Especializada em jornalismo cultural, com mais de três décadas de atuação profissional, a jornalista e escritora carioca Ana Maria Bahiana já trabalhou em diferentes mídias – jornal, revista, TV, rádio e Internet – escrevendo principalmente sobre cinema e música. Foi secretária da redação e crítica musical da primeira edição brasileira da revista Rolling Stone, em 1972. Trabalhou nos principais jornais brasileiros – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Na imprensa internacional, atuou na França, EUA e Austrália e foi editora e chefe de redação da revista Screen International. Na TV, foi correspondente internacional em Los Angeles do canal Telecine, da Globosat e da Rede Globo. Atualmente é critica do programa Just Seen It, dedicado ao cinema, da rede norte-americana PBS e tem um blog na UOL, onde escreve sobre cultura. Ana Maria e Paoula Abou-Jaoude são as únicas brasileiras membros da Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood, responsável pela premiação anual dos Globos de Ouro. Vivendo em Los Angeles, em 2014 esteve no Brasil para o lançamento de seu livro Almanaque 1964, em que cada capítulo cobre um mês do ano do Golpe de Estado no Brasil. “Acredito firmemente que quanto se mais sabe sobre uma forma de arte, mais prazer temos em compartilhá-la com quem a criou”, afirma a experiente jornalista e escritora.
Ana, o jornalismo cultural brasileiro hoje é monotemático?
Não tenho como avaliar…
Você já disse em uma certa oportunidade, que não gosta de ser chamada de crítica, preferindo ser mais uma artesã das palavras ou observadora profissional. De onde vem esse incomodo?
A palavra “crítica” está desgastada demais. Não creio que represente nada muito produtivo, hoje. Para mim ela ecoa como uma atitude de cima para baixo, dono-da-verdade que me incomoda muito. Não penso que isso ajude ninguém – nem quem vê, nem quem produz arte. Este texto aqui, publicado recentemente no NYTimes, é bastante como eu me sinto: Everybody’s a Critic. And That’s How It Should Be.
Quanto a opinião do observador profissional, pesa para que o leitor se interesse por um determinado filme que ainda não viu?
Depende de muitos fatores, principalmente da relação entre quem escreve e quem lê. É muito bom quando essa relação se baseia em confiança e respeito mútuos. Se um texto é capaz de despertar uma curiosidade, revelar algo novo, instigar uma ampliação do gosto pessoal… isso é ótimo! Mas no final das contas o que vale é o gosto de cada pessoa – mais que isso, a experiência pessoal de cada pessoa, o que chamo de “arquivos pessoais” de cada um (a).
Consegue ver algum filme apenas pelo prazer de assisti-lo, ou sempre (mesmo que não queira) a profissional vem à tona?
Sempre vejo por prazer. Quando um filme não me dá prazer, prefiro ir embora.
Existe algum filme de algum diretor dos chamados geniais, que você teve que assistir mais de uma vez, para compreender o que ele queria dizer, ou isso raramente acontece?
Compreender é complicado, e nem sempre necessário. Cinema é muito perto do sonho, e quantas vezes compreendemos nossos sonhos? Eu diria que pelo menos 50% do que vejo e me intriga eu não “compreendo” na primeira vez. Mas compreendo de outro modo, que não dá nem para explicar, compreendo pela livre associação de imagens que todos nós fazemos quando sonhamos, e criamos metáforas, novos significados para coisas banais. Saber onde uma história vai, de a para b até z, é o de menos. Saber o que a história quer dizer é o propósito de todo bom filme, e isso nem sempre a gente “compreende” logo de cara. Exemplos: “Mulholland Drive”, de David Lynch [roteirista, produtor, artista visual, músico e ocasionalmente ator norte-americano, conhecido por seus filmes surrealistas, 1946-], é um filme que amei de cara, mesmo que a história me confundisse. Já revi umas, sei lá, cinco ou seis vezes, e só agora acho que “compreendo” tudo nele. Outro bom exemplo são os filmes dos irmãos Coen [respectivamente os cineastas norte-americanos Joel e Ethan Coen] – saio de quase todos eles sem saber se gostei ou não, mas com as imagens coladas na minha mente; fico dias ruminando mentalmente a coisa toda, sem conseguir esquecer… e quando me dou pela coisa, já estou apaixonada pelo filme.
Quais foram os aspectos que tiveram uma melhora no cinema nacional, e quais os outros que ainda estão longe daquilo que você considera ideal e de alta qualidade?
Não acompanho o cinema do Brasil de perto o suficiente para fazer essa avaliação.
