedorismo social e fui trabalhar na Associação Holística de Participação Comunitária Ecológica – AHPCE, que recentemente mudou o nome para Instituto AUÁ de Empreendedorismo Socioambiental e onde estou até hoje, pois foi onde tive mais liberdade de atuação. Elaborava e coordenava projetos de Práticas Sustentáveis e o Programa de Educação e Defesa Ambiental “Ângela de Cara Limpa”, para geração de renda e conservação ambiental com comunidades da Zona Sul de São Paulo. Tivemos patrocínio do Fundo Estadual de Recursos Hídricos – FEHIDRO, Instituto Camargo Corrêa, GIFE (Rede América), Secretarias do Meio Ambiente e do Trabalho de São Paulo. Em 3 anos viabilizamos 5 projetos, gerando receita direta de mais de 500 mil reais para empreendimentos de coleta seletiva, agricultura urbana, artesanato e alimentação natural. Nessa época, trabalhava também como consultor na Incubadora Pública de Empreendimentos Populares Solidários de Osasco para formação de um Arranjo Produtivo Local da Costura e na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Fundação Getúlio Vargas ITCP-FGV.

De 2008 a 2013, além de continuar o trabalho no Jardim Ângela como voluntário, assumi 3 mandatos consecutivos de presidente da AHPCE, que coordenava a rede do “Programa de Jovens – Meio Ambiente e Integração Social (PJ-MAIS)”, em parceria com a Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo e o Instituto Florestal do Estado de São Paulo, contou com financiamento da UNESCO para sua implantação e com um prêmio MarketPlace do Banco Mundial; foram implantados mais de 15 Núcleos de Formação Ecoprofissional para jovens em diversos municípios, por mais de 15 anos; foram realizados diversos projetos regionais e locais, bem como a restauração ecológica de áreas públicas através de neutralização voluntária de carbono de empresas como processo de profissionalização dos jovens, junto à Oficina do Carbono. Em parceria com a Secretaria de Educação de Osasco, coordenava também o projeto “Escolinha do Futuro”, que atendia mais de 15 mil crianças da rede municipal com atividades culturais, esportivas e pedagógicas e o “Recreio nas Férias” para 18 mil crianças. Em 2009 assumi também a coordenação da Rota do Cambuci, um movimento recém criado com prefeituras e outros parceiros para realização de Festivais Gastronômicos e atividades para conservação e promoção do Cambuci (Campomanesia Phaea), árvore frutífera nativa de São Paulo, típica do entorno da Serra do Mar, que deu nome a um dos bairros mais antigos da capital, porém, pouco conhecida e ameaçada de extinção.

2014 marcou uma grande mudança, pois sentia muito a necessidade de evoluir para modelos organizacionais mais autônomos, democráticos e sustentáveis de atuação para cumprir sua missão. Foi um longo processo de planejamento e desenvolvimento organizacional, que terminou até com a mudança do nome da ONG; criamos “negócios” com a missão na resolução de problemas sociais e ambientais, que reinvestem o superávit financeiro em suas finalidades, em vez da distribuição do lucro para os acionistas.

Permaneci então à frente da Rota do Cambuci, onde desenhamos um novo modelo de funcionamento, de acordo com nossa nova proposta de empreendedorismo e criei a Agência de Ecomercado, que atua com projetos, comércio, produção e crédito para o que também podemos chamar de Economia Solidária. Na área comercial, temos uma marca, o Empório Mata Atlântica, que tem como missão conservar a Mata Atlântica através do Ecomercado, apoiando produtores rurais para a produção de espécies nativas em Sistemas Agroflorestais (SAFs) e a formação de um Arranjo Produtivo, além de operar a logística e comercialização com um catálogo de mais de 300 itens, oferecer o serviço de Banqueteria-Buffet e tem uma loja no Mercado Municipal de Pinheiros, em parceria com Instituto ATÁ e o Instituto Socioambiental (ISA). Na área de projetos, atualmente a Agência de Ecomercado atende 100 escolas municipais da região Macro-Oeste metropolitana com atividades de educação ambiental e implantação da logística reversa do óleo comestível usado, em parceria com a Cargill e a Preserva; coordena, em parceria com a prefeitura de Carapicuíba, a Incubadora Pública de Economia Solidária; e, em parceria com o FEHIDRO, está estruturando um banco de áreas de 100 hectares para SAFs com nativas, através de compensação ambiental, neutralização de carbono e responsabilidade socioambiental de empresas e sociedade civil. Voltei à presidência do Instituto AUÁ em dezembro de 2015 como interino e em abril de 2016 fui eleito novamente para presidente com mandato de 3 anos.

