Sobre as cenas de invasão da parte mais radical dos apoiadores de Donald Trump ao Capitólio no último dia 06 de janeiro, nós nos perguntamos: vai ficar por aí ou vai continuar? Para o advogado Cassio Faeddo, mestre em Direitos Fundamentais pelo UNIFIEO e MBA em Relações Internacionais/FGV-SP, aponta três grandes problemas do mundo ocidental que colocam em xeque a democracia e as instituições democráticas que são as questões identitárias, o capitalismo ultraliberal e o extremismo/intolerância religiosa. “Inimigos não nascem inimigos, se tornam inimigos por uma série de construções intelectuais de valores e crenças. O inimigo não é uma pessoa, mas o medo. O medo do outro. O medo de que o outro vai subverter todo meu sistema de valores, meu emprego, minha família e não tenho como controlar esse processo. Desta forma me reúno em grupos com o mesmo pensamento e passo a defender essa manutenção de valores que estão em transformação. Diria que a falta de educação de boa qualidade – mas não qualquer educação, uma educação inclusiva, que ensine Filosofia e Direitos Humanos pode ajudar nesse caminho. Aqui chamaram de Escola Sem Partido, mas é uma luta de dominação antes de tudo. Com isso diminuirá muito a exclusão, mas não de um dia para outro. É um processo lento e de luta diária”, afirma o sócio do respeitado escritório de advocacia.
Cássio, o que representa a vitória de Joe Biden num momento complexo e incerto?
A vitória de Joe Biden representa uma espécie de “reset” no sistema democrático. Antes de esperarmos grandes transformações na maneira norte-americana de enxergar o mundo, seria mais razoável acreditar apenas a um retorno da prática da política. Os meios de comunicação do governo Biden devem ganhar um caráter mais institucional, sem teorias conspiratórias ou manifestações espetaculosas e distorções usuais em Trump. Espero, como já se demonstrou com a volta ao Acordo de Paris, um retorno ao multilateralismo. Coisas absurdas como o muro na fronteira do México serão abandonadas. A concorrência com a China continuará em pauta, bem como a necessidade de criação de empregos e retomada da economia. A sombra da receita trumpista deverá continuar, ainda que sem Trump. Me refiro aos valores do americano médio, branco, conservador e cristão avesso à imigração, pautas identitárias de gênero e igualdade racial e costumes.
As questões identitárias poderão ter um novo norte com o presidente norte-americano eleito?
Creio que o eleitor cosmopolita, dos grandes centros, terá oportunidade de acompanhar uma gestão mais amena no que se refere aos Direitos Humanos e questões internas de igualdade. Do lado da imigração considero que não haverá uma liberação geral de entrada de pessoas, mas um tratamento mais humano, considerando o fato de famílias terem sido divididas na gestão Trump. É de conhecimento de diversos casos de crianças separadas dos pais. Por outro lado, a imigração na fronteira do México diminui muito; talvez por causa da pandemia e da própria condição econômica que atingiu também os EUA.
Um mundo mais diverso é possível?
Costumes têm perfil muito mais rígido do que leis. Países de common law tem práticas arraigadas em precedentes e costumes, por isso a mudança é mais dolorosa no que se refere ao arcabouço jurídico. Explico, as mudanças sociais ocorrem, mas os precedentes e práticas legais tendem a demorar mais para se adaptar. Um país como o Brasil, com leis em códigos e escritas, tem um processo mais célere de adaptação jurídica para este suporte. As mudanças estão em curso e são inafastáveis. Continuaremos a observar conflitos. O processo será doloroso.
Quem seriam os grandes inimigos da diversidade em nosso planeta?
Inimigos não nascem inimigos, se tornam inimigos por uma série de construções intelectuais de valores e crenças. O inimigo não é uma pessoa, mas o medo. O medo do outro. O medo de que o outro vai subverter todo meu sistema de valores, meu emprego, minha família e não tenho como controlar esse processo. Desta forma me reúno em grupos com o mesmo pensamento e passo a defender essa manutenção de valores que estão em transformação. Diria que a falta de educação de boa qualidade – mas não qualquer educação, uma educação inclusiva, que ensine Filosofia e Direitos Humanos pode ajudar nesse caminho. Aqui chamaram de Escola Sem Partido, mas é uma luta de dominação antes de tudo. Com isso diminuirá muito a exclusão, mas não de um dia para outro. É um processo lento e de luta diária.
Movimentos como o Black Lives Matters teriam surgido com outro presidente que não fosse Trump?
Creio que sim. Não é a primeira vez que a polícia mata por questões raciais nos EUA. Trump é um potencializador. É a gasolina jogada no fogo. Fala para um grupo de supremacistas e relativiza a violência.
