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Cesare de La Rocca se considera um sonhador

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13.700 crianças e adolescentes, a maioria jovens em situação de rua, já passaram pelo Projeto Axé, idealizado, fundado e coordenado pelo italiano Cesare de Florio La Rocca, que nasceu em Florença, mas que mora em Salvador, Bahia, desde 1990. O dado serve apenas como referência, porque a transformação que ele ajudou a gerar é muito maior. Primeiro, porque os números crescem todo dia. Hoje, o Axé assiste a mais de 1.500 crianças e jovens dos 5 aos 21 anos. Além disso, é preciso incluir aí os muitos educadores cujas vidas também foram transformadas para sempre. Por fim, seria preciso incluir a todos nós, que aprendemos com La Rocca, que as crianças não precisam apenas de direitos, mas também de conhecimentos e, mais do que tudo, de desejos. Aos 73 anos, ex-representante no Brasil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), La Rocca pode ser considerado o pai da arte-educação (ou arte e educação sem hífen como costuma dizer), uma metodologia de resgate de crianças em situação de risco que as desperta por meio da estética. “Cometi imensos equívocos pedagógicos, como por exemplo: trazer para o barraco onde eu morava em uma favela daquela cidade, dezenas de crianças sem ter nem como alimentá-las e muito menos como acomodá-las. Graças a Deus, mais tarde experimentei também maravilhosos orgasmos pedagógicos”, afirma.

Cesare, como era a sua visão dos jovens em situação de rua no Brasil, antes de ter um contato mais próximo com essa realidade?

Quando cheguei ao Brasil em Janeiro de 1968, nem sabia da existência de seres humanos vivendo nas ruas das cidades deste país. Ao me defrontar com essa realidade sentimentos imediatos foram de pena e de vontade de fazer algo sem saber o que.

Quando em Manaus decidi de iniciar meu trabalho com as crianças e os adolescentes que viviam na Praça da Matriz, sem saber por onde começar, cometi imensos equívocos pedagógicos, como por exemplo: trazer para o barraco onde eu morava em uma favela daquela cidade, dezenas de crianças sem ter nem como alimentá-las e muito menos como acomodá-las. Graças a Deus, mais tarde experimentei também maravilhosos orgasmos pedagógicos.

Naquela época da Ditatura Militar, os livros de Paulo Freire eram proibidos. Mas, a fama do grande Filósofo da Educação já era grande na Europa e eu tinha conseguido trazer vários de seus livros em particular a “Pedagogia do Oprimido” em vários exemplares escondidos em capas de Bíblias e outros livros religiosos. Essas leituras abriam minha mente e começaram a construir meu perfil de educador.

Poderia descrever o principal impacto desta situação citada acima, quando chegou em Salvador em 1990?

Pelos motivos acima descritos, o meu impacto com as populações de rua em Salvador, não foi tão violento. Já sabia naquela altura que assistencialismo, pena e caridade não resolveriam.

Minha ideia ao fundar o Projeto Axé era fazer deste novo Projeto um efeito demonstrativo que pudesse dizer aos Públicos Poderes, que era possível dar uma resposta a essa vergonhosa situação existencial. Jamais um projeto limitado por sua natureza no tempo e no espaço, poderia resolver a questão. A solução deveria necessariamente passar através de Políticas Públicas, cuja caraterística fundamental é a universalidade. Em 1990 em Salvador no âmbito estadual, no municipal e no da Sociedade Civil, sabia informar quantos eram e onde estavam os meninos e as meninas de rua. Recorri ao Betinho [Herbert José de Sousa, sociólogo e ativista dos Direitos Humanos, 1935 – 1997] do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) para realizar uma ação de contagem e mapeamento. Na base desse resultado tive a certeza que os números eram absolutamente trabalháveis e percebi que o instrumento fundamental seria uma competente ação de Educação de Rua.

Especialistas afirmam que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ainda precisa ser efetivamente aplicado. Como enxerga o ECA atualmente, já que foi um dos redatores do Estatuto?

Nesse assunto eu faço parte do grupo dos que pensam que o ECA está longe, muito longe de sua aplicação. Esse diploma legal é em boa parte do Brasil letra morta. A nível Federal, estadual e municipal persiste uma situação de indiferença em relação ao ECA que diariamente sofre gravíssimas traições.