Hoje o termo Economia Solidária é usado e falado por muita gente. Quais ingredientes são essenciais para que essa economia seja solidária de verdade?

Acredito que primeiro é importante entendermos a diferença entre solidariedade e caridade. Costumo dizer que a caridade está relacionada ao amor incondicional, ou seja, você doa o que pode para ajudar os outros, sem esperar nada em troca. Já a solidariedade, vem do Latim “Solidum”, quando todos se juntam para formar uma unidade, ou seja, ela é condicional, está relacionada ao famoso “um por todos e todos por um”. Muitos entendem que Economia Solidária é simplesmente ajudar os pobres e excluídos comprando seus produtos e serviços, sendo que o que ela propõe é um novo padrão de relação econômica baseado na cooperação, no empreendedorismo e na sustentabilidade socioambiental, em vez da competição, do emprego e do lucro predatório, independente de segmento de mercado, ou classe social. Os 7 princípios do cooperativismo são um bom parâmetro para avaliar se as relações entre sócios ou empreendimentos estão coerentes com a proposta:

Adesão Livre e Voluntária – pode parecer que significa “entra quem quer, mas trabalha de graça”, como aliás muitas vezes acaba acontecendo… mas “Adesão Livre” está relacionada à valorização da diversidade social, contra o preconceito e discriminação das diferenças, e “Adesão Voluntária” ao “que procede espontaneamente, que deriva da vontade própria”, ou seja, que a atuação do profissional no empreendimento tenha base no seu vocacional, no que lhe “move”.

Gestão Democrática (Autogestão) – costuma-se traduzir por: “cada pessoa vale um voto”, ou seja, cada integrante (sócio) vale pelo que é (uma pessoa) e não pelo o que tem de dinheiro aplicado no negócio. Esse princípio também determina que, no empreendimento solidário não pode haver, de nenhuma forma, a relação patrão-empregado, ou formas de hierarquia nos principais meios de tomadas de decisões institucionais. Para que a autogestão ocorra é fundamental que existam processos e procedimentos claros, eficientes, efetivos e eficazes de interlocução e total transparência entre os diversos setores e subgrupos do empreendimento. A forma de decisão por diálogo e consenso deve, portanto, ser priorizada, pois busca harmonizar as diferenças e encontrar soluções comuns que contemplem as partes.

Participação Econômica – a propriedade dos meios de produção deve ser coletiva, ou seja, os equipamentos, infraestrutura e outros bens que fazem parte do empreendimento devem pertencer a todos os trabalhadores em igual proporção, independente de quanto cada um tem investido em dinheiro no empreendimento. É preciso também que todos os integrantes se responsabilizem pelo investimento financeiro necessário para implantação e desenvolvimento da atividade econômica. Diferentemente das empresas capitalistas, a sua remuneração não é determinada pelo quanto investiu em dinheiro no negócio, mas pelo seu trabalho e nível de responsabilidade no negócio. Os critérios de remuneração dos trabalhadores do empreendimento devem ser estabelecidos coletivamente pelos próprios trabalhadores.

Autonomia e Independência – este refere-se especialmente às relações comerciais do empreendimento. São muitos os casos que podemos citar de empreendimentos populares solidários que, apesar de respeitarem todos os outros princípios, justamente por não exercerem este, encontram-se em situação de exploração, como as cooperativas de costureiras que prestam serviços para médias e grandes grifes da moda, trabalhando na produção somente de partes específicas da confecção do produto, com baixa remuneração e condições exploradoras por serviço; e as cooperativas de catadores de materiais recicláveis, inseridas num mercado altamente concentrador, com estrutura piramidal, cujos trabalhadores não tem autonomia nenhuma sobre o valor dos produtos que vendem e dependem de um número extremamente reduzido de indústrias recicladoras, as quais ditam todas as regras de mercado.

