Christian Dunker nasceu em São Paulo, em 1966 e estudou no Colégio Visconde de Porto Seguro. Formou-se em Psicologia pela Universidade de São Paulo em 1989, onde frequentou também os cursos de Filosofia e Ciências Sociais. Envolveu-se com a reconstrução democrática desta universidade, participando da fundação do Centro Acadêmico Iara Iavelberg, sendo seu primeiro diretor-geral no período da abertura política. Desde 1990 articula prática clínica e docência universitária, tendo lecionado em várias universidades paulistas. É mestre e doutor em Psicologia pela USP. Realizou pós-doutorado em 2001, supervisionado por Ian Parker e Erica Burman, na Manchester Metropolitan University, pelo qual foi laureado como “Pesquisa Inovadora em Crítica e Linguagem”. Em 2004 torna-se professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Em 2007 defende tese de Livre Docência, publicada na Inglaterra e no Brasil. É psicanalista membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano (A.M.E.) com ativa participação na disseminação do pensamento de Jacques Lacan no Brasil. Junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr. fundou o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip-USP). “De fato, todo sintoma traz uma espécie de encargo, de exigências ou condições que demanda trabalho psíquico”, afirma.
Professor, quais os maiores avanços da psicanálise nos últimos dez anos e que não chegaram ao grande público?
Os psicanalistas, especialmente no Brasil, parecem estar mais sensíveis às transformações da vida cotidiana, do universo do trabalho e da vida digital, trazidas pela última década, com especial relevância para a mutação social do lugar do sofrimento. Pessoas com uma vida em estrutura de viagem, com períodos intermitentes fora de casa ou com zonas de pressão de demanda são atendidas uma, ou duas vezes por semana, ou conforme a demanda e a disponibilidade. Há muita gente que recorre ao uso do e-mail, Skype e do Whats para trocas pontuais. Há uma convivência muito mais aberta e produtiva com formas religiosas, práticas corporais e interveniências alquímicas pessoais, induzidas pelo uso disseminado e errático de substâncias psicoativas. Diria também que a quantidade de processos decisionais amorosos, profissionais e sociais que temos que enfrentar junto com nossos pacientes é muito maior. Adquirimos assim um papel cada vez mais ativo na qualificação neste processo, equilibrando o trabalho de reconstrução de nossa história como o esforço de implicação com nossos sonhos. A imagem de passividade silenciosa do psicanalista associada com longas extensões de terapia ficou para trás, junto com sua aura de pertencer a um outro planeta e seu baixo envolvimento com as coisas da vida terrena e prática.
Além disso, temos que destacar que ela se tornou cada vez mais acessível em termos de honorários e distribuição pela cidade. Claro que isso levanta uma série de novos problemas em torno da perícia, da qualificação e da eficácia da formação dos psicanalistas. De certa maneira a psicanálise se adaptou bem a um mundo que exige estudo e formação constante, pois, ela já pregava este modo de vida. Por outro lado, isso estava associado com o fato do psicanalista ser um tipo de intelectual. Hoje, com a mudança na figura do intelectual há psicanalistas ligados mais a arte, mais a política, às instituições de saúde, educação e justiça. Isso é um fenômeno bem brasileiro, que alguns associam ao nosso atraso e outros as circunstâncias favoráveis que você pode ter na periferia do mundo. As clínicas públicas de psicanálise, que se disseminaram de norte a sul do país, com os psicanalistas em suas cadeiras de praia, escutando as pessoas que passam pela praça Roosevelt ou pela Casa do povo, é uma experiência que estamos exportando para outros países. Hoje se você vai a um congresso de psicanálise em Paris ou Roma, em New York ou Estocolmo os brasileiros são respeitados como uma espécie de terra onde estamos nos reinventando. Saímos dos consultórios e estamos ajudando a pensar e a agir sobre o sofrimento das pessoas onde quer que elas estejam, em Altamira no Pará ou na Cracolândia em São Paulo. Não nos organizamos nem como uma extensão do Estado, nem como uma empresa neoliberal, não somos nem uma igreja, nem exatamente uma ciência tecnológica. Essa é uma grande contribuição para o jeito de fazer as coisas.
Como as dispersões e as opções trazidas pelo mundo tecnológico, estão afetando a nossa psique?