O senhor foi representante do Brasil no Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Quais as experiências mais fascinantes e traumáticas que relembra deste período?

Na verdade fui vice-representante do UNICEF/Brasil. Essa experiência em um órgão internacional foi extremamente importante para a formação de meu perfil profissional. A possibilidade de conhecer o sistema das Nações Unidas, sua atuação no Brasil e no mundo, sua força junto aos governos nacionais me enriqueceu sobremaneira. A pequena fatia de poder que eu tinha me permitiu de contribuir para grandes avanços na politica do UNICEF no Brasil, sempre respaldado pelo Representante John Donohue. Faz parte desse avanço a dilatação da faixa etária de interesse do UNICEF: do tradicional 0-6 anos, até os 18 anos. Esse processo contribuiu também para que outra agência das Nações Unidas a UNESCO, elaborasse uma política de juventude que influenciou também o Governo brasileiro. Tudo isso faz parte do aspecto muito positivo da minha experiência no UNICEF.

Também tive, porém, experiências traumáticas e desalentadoras em relação aos funcionários internacionais até o ponto de eu tomar a iniciativa de pedir meu desligamento das Nações Unidas.

Por motivos éticos não posso dizer mais sobre esse assunto.

Gostaria se possível, que o senhor falasse um pouco mais da sua metodologia arte-educação, que tem trazido resultados extraordinários no resgate de crianças em situação de risco.

No começo do Axé existia uma Coordenação de Educação e algumas poucas atividades de cunho artístico-cultural. Com o avançar da experiência, juntamente com minhas companheiras e meus companheiros percebi que não podia haver uma separação entre Arte e Educação, mesmo reconhecendo suas respectivas peculiaridades uma vez que as duas têm a mesma missão. A missão é a transformação do ser humano. E no Axé, então, passamos a eliminar o hífen entre Arte e Educação para afirmar com vigor que as duas devem estar em permanente celebração de aliança. A afirmação inicial da importância da Ética no processo educativo, acrescentamos então a Estética.

Todos os seres humanos independentemente da sua condição social, têm direito a viver sob o signo da Ética e a maravilha da Estética. Diante da obra de arte a criança experimenta uma dúplice explosão: torna-se ao mesmo tempo fruidora e produtora da obra de arte. Joãsinho Trinta me ensinou desde minha chegada ao Brasil, que: “Quem gosta de miséria é o intelectual. O pobre adora a beleza”.

No Axé as crianças aprendem desde cedo a conhecer, amar e admirar todas as representações artísticas universais: da arte indígena, à africana, à oriental, à renascente e à contemporânea. Assim a arte educa e a Educação é uma obra de arte. Meses atrás no mais importante Museu da Cidade de Nápoles (Itália), num domingo de entrada gratuita e com o Museu lotado de visitantes, uma criança se aproximou do diretor do Museu e perguntou: “o senhor poderia me dizer qual é a coisa mais importante desse Museu?”. O diretor respondeu: “Você”. Uma maravilhosa resposta, sobretudo porque é verdadeira. Uma criança que se alimenta de beleza, se torna então, símbolo e promessa de uma sociedade melhor.

Quando acreditou que o projeto Axé poderia se tornar viável e transformador?

Os cinco anos de convivência no UNICEF com Paulo Freire me convenceram gradativamente que esse projeto ainda sem nome e que eu carregava debaixo dos braços, poderia sair do papel e se tornar uma realidade. Desde o início, eu pensava aos destinatários desta construção ainda somente teórica: as crianças, os adolescentes, os jovens que ninguém quer. E quando da minha saída do UNICEF, para colocar em marcha esse Projeto ainda sem nome, o Mestre Paulo Freire me disse: “vai fundo!”.