Educação, Treinamento e informação – Este é um dos princípios mais importantes para que os empreendimentos populares solidários consigam crescer. É preciso explicitar a relação direta que existe entre educação, trabalho e renda e desmistificar a falácia do emprego como grande instrumento de desenvolvimento, segundo pesquisa de 2000 (Ricardo Barros) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se todos os desempregados tivessem trabalho com os níveis atuais de salário, a pobreza diminuiria em apenas 3%. Se o trabalhador brasileiro tivesse 5 anos de escolaridade, a pobreza diminuiria em 6%; se tivesse 8 anos a redução chegaria a 13%. Vale ressaltar também como diretriz os 4 pilares da educação elaborados pela UNESCO para o século XXI: Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver Juntos, Aprender a Ser.

Intercooperação – Os empreendimentos solidários devem se relacionar comercialmente para construção e formação de um novo mercado, pautado pela solidariedade e sustentabilidade. Precisamos entender que para sobreviver no mercado, a empresa não precisa ser competitiva, mas sim competente, ou seja, ela não precisa destruir as outras para vencer, ela precisa sim é ser boa no que faz, desenvolver bons produtos, de qualidade e saber se relacionar com seu público. Outra expressão também muito utilizada e completamente incompatível com a proposta da economia solidária é a promoção da “concorrência de mercado”, como contraponto ao “monopólio de mercado”; realmente o monopólio não é saudável e não deve ser valorizado, defendido, nem mantido, mesmo que seja por empresas estatais, no entanto a concorrência também não é saudável. Como contrapondo ao monopólio e até mesmo à livre concorrência, os empreendimentos solidários devem promover a diversidade de mercado e a livre existência. A diversidade é a base da vida, é ela quem garante a saúde e existência dos seres, de tudo o que é vivo neste planeta e, assim como a Ecologia, a Economia deve ser entendida como um sistema dinâmico, vivo, que depende da diversidade para sua manutenção.

Interesse pela Comunidade – Um empreendimento solidário, ao instalar-se em um determinado local, deve garantir sua sustentabilidade junto com a conservação dos recursos naturais, geração de trabalho e renda para a comunidade local, promoção e difusão dos valores cooperativos e solidários, protagonismo civil, organização popular e política para garantia de equipamentos públicos de serviços básicos de qualidade, atuando a partir das necessidades sociais, ambientais, econômicas, etc da sua comunidade e entorno. É preciso romper com o mau padrão vibratório energético da economia de saque e pilhagem adotado no Brasil desde seu descobrimento, com a exploração predatória da natureza, a corrupção ética e moral com a coisa pública, do individualismo, competição e do desrespeito aos direitos humanos universais, promovendo assim o compromisso ético social com o desenvolvimento do país, com uma distribuição mais justa da renda nacional, com a ecologia, a qualidade e os serviços públicos de saúde, educação, saneamento, transporte, habitação, etc.

Como tem observado as iniciativas socioambientais em nosso país?

Vejo que cada vez mais pessoas estão largando seus sonhados empregos em grandes organizações capitalistas, se desiludindo da busca pela ascensão na pirâmide social, para trabalhar com o que acreditam que pode contribuir mais para a resolução de problemas sociais e ambientais. O Brasil tem um dos piores índices mundiais de desigualdade social, corrupção e desmatamento do mundo, isso está incomodando cada vez mais o senso coletivo e fazendo com que mais recursos sejam direcionados para estas iniciativas. Apesar da crise econômica no país e no mundo, este é um dos segmentos que mais cresce.

As qualidades das iniciativas também tem melhorado muito, há um amadurecimento metodológico hoje de mais de 30 anos do 3º setor no Brasil que contribui inclusive com melhores resultados das políticas públicas e investimentos privados. Mesmo assim, temos muito ainda a evoluir, pois são poucas as iniciativas que realmente transformam as estruturas econômicas, políticas e sociais causadoras dos problemas e de fato constroem novos modelos, a maioria atua nas consequências destes processos tentando atenuar os impactos negativos, ou tem propostas mais consistentes, mas não conseguem impactar com escala.