De muitas maneiras, mas aqui seria preciso alguma humildade para dizer: ainda não sabemos exatamente como. Isso é próprio das grandes revoluções tecnológicas. Quanto tempo demorou para que acordássemos como uma civilização capaz de ler e escrever? Quantas guerras, quantas reformas e contrarreformas aconteceram antes disso? Quanto tempo levou para descobrirmos que a tecnologia da radioatividade continha perigos para a vida humana. No começo, usavam-se as ideias de Madame Curie para vender pílulas de radônio nas farmácias. Não é legal aumentar a “energia” das pessoas? Pois, é, morreram todos. Leva pelo menos três gerações para você entender o que algo realmente revolucionário significa. Eu que vivi as primeiras transmissões de e-mails e fiz minha dissertação de mestrado em uma máquina de escrever, só posso esperar que meus netos entendam o que isso quer dizer. Mas tentando ser mais direto e sintético na reposta. Nossa relação com o tempo muda. Desaprendemos o que é o tempo da fala, onde você não pode esperar para responder quando quiser, e se quiser e passamos para o tempo em estrutura de escrita.
As relações entre a experiência pública e a privada da subjetividade entraram em parafuso, e com isso que antigamente se chamava intimidade. Práticas ou ideias laterais, contra-hegemônicas, desviantes ou simplesmente erráticas encontrara um novo lugar expressivo e uma nova forma de articular seu reconhecimento. Com isso vozes suprimidas e pessoas que antes tinham que se contentar em sofrer silenciosamente por não caber nos dois ou três vestuários disponíveis prêt-à-porter com os quais tinham de viver suas vidas, agora ganham visibilidade. Por outro lado, isso vale também para o que havia de pior em nosso esgoto relacional e que demanda os mesmos direitos de existência e representatividade. Em outras palavras, o mundo ficou maior e menor ao mesmo tempo. Nesta torção inesperada nosso narcisismo sofre de uma síndrome generalizada de inadequação. Acreditamos em lorotas de Facebook sobre a felicidade alheia, ainda que saibamos que elas são falsas. Somos presas fáceis de Fake News e de pós-verdades banais. Achamos que porque agora toda a informação está disponível na web todo mundo virou professor ou coach.
Esse caminho é sem volta?
Ainda bem que é. Realmente não queria voltar para minha adolescência vendo os mesmos filmes repetidos na Sessão da Tarde. Nem para o tráfico de livros raros do Lacan, de quem ninguém tinha cópia e usava uns piratas argentinos horríveis. Por outro lado, a volta vai acabar acontecendo se você tem um mínimo de leitura da história. Nossa obsessão futurista, junto com nossa paixão pela potência do novo, se chocará com forças regressivas, obscurantistas e conservadoras. Depois da Revolução Francesa veio a Restauração, depois da Grécia de Péricles o Império Romano. A volta, portanto, vai vir e acho que ela já começou a dar sinais e manifestações. A questão decisiva vai ser: qual história queremos? Qual história esta época precisa atrás de si para se justificar?
O século XXI é o momento de maior solidão e estresse da nossa história?
De certa forma esse é um lado pouco iluminado de nossa época, ou seja, de como ela espera e demanda certas habilidades psicológicas superpotentes, sem qualquer preparação ou formação para isso. Nosso entendimento médio de como funcionamos subjetivamente é abaixo da crítica. Foi 40 anos de discurso dizendo que seus problemas são derivados de uma deficiência cerebral geneticamente determinada. Suas dificuldades são no fundo problemas como a diabete: falta insulina no seu pâncreas, assim como falta serotonina ou dopamina no seu cérebro. Basta repor. Mas a moral da história é que seu sofrimento não tem nada que ver com você: com seu estilo de vida, com a forma como você se interpreta, com a forma como você se cria uma unidade de sentido para sua vida. Ora, isso foi uma mentira que agora temos que voltar atrás. Como o neoliberalismo econômico: tira o Estado da economia e vai dar tudo certo, basta austeridade que a mão invisível vai nos salvar. Falso. 2008 está aí para provar. Na hora “h” vai precisar sair fora da bolha do indivíduo e salvar os bancos senão todos nós vamos para o brejo. Na hora “h” vai precisar sair da bolha do seu egoísmo senão vamos todos para o brejo ambiental-ecológico.