Mais tarde percebi que o maciço investimento do Projeto Axé na formação dos seus recursos humanos estava dando resultados admiráveis na competência deles e nos resultados com as crianças. Quando os profissionais da comunicação me perguntaram: “Quais são as coisas mais importantes a serem observadas num projeto como o Axé?”. Eu respondo sem hesitação: “Formação, formação, formação”. Posto que educação não é fruto de improvisação. É indispensável construir uma proposta teórica que sustente a práxis sócio-artístico-pedagógica. Educadores sem consistência teórica e sem amor pelo estudo esgotam rapidamente suas atividades pedagógicas que se tornam vazias, não convincente e sobretudo sem resultados, gerando no educador frustração e sentimento de fracasso e no educando a sensação de ter sido uma vez mais, enganado. É assim que um Projeto sem epistemologia, ou seja, uma teoria do conhecimento, não é um Projeto, é uma farsa.

Por que a redução da maioridade penal, não irá resolver os problemas, como já disse em uma certa oportunidade?

A redução da maioridade penal não somente não resolve o problema, mas é uma pérfida injustiça para com os adolescentes que não tiveram oportunidades oferecidas pelo Poder Público de acesso a Escola Pública e de qualidade, alimentação adequada, acesso a recreação e ao esporte, convivência familiar e comunitária adequada. O Estado omisso e culpado, resolve punir as vítimas dessa sua incompetência com o rebaixamento da maioridade penal, condenando-os a ingressar no sistema carcerário violador dos mais elementares Direitos Humanos, cruel com os detentos e absolutamente incapaz de educar qualquer ser humano. Já trabalhei no cárcere de menores em Milão – Itália e nunca me escandalizei que naquele país a responsabilidade penal comece aos 14 anos, uma vez que o Estado garante os direitos fundamentais de suas crianças.

Portanto reafirmo meu vigoroso não à redução da maioridade penal!

Quais as maiores dificuldades encontradas quando se está à frente de um projeto da magnitude do Axé?

Muitas dificuldades enfrentei desde início das atividades do Projeto Axé. Algumas de ordem politica, outras que continuam até hoje de natureza financeira, outras enfim e as mais dolorosas, da incompreensão, da pequenez e mesquinhez da inveja e do “ódio do sucesso de alguém”. Apenas para citar uma, lembro que quando decidimos colocar a Arte, a Cultura, a Beleza, a Estética como primazia do Projeto Axé, fomos sumariamente crucificados acusando-nos de sermos sonhadores. As pessoas diziam: “que Arte, que Arte! Essas crianças precisam só que vocês encham as barrigas delas”.

Hoje decorridos 26 anos, quem é que trabalhando nessa área não fale e, sobretudo não afirme de utilizar juntamente Arte e Educação?

Por que o senhor acredita que é impossível educar uma pessoa sem a participação da arte?

O episódio que narrei do Museu di Capodimonte na cidade de Nápoles, coloca em evidência o porquê é impossível educar sem Arte, sem Beleza, sem Estética, sem Cultura. A dúplice explosão de que falei antes claramente evidencia a sede e a fome de Beleza que animam a criança. Hoje eu sou ainda mais ousado e afirmo com força que não somente é impossível educar sem a Arte mas que é impossível construir um mundo melhor sem a Arte e a Beleza.

O senhor se considera um artista-educador ou um ativista?

Nenhuma das duas coisas. Tive a sorte de nascer e ser educado na cidade de Florença e ter completado uma parte da minha formação na cidade de Nápoles. Meu perfil de fruidor da obra de arte e meu imenso amor pelo conhecimento, mudaram meu perfil humano e profissional. O Brasil, em particular a Amazônia e a cidade de Salvador, que eu defino como a Florença Tropical, enriqueceram e diversificaram meu perfil.

Hoje me considero um incorrigível sonhador de pés no chão e de olhos abertos. Juntamente com minhas companheiras, e com meus companheiros e nossas crianças, com convicção afirmamos que somos os Anarquistas da Imaginação.

Como enxerga o projeto Axé num futuro próximo?

Que ele não exista mais. Não porque não haverá mais crianças, adolescentes, jovens e adultos em situação existencial de rua. Mas porque os Públicos Poderes terão transformando um projeto, por sua natureza limitado no tempo e no espaço, em Politica Pública cuja fundamental caraterística é a universalidade.

Esse não é apenas um sonho impossível de ser realizado. É uma utopia no sentido que os gregos atribuíam a essa expressão: “Alguma coisa que ainda não existe, mas que pode vir a existir”.


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