No livro “Como a Geração Sexo, Drogas e Rock ´n´ Roll Salvou Hollywood”, de Peter Biskind, fica claro que George Lucas e Steven Spielberg, foram os principais “culpados” pelo fim da era do cinema feito como forma de arte, e pelo começo dos chamados blockbusters. Acredita que isso foi o fator principal, ou em sua visão, isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, mesmo sem os dois bilionários intervindo diretamente em todo o esquema de produção e distribuição?
Julgo que essa visão é bem típica do Peter Biskind. Não concordo com ele. A tensão entre o filme de autor e o filme comercial está na própria essência do cinema. Sem ela não teríamos Hitchcock [Alfred Hitchcock, cineasta britânico considerado o “mestre do suspense”, 1899-1980] ou John Ford [cineasta norte-americano, conhecido principalmente, mas não só, pelos seus westerns, 1894-1973] ou Danny Boyle [cineasta e produtor britânico, 1956-] ou Steve Soderbergh [cineasta estadunidense, 1963-] e por aí vai. A espiral que vai do subterrâneo para a superfície e para o subterrâneo de novo é tão eterna quanto o tempo, e toda forma de arte passa por ela, e evolui com ela. Nem todo filme de autor é “bom” e nem todo filme comercial é “ruim”. O (a) grande realizador/realizadora trafega livremente por essas categorias e se expressa com vigor em ambas.
Quais foram as piores e melhores adaptações cinematográficas de livros que você já leu?
Algumas das melhores são a trilogia “Senhor dos Anéis”, “Vício Inerente” de Paul Thomas Anderson (livro do escritor norte-americano Thomas Pynchon) e os irmãos Coen em “Onde os Fracos Não Têm Vez” (livro do escritor norte-americano Cormac McCarthy). As piores eu já esqueci…
Opinião da crítica sobre o seu livro “Como Ver Um Filme” de 2012: “Como ver um filme é um livro certo para quem gosta ou quer conhecer mais sobre o cinema”; em linhas gerais, vemos a sétima arte de uma forma errada, ou melhor, de uma forma que poderíamos sentir muito mais prazer do que realmente sentimos quando vemos um filme?
Acredito firmemente que quanto se mais sabe sobre uma forma de arte, mais prazer temos em compartilhá-la com quem a criou. O cinema então, que é uma forma de arte de extrema complexidade, unindo várias disciplinas, exigindo um equilíbrio hercúleo entre expressão e demanda de mercado (porque exige investimento de grande escala, mesmo quando é pequeno…) se abre e se revela plenamente quando sabemos mais sobre o que criadores e criadoras querem dizer com suas escolhas e decisões. Você pode ver só para curtir sua estrela favorita, ou para levar sustos, ou para acompanhar uma história. Mas… ah! quanta coisa você vai estar perdendo!
Em uma piada interna, alguns afirmam que o cinema norte-americano prefere transar e o europeu discutir a relação… Como enxerga essas duas escolas na atualidade, e o que elas perderam e ganharam como estética e técnica desde a sua origem?
Todo mundo hoje gosta de transar. Discutir a relação, em geral é só o Tarantino [Quentin Tarantino, diretor, roteirista, produtor de cinema e ator norte-americano, 1963-], e acaba quase sempre em porrada. Ou coisa pior.
Dos milhares de filmes que assistiu, poderia nos indicar os 10 que de certa forma lhe fizeram ver um mundo de uma outra forma, ou simplesmente fizeram esquecer do mundo durante àquelas duas horas?
Nossa, tem tantos, tantos… Alguns: “Os Sete Samurais”, Kurosawa [Akira Kurosawa, um dos mais importantes cineastas do Japão, 1910-1998]; “Hatari!”, Howard Hawks [produtor, cineasta e escritor norte-americano da era clássica do cinema de Hollywood, 1896-1977]; “Crepúsculo dos Deuses”, Billy Wilder [realizador norte-americano lembrado como um dos mais brilhantes cineastas da sua geração, 1906-2002]; “A Noite Americana”, François Truffaut [cineasta francês e um dos fundadores do movimento cinematográfico conhecido como Nouvelle Vague, 1932-1984]; “Gimme Shelter”, irmãos Maysles [respectivamente os cineastas norte-americanos Albert Maysles, 1926-2015 e David Maysles, 1931-1987] ; “Fantasia”, Walt Disney [cineasta, empreendedor, filantropo e co-fundador da The Walt Disney Company, 1901-1966]; “Amarcord”, Fellini [um dos mais importantes cineastas italianos, 1920-1993]; “Magnólia”, Paul Thomas Anderson [cineasta norte-americano, 1970-]; “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Farias [cineasta carioca, 1932-]; “Blade Runner”, Ridley Scott [diretor e produtor de cinema inglês, 1937-]; e todos do Kubrick [Stanley Kubrick, cineasta, roteirista, produtor de cinema e fotógrafo norte-americano considerado um dos mais importantes cineastas de todos os tempos, 1928-1999].
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