Mas enquanto isso ainda vivemos formas anacrônicas de individualismo cujo horizonte é a solidão da independência e da autossuficiência. Sim, a solidão é o destino esperado e previsto para a forma de individualização do mito neoliberal. Óbvio que quando você se acredita um “self-made man” (e “man” aqui não é ao acaso), você precisa acreditar que os outros são tão egoístas como você e que a vida é uma luta hobbesiana de todos contra todos. Hora, comece a se convencer que a vida é uma guerra, e só isso, para ver se você não fica estressado depois de um tempo? Ansiedade e depressão são os efeitos previstos para este modo de sofrer nesta forma de vida. Só há um conceito pior do que o de stress na psicologia do século XXI, que é a ideia de baixa autoestima. Esta crença de que se o Outro te ama você jamais ficará sozinho e tudo vai dar certo é o retorno do reprimido de uma civilização que se acredita salva pela forma indivíduo para sofrer, para morrer e para viver. Ninguém precisa voltar aos anacrônicos ideais de coletividade feliz rousseaunianas para se livrar disso. Não tem nada que ver com ser ruim e bom em essência, porque não temos essência. A essência é vazia, já diziam Sartre e Lacan. Não precisa massacrar o comunismo, mais uma vez, e demonizar tudo que comece ou termine pela palavra “social” para ver que não vai dar certo sozinho. O que está havendo aqui é uma confusão entre solidão, como mito narcísico da onipotência, com a solitude, experiência de si, com desamparo e vazio.
Quando uma pessoa se torna refém de uma neurose obsessiva?
Somos sempre um tantos reféns de nossos sintomas. Aliás, eles são sintomas justamente porquês e impõe a nós de forma coercitiva e ultrapassando nossas pretensões de controle. A noção de “refém” traduzi essa contingência do sintoma porque ele a remete a imagem de que algo ou alguém que está nos impendido de agir livremente, mas também ideia de que é preciso pagar um resgate para nos libertarmos. De fato, todo sintoma traz uma espécie de encargo, de exigências ou condições que demanda trabalho psíquico. Por isso quanto mais sintomas e quanto menos cuidamos deles menos “tempo e interesse” sobra para outras coisas na vida. Daí a importância de saber quais sintomas, de perceber que eles são diferentes de pessoa para pessoa e de que eles podem ser melhor ou pior cuidados. Tendemos a supervalorizar aqueles que tem sintomas parecidos com os nossos e a subvalorizar os que sofrem de maneira diferente. Tendemos achar que os sintomas são fases da vida, reações a um mau acontecimento, respostas a uma realidade que uma hora vai passar, ou que eles são simplesmente causados pelos outros, seja o outro seu próprio cérebro. Criamos palavras para designá-los, como se estas palavras por si só mudassem alguma coisa: excesso de trabalho, chefe perseguidor, stress ou baixa autoestima.
Esse erro tem que ver com nossa interpretação de que como eles são coisas que se impõe contra nossa vontade, só podem vir do outro, sem considerar que há um Outro em nós. Um Outro formado por aspectos, experiências e dimensões que não lembramos ou não queremos admitir. Na neurose obsessiva, por exemplo, a pessoa sofre com “pensamentos”, pensamentos recorrentes, envolvendo acontecimentos trágicos ou infelizes, pensamentos que adquirem poderes mágicos de fazer as pessoas se sentirem culpadas ou de que magicamente “coisas” vão acontecer só porque você pensou. Isso pode evoluir para rituais, e jeitos rígidos ou obrigatórios de agir e proceder que os outros não entendem, mas que para a pessoa tem que ser necessariamente assim. Às vezes ela inventa histórias mirabolantes para justificar isso, outras vezes isso faz realmente todo sentido racional e prático, mas nem por isso deixa de ser sintomático, lembremos o sintoma não se define pela sua irracionalidade ou disfuncionalidade apenas, mas também por seu aspecto de “coerção mental”. Há muitos que integram seus sintomas de tal maneira em sua personalidade que ele pensa que renunciar a eles seria abrir mão de ser com se é, atacar sua personalidade ou seu jeito de ser. De fora e raciocinando juridicamente alguém poderia dizer: qualquer um deve ter o direito de cumular coisas na sua própria casa, mesmo que ela fique atulhada de caixas até o teto (como os acumuladores fazem). Qualquer um deve poder recolher animais abandonados na rua até povoar sua casa com felinos ou cães. Qualquer um deve poder comprar o que bem entender, mesmo que isso crie um rombo na conta, afinal é parte da liberdade da pessoa fazer o que bem entende com seu dinheiro ou com sua casa, ainda que nós não o fizéssemos com a nossa. A questão aqui é que quando falamos em “refém” temos algo que é a contra a lei. Quando falamos de sintomas que nos deixam reféns, às vezes isso envolve a falta de percepção e a vontade de “permanecer refém de si mesmo”.
