Bruno Natal é documentarista e jornalista, com um mestrado da Goldsmiths, University of London (cursado com uma bolsa de estudos oferecida pelo British Council). Também é cofundador das plataformas Queremos! e WeDemand. Dirigiu e produziu filmes como “Dub Echoes”, sobre a influência do dub jamaicano no surgimento do hip hop e da música eletrônica, além ter registrado alguns dos maiores artistas brasileiros, de Chico Buarque a Jota Quest. É consultor do canal Multishow, colaborando no desenvolvimento de projetos como o Prêmio Multishow da Música Brasileira. Escreveu por 5 anos uma coluna semanal sobre música e cultura digital no jornal O Globo e edita o blog URBe há 16 anos. “A principal revolução do Queremos! foi demonstrar em termos práticos que era possível as pessoas se mobilizarem online para realizar um objetivo comum. Foi uma fase da internet que isso começou a se tornar central, no início da segunda década dos anos 2000. Conseguimos provar que dava sim para mobilizar, juntar gente, mesmo envolvendo dinheiro. Fizemos uma palestra no TEDxRio no primeiro ano da empresa e foi em cima disso, não em cima da história do surgimento Queremos!, e sim dos aprendizados que poderiam ser aplicados pelas pessoas em qualquer negócio”, afirma o polivalente documentarista, jornalista e grande disseminador da cultura digital.
Bruno, como se deu o início de sua carreira?
Sempre gostei de escrever. Fiz faculdade de jornalismo e as coisas começaram a partir daí… No primeiro período escrevi um artigo de opinião para a “Placar” sobre futebol carioca, já que eu tinha muita vontade de escrever sobre esportes. Fiz mais algumas matérias para revista e vi que não ia ser bem a minha praia. Comecei a ir mais para o lado da música, que é a coisa que eu mais gosto de fazer mesmo (que eu mais gosto de ouvir, de interagir…). No início da faculdade fiz um estágio na Conspiração Filmes. Depois fui para a MTV aqui no Rio, comecei um blog e segui. Comecei a escrever no URBe em 2003, mas já teve vários endereços ao longo dos anos e está ativo até hoje. Cheguei a montar um portal de blogs chamado “OEsquema”, com mais três sócios e que contava com 20 blogs no auge da coisa (antes do Facebook tomar conta de tudo). Comecei a botar o meu nome e minha cara na rua para fazer coisas. Nunca mais tive um emprego fixo desde a MTV. Foi sempre alguma coisa no sentido de fazer colaborações, trabalhando como frila e assim foi indo.
Em que momento a cultura digital te “laçou?”.
A minha mãe é médica pesquisadora, na minha casa tem conexão desde 91/92. Quando comecei a mexer em BBS já fiquei impressionado com a possibilidade de acessar bibliotecas de universidades mundo afora. O tipo de conteúdo era bem limitado (basicamente texto), mas fiquei ligado nisso, sempre perto de um computador e sempre mexendo nas coisas. Tive muita sorte de ir crescendo com o desenvolvimento da internet, então sempre viabilizei e possibilitei minhas atividades profissionais através da rede. Sempre fez muito parte pra mim e acho que faz parte do meu pensamento. Tudo que penso tem um viés digital, com aplicação digital ou tem o digital como plataforma. Pra mim as coisas andam juntas e não sei dizer o momento que “laçou”, porque nunca fiz de outra forma. Pra mim, foi sempre um caminho, uma possibilidade e muita sorte de ter também tido isso como possibilidade. A maior parte das coisas que consegui até hoje teria sido impossíveis de realizar numa era pré-internet.
Como analisa a cultura digital em nosso país?
O Brasil é revolucionário em termos digitais. Sempre é o segundo maior em número de usuários nas principais redes e comunidades online. É um país social por natureza, então encaixa muito bem com essa cultura das redes, de interação, sempre dando novos usos e usos não pensados para todas essas plataformas. O Brasil é o segundo colocado por questões econômicas, não de aptidão. Os EUA estão em primeiro porque a inclusão digital por lá é muito maior do que aqui. O Brasil está sempre apontando novas direções. O próprio Queremos!, que fizemos aqui, não tinha sido feito em nenhum outro lugar do mundo. A gente fez tudo usando funcionalidades de vário sites, como o PayPal, combinando várias coisas que estavam disponíveis. O Kickstarter não era uma plataforma aberta, tinha acabado de começar. O Brasil sempre é pioneiro, tem essa verve de criação, e é interessante sempre observar o que acontece por aqui, porque sempre tem uma leitura diferente do uso e exploração das possibilidades.