De modo geral, há uma necessidade crescente de evolução das iniciativas socioambientais do 3º setor para novos modelos de atuação. Bill Drayton, fundador da ASHOKA, no filme “Quem se Importa” nos conta que na Europa, um continente com forte histórico na construção de modelos socialistas de governo, a sociedade civil organizada se estabeleceu como Organização Não Governamental, já nos Estados Unidos, um país com forte histórico no capitalismo, a sociedade civil organizada se estabeleceu como Organização Sem Fins Lucrativos. “Não somos um ‘Não’ ou ‘Sem’ alguma coisa”, questiona ele! Desta forma, as organizações sociais se desenvolveram no Brasil com estes referenciais, como complementares ao 1º setor, especialmente nas áreas de assistência social, educação e saúde e esta origem tem definido padrões limitados de atuação e sustentabilidade financeira. O modelo de Empreendedorismo Socioambiental traz mais autonomia e diversidade de estratégias de captação de recursos e precisam ser mais consideradas e promovidas pelas organizações e iniciativas socioambientais no Brasil.

O que seria uma iniciativa socioambiental de sucesso em sua visão?

Primeiramente, uma iniciativa de sucesso é aquela que tem clareza e consistência na sua missão e nos meios de avaliação do seu desempenho e resultado, seja ela uma mobilização social para conservação de uma praça, uma atividade educativa, a formação de empreendimentos, etc, que consegue cumprir o que se propôs e servir de referência para as demais.

De modo geral, entendo que os principais problemas sociais e ambientais que sofremos hoje são resultados de cadeias produtivas que, para gerar recursos financeiros, degradam os recursos naturais, exploram seus trabalhadores e consumidores e promovem a corrupção em governos para ampliar seus lucros. Neste sentido, uma iniciativa de sucesso também é aquela que consegue construir novas estruturas econômicas que, para gerar recursos financeiros, conservam os recursos naturais, distribuem a renda de forma mais equitativa, formam e educam os trabalhadores com princípios da cooperação e da solidariedade e promovem o desenvolvimento do potencial humano e o vocacional de cada um, que pressionam governos por políticas públicas através da organização e participação social. As iniciativas de escala local são muito importantes, mas o nível e a dimensão do problema socioambiental de modo geral hoje, demandam iniciativas que possam ser replicáveis e gerem impacto em maior escala.

No século XX, os movimentos sociais defendiam a propriedade dos meios de produção pelos trabalhadores como uma das principais estratégias de transformação. O século XXI tornou as questões mais complexas e na minha opinião o consumo consciente e responsável se tornou o principal vetor com potencial de transformação para padrões sociais mais sustentáveis. Se avaliarmos bem, as grandes empresas estão adotando “práticas sustentáveis” mais por uma questão de mercado para conseguir atender a uma demanda de determinados nichos sociais, do que de fato por uma questão de responsabilidade e consciência. O consumidor é bombardeado pela mídia para gastar seu dinheiro sem um senso crítico sobre a sustentabilidade do produto, mas a conscientização está aumentando e tem um grande poder de redefinir padrões coletivos. Neste sentido, uma iniciativa de sucesso é aquela que consegue formar consumidores conscientes que desencadeiam na sustentabilidade socioambiental de toda a estrutura sistêmica envolvida, seja no consumo de um produto ou serviço, de uma atividade educativa, dos recursos naturais, ou mesmo de um espaço, como uma praça ou um parque

Se fosse possível, gostaria que falasse um pouco do trabalho desenvolvido pelo Instituto AUÁ.

O Instituto AUÁ nasceu em 1997 e tem como missão: Valorizar o potencial humano e fortalecer empreendimentos socioambientais para a sustentabilidade. Se propõe a ser uma organização que reúne empreendedores sociais e apoia com coordenadorias de planejamento, comunicação, mobilização de recursos e administrativa-financeira, formando empreendimentos voltados à Educação Integral, Agroecologia, Reciclagem, Economia Solidária, Políticas Públicas e outras causas.