É um movimento solidificado em sua visão?
É um processo em estado permanente de construção. Não podemos negar a importância de Martin Luther King, Angela Davis, dos Panteras Negras, dentre outros nesse processo. A novidade foi que nesse processo atual houve uma grande adesão social e influenciou diretamente na eleição de Joe Biden e Kamala Harris.
Quais os resquícios do Trumpismo?
Uma chaga de descrédito no sistema eleitoral norte-americano e na democracia. O conspiracionismo e o empoderamento de radicais supremacistas. Essa sombra permanecerá por muito tempo. Preocupa o fato de já terem ocorrido assassinatos de presidentes e personalidades nos EUA sob essa sombra. Os cuidados com segurança presidencial devem ser imensos.
O Bolsonarismo seria uma imitação menos sofisticada do Trumpismo?
Sem dúvida alguma. É uma cópia genérica e barata das ferramentas utilizadas por Trump para vencer. A diferença é que Trump era um outsider completo que foi avançando contra os filtros do sistema norte-americano que seguram o crescimento desse tipo de aventura política. Aqui não temos esse filtro. Os partidos são, na maior parte, balcão de negócios e tem seus comandantes eternos. De certa forma, como é nossa estrutura sindical. Qualquer um com boa visibilidade e dinheiro, não necessariamente os dois em conjunto, pode se aventurar em uma candidatura. Bolsonaro cresceu em uma linha de gracejo e votação à la BBB. Teve muito espaço na TV e já vinha trabalhando em rede social no estilo de Trump na frente dos demais. Como Trump, quando perceberam, já estava eleito com fundamentos que não eram dele como caça à corruptos, segurança contra bandidos e anticomunismo, o que é uma sandice. Mas colou. Porém, na realidade, Bolsonaro é um político intelectualmente limitado e instintivo.
O capitalismo ultraliberal está morto?
É um sistema manco que dividiu o mundo em que tem emprego (China e Ásia), e quem tem dinheiro, patentes e controle do sistema financeiro.
Com isso, o filho do Seu Zé (personagem fictício), metalúrgico aposentado, além de estudar em uma escola ruim, nem sequer conseguiu ter o mesmo emprego do pai. Alugou uma moto e foi trabalhar sem vínculo para aplicativo. Caiu, quebrou a perna, e não entrou para o INSS porque nunca recolheu. Não vai se aposentar pelas regras aprovadas pelo Congresso em 2019 de forma alguma. Mesmo porque o INSS perderá renda, pois, não há empregos.
São pessoas que não entraram no processo de globalização porque não tem nenhuma forma para tal. A alternativa para elas é o emprego precário, ser famoso de alguma forma ou entrar para a criminalidade para nunca mais sair.
Em algum momento o ultraliberal acreditou que poderia confiar na truculência da autocracia para sobreviver, segurar as manifestações da sociedade excluída, e morar em condomínios fechados. Seja em Alphaville, seja em Mônaco, são condomínios. Ocorre que o fator Trump, o fator Bolsonaro são fora de qualquer controle lógico. Mas, sem dúvida, esse sistema não tem nenhum escrúpulo na manutenção de um déspota esclarecido no poder.
Por fim, não está morto. Está em conflito com um mundo novo e forças sociais mobilizadas.
Que capitalismo deve estar à tona nas próximas décadas?
Nesse processo doloroso poderemos ter dois caminhos, um que considera que não podemos consumir tanto, acreditando que o meio ambiente aguentará, reavaliar processos produtivos globais sustentáveis, regulação de temas sensíveis pelo Estado bem como autorregulamentação, preferencialmente, e reduzir o fluxo de capital improdutivo que é verdadeiro desestabilizador de Estados.
O extremismo e a intolerância religiosa são faces de uma mesma moeda?
Lado A e B de um vinil. Posso ser intolerante, não aceitar nada sem ser extremista. O extremista leva às últimas consequências, incluindo ser violento. A religião vem servindo como um local de acolhimento para a classe social mais pobre prometendo um conforto material que será alcançado pela adoração de Deus e o respeito aos valores bíblicos ou mesmo do Islã conforme interpretação desses grupos.
Coincidentemente esse aspecto da religião ficou mais evidente após o fim do projeto comunista soviético e fim da Guerra Fria. Com a acentuação da globalização e perda de empregos, a miséria aumentou em países periféricos e a crença que Deus pode interferir nisso também. De um lado mais ameno, a classe média também passou a acreditar em conexão com o universo e que se tivesse determinadas posturas e pensamentos o sucesso material aconteceria por milagre. É um fenômeno que decorre basicamente da escassez material.
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