Gostaria que falasse o que é o Queremos! e como a plataforma surgiu.
O Queremos! é uma plataforma que conecta fãs e artistas para identificar onde existem demandas por shows. Os fãs conseguem se fazer ouvir e os artistas conseguem descobrir onde eles são desejados. A gente começou fazendo crowdfunding para um show do Miike Snow em 2011, show esse que não iria vir ao Rio. A gente queria ver o show, enfim… Alguns dos sócios (eu e mais dois que já éramos do meio da música) conheciam as pessoas, conheciam o Circo Voador e descobrimos os valores. O Circo não queria fazer porque achou que não ia ter gente. Falamos: “A gente consegue juntar o dinheiro de todo mundo e pagar o mínimo. Vocês topam?”. Eles toparam e aí fizemos o crowdfunding, que ainda era um conceito bem novo, as pessoas ainda nem sabiam direito o que significava esse termo. Deu super certo. Conseguimos realizar esse primeiro show neste formato. Foi uma noite de sucesso com mais de mil pessoas na casa. Tínhamos encontrado um formato. Continuamos fazendo, conseguimos financiamento e expandimos a empresa para os EUA. Lá o conceito mudou um pouco e o que foi desenvolvido lá acabou vindo pra cá. Hoje em dia o Queremos! não faz mais crowdfunding praticamente, trabalhando em cima dos pedidos dos fãs e desses dados para gerar informação para produzir os eventos. É uma plataforma de dados aberta onde todos os produtores podem usar. Todos os artistas podem usar e ter acesso aos dados de forma gratuita. Assim a coisa cresceu e hoje já está com 8 anos. Sigo sócio, mas hoje em dia não estou no dia a dia da operação, trabalhando mais com consultoria criativa e desenvolvendo projetos.
A plataforma já foi tida como revolucionária. Quais as principais revoluções você acredita que o Queremos! já realizou?
A principal revolução do Queremos! foi demonstrar em termos práticos que era possível as pessoas se mobilizarem online para realizar um objetivo comum. Foi uma fase da internet que isso começou a se tornar central, no início da segunda década dos anos 2000. Conseguimos provar que dava sim para mobilizar, juntar gente, mesmo envolvendo dinheiro. Fizemos uma palestra no TEDxRio no primeiro ano da empresa e foi em cima disso, não em cima da história do surgimento do Queremos!, e sim dos aprendizados que poderiam ser aplicados pelas pessoas em qualquer negócio. Se foi possível mobilizar através da música, é possível mobilizar para muito mais coisas. Música é um meio super fechado, com vários players e atores já bem colocados e definidos. Conseguimos romper todas as barreiras e botar um show internacional de pé no Circo Voador, simplesmente como fãs, já que não éramos uma empresa. Acho que esse fator é o que ligou e causou tanta conexão com as pessoas, chamando a atenção para o projeto.
Quais as mudanças mais profundas na música e na cultura digital que o site URBe cobriu de 2003 para cá?
Se você pensar que 2003 eu escrevia em jornal impresso e que escrever no site era uma coisa menor… O online era visto como algo menor (tanto em termos de publicação, quanto em termos de publicidade). Hoje em dia isso mudou completamente, 80% de uma verba de uma marca grande é aplicada no digital e 20% na grande mídia. Quando o URBe começou, levava-se uma ou duas horas para baixar um disco, ou seja, mais tempo que o disco tinha. Hoje em dia dia você baixa um filme em 10 minutos e um disco em menos de 1 minuto… A velocidade de conexão, as plataformas, as possibilidades, os usos, a coisa avançou muito. Afinal, estamos falando em 15 anos, uma eternidade no mundo digital. O começo da banda larga sem ser discada mudou muita coisa. Mudou a forma de interação e, de lá para cá, algumas coisas mudaram para pior. Facebook, Google, cada um desses gigantes está criando cercadinhos fechados dentro da internet. Tem pesquisas apontando esses números de uma forma mais exata, mas muitas pessoas pensam que o Facebook ou o Google é a internet. Para quem fazia blogs como eu, ou hoje com o Queremos!, que precisa de canais e veículos para dar vazão para conteúdo e divulgar coisas, você sente a mudança. Tinha o Feed, o Google Reader com feed de notícias. Hoje ninguém vai mais em quase nenhum site, consumindo tudo através de links. Facilitou muito a manipulação dessas notícias, com fenômenos como as fake news e todas as manipulações que estamos assistindo. Estamos atravessando um momento delicado com ajustes dessas coisas. As pessoas precisam entender que ao entregar todas as suas decisões para os algoritmos, por mais que eles sejam filtrados e precisos, você também perde muito do controle do que você está vendo, além do senso crítico. Ir atrás das coisas é muito importante e as pessoas parecem satisfeitas em simplesmente receber informações e conteúdo. Estamos num momento bem delicado, bem diferente de quando o URBe começou.