Atualmente, além da Rota do Cambuci e da Agência de Ecomercado, as quais estou à frente, conforme apresentadas na resposta à primeira pergunta, contamos também com mais 2 empreendimentos:

Aldeia Educadora – promove o desenvolvimento integral do ser humano, articulando diferentes processos educativos, como formações específicas e continuadas para educadores e educandos, criação de espaços comunitários de tomada de decisão (fóruns, assembleias, etc), construção de planos intersetoriais para educação e programas para uma gestão colaborativa entre sociedade, escola, família e sistema de garantia de direitos.

Banca Orgânica – faz a gestão da distribuição de cestas de alimentos orgânicos e promove a formação de Coletivos de Consumo Responsável para incentivar a agricultura orgânica familiar. Ao consumir cestas de produtos orgânicos, esses grupos de consumidores fortalecem o pequeno agricultor, que deixa de vender a intermediários e entrega seus produtos diretamente em cada Coletivo. O interessado em apoiar esse empreendimento, torna-se um “Associado Semente” do Instituto AUÁ, realizando uma contribuição associativa mensal e tem direito a uma cesta semanal com 10 itens de alimentos orgânicos, entregue diretamente pelo produtor aos coletivos. O Associado recebe semanalmente uma lista de alimentos disponíveis para colheita naquela semana e pode personalizar a cesta com os itens de sua preferência. Um dos membros do coletivo torna-se o Membro Colaborador, responsável pela organização das entregas e retiradas das cestas, com benefício de desconto de 50% se organizar coletivos com no mínimo 7 pessoas, ou 100% em coletivos com mais de 15 pessoas.

Temos uma relação histórica, desde nossa origem, com a Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo (RBCV-SP) e o Instituto Florestal do Estado de São Paulo. Reserva de Biosfera é de um programa da UNESCO surgido na década de 70 para conservação dos ecossistemas e a qualidade de vida, já são mais de 600 pelo mundo e no Brasil são 7. Além do trabalho com o “Programa de Jovens – Meio Ambiente e Integração Social”, integramos o Conselho Gestor da RBCV com mais de 30 organizações públicas e privadas para planos e ações integradas. Coordenamos também com mais de 10 pesquisadores o programa de “Avaliação dos Serviços Ecossistêmicos do Cinturão Verde”, alinhado com a “Avaliação Ecossistêmica do Milênio”, um processo de avaliação da saúde dos ecossistemas do planeta e sua relação com o bem-estar humano, inspirado no IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), solicitado pelo Secretário Geral da ONU em 2000 e realizado por 1360 pessoas de 95 países. Neste contexto é que se formou os dois principais pilares atuais do Instituto AUÁ: Educação Integral e Ecomercado.

Quais são as maiores dificuldades quando se preside um instituto como o AUÁ?

Nosso principal desafio é ainda a consolidação da transição do modelo de atuação, tanto no aspecto de estruturação da equipe, quanto da viabilidade econômica dos empreendimentos.

Não temos referenciais de outras organizações do 3º setor que sejam o que nos propomos e também com o modelo de autogestão institucional entre os empreendedores associados e coordenadorias; neste sentido fica mais difícil o alinhamento para que tenhamos uma mesma visão coletiva de caminho e construção daquilo que ninguém conheceu, exige muito mais tempo e dedicação e principalmente planejamento.

A maioria dos empreendedores sociais, de modo geral, tem um bom entendimento do problema relacionado à causa em que atua e uma grande capacidade de propôr soluções inovadoras e transformadoras, no entanto, tem pouca capacidade de gestão administrativa e gerencial, o que torna mais difícil implantar os empreendimentos e fazê-los atingir seu ponto de equilíbrio e superávit, gerando muitas vezes ao fim das iniciativas.

O fato de estar à frente da Rota do Cambuci e da Agência de Ecomercado compromete muito também a dedicação de tempo à presidência do Instituto, mesmo assim, após estes primeiros 3 anos de experiência, felizmente os empreendimentos já estão mais consolidados e a equipe mais amadurecida, mais ainda temos muito a melhorar, tudo caminha para que 2017 seja o ano em que de fato o novo modelo se consolide e tenhamos mais estabilidade nas receitas e equilíbrio com as despesas.

Você se enxerga mais como um ativista ou como empreendedor social?

