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Chicago: ganância e corrupção sem limites

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Há algo de deliciosamente perturbador na forma como Chicago, a famosa peça da Broadway, continua atual. Criada nos anos 1970 para satirizar um Estados Unidos afogado em escândalos, ela chega a 2025 com o frescor de quem nunca saiu do noticiário. Nada envelhece tão bem quanto a corrupção, a ganância e a súbita vocação artística de criminosos que, ao pisarem em um palco — literal ou figurado —, encontram redenção instantânea. Em Chicago, tudo é espetáculo. E quando tudo vira espetáculo, a verdade se torna apenas um detalhe incômodo, facilmente maquiado com plumas, brilho e um bom refrão.

O musical sempre funcionou como espelho das fraquezas humanas. Mas hoje parece mais um manual de sobrevivência política, social e mediática. Velma Kelly e Roxie Hart, as anti-heroínas de moral duvidosa, seriam facilmente influencers de milhões, convidadas de podcasts, tema de threads infinitas no X ou estrelas de realities de “reconstrução de reputação”. O crime compensa? Não oficialmente. Mas dá engajamento — e isso, em Chicago, é uma moeda mais valiosa que o dólar.

“Mas Chicago não quer apenas entreter. Ele cutuca, provoca, esfrega na nossa cara o quanto somos fascinados pela glamurização da decadência. Talvez seja esse o verdadeiro motivo para sua longevidade: a peça não fala apenas dos personagens; fala do público que a consome.”

Outro ingrediente que mantém a obra tão irresistível é o cinismo institucional. O sistema judicial retratado em cena é uma caricatura tão exagerada que o público ri. Mas basta olhar para a vida real — tribunais disputando manchetes, advogados celebridades, jurados seduzidos pelo espetáculo — para perceber que a sátira já foi ultrapassada pela realidade. Se Bob Fosse estivesse vivo, talvez pedisse desculpas por não imaginar algo ainda mais absurdo. Ou, bem ao estilo do musical, reivindicaria direitos autorais sobre a atualidade.

E há, claro, o elemento moral. Ou, melhor, a absoluta falta dele. As personagens de Chicago não pedem perdão; pedem atenção. Não querem justiça; querem aplausos. Não buscam regeneração; buscam permanência nos holofotes. A ética é um sapato apertado — útil para desfilar, impossível de usar por muito tempo. Talvez seja justamente essa franqueza amoral que torna a peça tão hipnotizante: ela não nos trata como crianças. Chicago entende perfeitamente que o público gosta de condenar… mas adora ainda mais assistir ao caos.

Onde termina a sátira e começa o retrato?

A grande provocação do musical é perguntar em que momento deixamos de ver aquelas figuras como exageros cômicos e passamos a reconhecê-las como vizinhos, colegas, autoridades, artistas e nós mesmos. Billy Flynn, o advogado mais carismático e manipulador dos palcos, poderia dar palestras motivacionais sobre “gestão de narrativa”. Roxie e Velma seriam analisadas por sociólogos como produtos perfeitos da cultura do espetáculo — transformando tragédias pessoais em trampolim profissional. E a imprensa, no musical tão faminta por sangue quanto por melodrama, continua exatamente igual: basta uma história sórdida com potencial de trending topic para derreter qualquer pretensão de seriedade.

A estética impecável ajuda a disseminar a mensagem. Chicago é noir, é jazz, é brilho decadente, é grotesco estilizado. E aqui reside outro mérito: a peça mostra que a corrupção raramente se apresenta de forma feia. Ela é sedutora, ritmada, divertida. A moral da história? O mal chega raramente com cara de mal — às vezes, ele canta e sapateia. E quando canta bem, quase esquecemos de que está ali para enganar.

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Mas talvez o ponto mais intrigante seja como a trama desmonta a ideia de que a justiça é cega. Em Chicago, ela vê tudo — mas escolhe quem olhar. E, claro, os holofotes decidem quem merece simpatia e quem deve ser esquecido. Nada mais moderno. Hoje, os julgamentos se iniciam bem antes das salas de audiência, travados em timelines e transmissões ao vivo. O veredito é uma etapa burocrática de um espetáculo que começou muito antes do juiz bater o martelo.

O público, cúmplice silencioso, sai do teatro encantado com a coreografia, com a ironia afiada, com a reviravolta final. Mas Chicago não quer apenas entreter. Ele cutuca, provoca, esfrega na nossa cara o quanto somos fascinados pela glamurização da decadência. Talvez seja esse o verdadeiro motivo para sua longevidade: a peça não fala apenas dos personagens; fala do público que a consome. De nós.

Chicago é noir, é jazz, é brilho decadente, é grotesco estilizado. Isso é mérito (Foto: Arquivo)
Chicago é noir, é jazz, é brilho decadente, é grotesco estilizado. Isso é mérito (Foto: Arquivo)

No fim, Chicago permanece relevante porque seu tema central — a capacidade humana de transformar crime em espetáculo e espetáculo em absolvição — nunca sai de moda. O musical é uma denúncia, mas também é um alerta e, quem sabe, um pedido sutil para olharmos menos para as plumas e mais para o que está sendo acobertado por elas. Porque, no fundo, a pergunta que Chicago deixa suspensa no ar não é “quem matou?”, mas “quem vai lucrar com isso?”. E, atualmente, a resposta parece cada vez mais óbvia.


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