O que “alimenta” a sua criatividade?
A curiosidade. Estou sempre curioso para experimentar ferramentas novas, possibilidades novas, formatos novos, como eles se adaptam para as coisas com as quais eu trabalho e me interesso. Fico com vontade de experimentar minhas próprias ideias em cada novidade que surge. Isso é o que vai me movendo. Sempre estou buscando um jeito diferente de fazer as coisas e deixar as coisas no limite do que é possível fazer naquele momento. Fico bem instigado com essas possibilidades todas.
Acredita que o documentário “Dub Echoes” foi um divisor de águas em sua carreira como documentarista?
O “Dub Echoes” foi um divisor de águas porque foi o primeiro que fiz. Na verdade, foi o primeiro filme que comecei. Acabei começando a fazer o documentário “Desconstrução”, do Chico Buarque, depois, mas lancei antes de terminar o “Dub Echoes”. O “Dub Echoes” foi o primeiro filme que me propus a fazer. Peguei uma mochila e fui viajar por quatro países (Jamaica, EUA, Inglaterra e aqui pelo Brasil também) atrás de fazer essas entrevistas, fazendo por conta própria. Foi onde aprendi a fazer documentário. Fui fazer um mestrado de documentário com uma bolsa do British Council três anos após fazer o “Dub Echoes”. Foi um filme que demorou quatro anos para terminar. O filme repercutiu muito internacionalmente e até pouco no Brasil, talvez por ser em inglês e pelo tema ser bem específico. O filme rodou festivais no mundo inteiro e para mim, foi muito importante ter feito (além de ser um assunto que amo). Então foi muito importante pra mim sim. Fiz vários outros filmes depois desse, gosto muito de vários deles, mas sempre terei um carinho especial pelo “Dub Echoes”. Gosto destes projetos globais, de conseguir sair do Brasil e de poder falar com mais gente e levar lá para fora as nossas capacidades, mostrando que a gente é capaz de fazer coisas. Esse aspecto do Queremos!, através do WeDemand, me interessa também, poder operar nos EUA, ou seja, dá pra conseguir fazer coisas fora daqui. Nos EUA existe uma facilidade muito grande de ter uma ideia e fazer ela se espalhar pelo mundo, aqui a gente não tem essa facilidade (até pela barreira da língua). Então gosto disso!
Quais ingredientes são necessários para fazer um documentário ser interessante e instigante?
Acho que um documentário para ser interessante e instigante, precisa apresentar uma perspectiva com espaço para o espectador ter uma leitura própria do que está vendo ali. Acho que os documentários hoje em dia, estão num formato de “Wikipédia visual” no qual “cospem” um monte de dados para você ver, uma coisa um pouco preguiçosa. Documentário não é um gênero. É confundido com um gênero, mas não é. É um filme como todos outros, tendo todas as outras possibilidades – você não é obrigado a fazer entrevista ou seguir um formato. Existem filmes ótimos, como “Man On Wire” ou “The Act of Killing”, que exploram o formato para além do que se espera de um documentário. Essa exploração de como conta uma história, o documentarista saber que não existe verdade absoluta (uma ilusão, tudo é perspectiva) é o que transforma a experiência documental em uma coisa interessante.
Jornalista, documentarista, produtor e disseminador da cultura digital. É difícil separar todos esses Brunos ou eles devem sempre remar na direção que você pré-determinou?
Essa pergunta é difícil responder. Até é um pouco confuso pra mim, porque se eu me direcionasse numas, dessas direções especificamente, talvez fizesse mais coisas em volume em cada uma dessas áreas. Gosto dessa pluralidade, de poder explorar esses caminhos todos, essas mídias todas, e a cada hora estar desenvolvendo um projeto de um jeito, mas sempre misturando. Faço muita coisa com filme, com o factual no meio digital. O projeto de lançamento do segundo projeto que fiz com Chico Buarque, “Chico – Bastidores”, lançando o filme em partes, músicas inéditas num site específico para àquele lançamento, é tudo na mesma direção, no sentido de que não enxergo essas coisas como coisas separadas. Pra mim são todas ferramentas para atender um trabalho. Cada trabalho tem um objetivo específico e um uso específico dessas possibilidades. A minha ideia é sempre usar isso tudo como ferramentas para enriquecer e acrescentar no trabalho que estiver desenvolvendo.
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