As duas coisas, um empreendedor social é necessariamente um ativista. Durante muito tempo tive dificuldade de preencher nos formulários qual era minha profissão, conheci este termo cunhado pela ASHOKA e fez muito sentido para pessoas que, como eu, fazem da sua profissão a resolução de problemas sociais e ambientais.

Hoje fala-se muito em responsabilidade social e práticas sustentáveis, muitas vezes porque soa bem para as organizações que querem propagandear este tipo de atividade. Como tornar a responsabilidade social e as práticas sustentáveis tangíveis de fato?

Realmente o chamado “Greenwashing”, ou seja, a “lavagem verde” que algumas empresas fazem para dar conotação de sustentabilidade a ações e produtos que estão totalmente desconectados disso é um ponto de atenção muito importante e os principais fatores de viabilização de projetos e ações tangíveis de fato são: em primeiro lugar, a ética, especialmente dos tomadores de decisão e gestores dos projetos de responsabilidade social e práticas sustentáveis das organizações, sejam elas públicas ou privadas, de estarem de fato comprometidos com a qualidade dos resultados sociais e ambientais envolvidos e não apenas com números para melhorar seu marketing; em segundo lugar, a competência, tanto dos contratantes, quanto dos contratados, pois muitas vezes a organização até tem propostas bem fundamentadas e com boas intenções, mas se propõe a iniciativas socioambientais que não tem conhecimento técnico e sistêmico e não consegue realizá-las adequadamente.

Mais uma vez, o senso crítico do consumidor tem também o papel fundamental e a tendência é que cada vez mais as empresas que fazem mais propaganda do que resultado de fato tenham sua reputação e rendimentos piores.

Por falar em práticas sustentáveis, você é coordenador da Rota Cambuci. O que gostaria de destacar deste trabalho em especial?

A Rota do Cambuci tem uma característica muito especial, parecida com a da Rede do PJ-MAIS, de que não é exatamente um Empreendimento cuja marca pertence ao Instituto AUÁ e que foi criado e desenvolvido por nós (como a Agência de Ecomercado, Aldeia Educadora e Banca Orgânica), mas sim como um movimento, uma rede, onde o nosso papel é de incubar a estruturação das suas Frentes de Atuação para autogestão e viabilizá-las economicamente. Atualmente, são estas as 4 Frentes definidas:

Rota Gastronômica do Cambuci – é a mais antiga, foi como surgiu a atual “Rota do Cambuci”. Estamos no 9º ano de festivais e em média participam 15 municípios, 12 expositores e 80 mil visitantes. Está no calendário oficial de eventos do Estado de São Paulo.

Arranjo Produtivo do Cambuci – iniciou suas primeiras operações em 2014 com 7 toneladas, passou para 13 toneladas em 2015, 40 em 2016 e deve chegar a 80 toneladas em 2017. Conta atualmente com aproximadamente 100 produtores rurais e de derivados caseiros, 70 estabelecimentos gastronômicos, 5 indústrias, 40 mercados, 2 prefeituras e mais de 40 parceiros institucionais públicos e privados.

Rede de Pesquisa do Cambuci – envolve mais de 15 pesquisadores científicos e instituições de pesquisa como Esalq, Farmácia-USP, Engenharia-USP, Biologia-USP, ITAL, Inst. Florestal e outros, que analisam as características físicas e químicas da espécie e do fruto.

Rota Turística do Cambuci – já temos mais de 100 atrativos turísticos em potencial, como propriedades agrícolas, estabelecimentos de hotelaria, gastronomia e comércio, mapeados no entorno da Serra do Mar de São Paulo, mas ainda precisamos de financiamento para estruturar o trade. Tem sido um grande desafio articular toda essa diversidade de parceiros, porém este modelo mais aberto de construção traz muitas vantagens, especialmente quando tratamos de uma causa tão complexa, que envolve educação, agricultura, cultura, turismo, economia e gastronomia.

Quais são os diferenciais que você considera serem inovadores na Agência Ecomercado e no Empório Mata Atlântica?

Costumo dizer, em relação ao Empório Mata Atlântica, de que temos o “simples” desafio de colocar um produto que ninguém conhece (Cambuci, Uvaia, Jussara, Caraguatá, Grumixama, Jerivá e outros) num mercado que não existe, o de frutas nativas da Mata Atlântica. Soma-se a isso que não estamos entrando no mercado para lucrar com uma “moda” que tende a pegar, mas trabalhamos de fato para a conservação das espécies, geração de renda para pequenos agricultores, a transformação da paisagem de monocultura de exóticas do entorno da Serra do Mar para Sistemas Agroflorestais e a transformação da herança colonial na nossa cultura, onde as frutas nobres são as europeias e norte-americanas, as populares são asiáticas e africanas e as nossas não são sequer conhecidas.

A Agência de Ecomercado foi concebida a partir da percepção da necessidade de atuação de modo integrado nos âmbitos produtivos, comerciais e financeiros para o desenvolvimento de modelos econômicos sustentáveis. Desta forma, além de apoiar empreendimentos solidários como uma incubadora, com assessoria e capacitação, também atua como agente econômico com operações próprias de produção, comercialização e crédito em parceria com estes empreendimentos solidários e com outros de mercado em geral. O mercado de produtos e serviços sustentáveis é ainda muito incipiente e não há uma organização que o articule e promova desta nossa forma. Nosso maior foco hoje é no segmento de alimentação, temos uma especialização nos produtos nativos da Mata Atlântica, mas estamos articulados com diversas redes do Brasil todo, principalmente com o SlowFood Brasil e construindo um novo catálogo e provavelmente em breve seremos a única distribuidora com nível nacional para estes tipos de produtos. Além disso, pretendemos em 2 anos passar a atuar também nos segmentos de artesanato e higiene e em 4 anos de construção civil e transporte elétrico fotovoltaico.

Como acredita que deveria ser a avaliação das políticas públicas no Brasil, para que tenhamos ações mais assertivas na implementação de projetos?

Para mim, a questão já começa com o sistema de tributação, um dos mais perversos do mundo em cima das classes baixa e média, e em segundo lugar a corrupção da coisa pública e a dominação das políticas de Governo por organizações privadas e partidos políticos que visam muito mais os seus lucros do que de fato o bem estar social e coletivo. Vejo muito as questões sociais e ambientais como consequências principalmente destes dois problemas.

A maioria absoluta dos projetos públicos socioambientais têm dificuldade na sua implementação por não conseguirem se articular no próprio Governo. É raro encontramos políticas públicas nessa área que envolvam mais do que uma ou duas Secretarias ou Ministérios. A questão socioambiental é extremamente grave e precisa ter políticas de Governo com ações integradas entre meio ambiente, educação, trabalho, agricultura, turismo e assistência social. As pessoas de boa fé, comprometidas de fato com as causas, precisam ocupar mais os espaços e ter mais força para pautar os projetos e investimentos públicos. A sociedade civil organizada e os empreendedores sociais tem um papel fundamental neste processo, mas muitas vezes se relacionam com o 1º setor de forma tímida e subordinada para conseguir apoio. Alguns espaços de conselhos gestores participativos tem ajudado para que possamos estar mais ativos no direcionamento das políticas públicas, mas é preciso muito mais organização e ativismo.

Acredito também que o fomento ao empreendedorismo social e economia solidária é uma proposta ainda muito nova e por isso tão pouco desenvolvida como política pública, mas também precisa de uma atenção especial, pois precisa se ampliar. Gosto muito do exemplo de um projeto em que trabalhei, onde os uniformes escolares da rede municipal eram produzidos por uma oficina-escola com mais de 200 bolsistas, cadastrados no Portal do Trabalhador e em situação de pobreza, que durante 2 anos aprendiam o ofício e recebiam 1,5 salário mínimo por mês, ao final escolhiam entre se cadastrar no Portal de Empregos para as vagas que as indústrias parceiras ofereciam, e formar um empreendimento individual, ou coletivo (nestes casos, com acompanhamento de mais 3 anos para estruturação do negócio); assim, o dinheiro que a Secretaria de Educação gastava nas licitações foi muito melhor empregado. O caso da lei de que 30% da merenda escolar pública precisa ser proveniente da agricultura familiar também é um ótimo exemplo. Já pensou se 100% dos gastos públicos tivessem que ser com organizações sem fins lucrativos, empreendimentos sociais e de economia solidária, qual o tamanho do impacto positivo socioambiental!


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