Como se livrar dessa instabilidade emocional?
O primeiro passo para cuidar melhor de seus sintomas, e se isso dá certo eles vão gradualmente perdendo sua função, até que deixem de se tornar necessários, é reconhecer sua existência. Muitas vezes eles não atrapalham tanto, por isso achamos que uma hora eles vão ir embora, tão misteriosamente como apareceram. Depois considere que todo sintoma é uma espécie de forma evoluída de uma experiência de sofrimento. Esta experiência pode ser aguda como o trauma ou crônica como um tipo de relação. Toda forma de sintoma é uma solução que encontramos para conflitos, e alguns de nossos conflitos são estruturais, ou seja, não elimináveis. Por isso respeite seus sintomas, não queira investir contra eles apenas com mais ordem, disciplina, fé ou força de vontade. Entenda que, por mais ridículos e incompreensíveis que eles sejam, eles têm uma razão de ser.
Compreenda que existem certos afetos que costumeiramente rondam os sintomas: vergonha (você sente que só você tem esta “encanação”), culpa (mesmo sabendo que você não fez nada sente que isso é uma fragilidade ou uma vulnerabilidade sua, de sua família ou de quem cuida de você), nojo (que leva a certas evitações que nem você consegue explicar), medo (que pode se manifestar como inibições, evitações e reatividade) e o mais geral e constante afeto de angústia (que pode aparecer como dores de barriga na criança, como insônia ou irritação, como cansaço crônico ou labilidade de humor, como falta de concentração, como sentimento de opressão ou ansiedade aguda chamado pânico, ou como ameaça difusa de que em algum momento algo terrível vai acontecer). Cuidado com sua forma de vida, atenção e escuta para consigo mesmo, bons tratos emocionais ajudam a diminuir os efeitos genéricos de instabilidade e incerteza que acompanham os sintomas. A psicoterapia, a psicanálise e outras tantas abordagens de tratamento pela palavra são um meio para enfrentar estes sintomas, assim como as abordagens medicamentosas, para as quais, neste caso se recomenda um psiquiatra (não basta o seu ginecologista, o seu nutrólogo ou o clínico geral que te passa uma receita e você fica repetindo ela indefinidamente). Freud dizia que a psicanálise objetiva no fundo, algo tão simples como difícil de alcançar: a capacidade de amar e trabalhar. Estes também, quando a gente consegue são dois protetores de nossa vida psíquica. Quando conseguimos nos entender com eles cumprem uma função de autocura, mas é também por isso que a neurose costuma atacar estas duas dimensões da vida limitando, empobrecendo e minando nossa capacidade e o nosso gosto por amar e trabalhar.
Quando nos tornamos autossabotadores sem perceber?
Quando ignoramos que nossos sintomas têm sempre e inequivocamente uma estrutura de repetição. Sabotar-se é uma estratégia para nos desviar de nosso desejo, e sim, o desejo não é simples de suportar, muitas vezes preferimos nos afastar dos conflitos que ele traz a enfrentar o preço que eles demandam de nós. Há os que fracassam justamente porque quando se aproximam do sucesso percebem como junto com ele vem a inveja, vem a solidão, os interesseiros, os novos inimigos e adversários mais poderosos, a expectativa dos outros, o ódio e a perfídia dos concorrentes, além disso, há o temor por novas decepções que aumentarão o tamanho da queda e a dor causada por um erro. Ora, isso tudo são bons motivos para recuar do que se quer.
Como fugir de comportamentos que nos levam para o caminho da autossabotagem?
“Sabotar” vem de “tamancar”, fazer mal feito, fazer de forma tosca, gerando assim imperfeições e apressamentos que se voltam contra nós. Autossabotagem sugere, frequentemente, falta de cuidado consigo, por isso interpretamos quando isso acontece e quando conseguimos, minimamente nos escutar, que passamos por cima de nós. O sabotador é uma figura da espionagem, ele corre atrás das linhas inimigas, geralmente disfarçado e tentando cortar suprimentos ou interromper planos. Para evitar sabotagem comece por se amigar de seus inimigos internos, conhecer do que eles são feitos e como eles se repetem em suas ações.
Há algum tempo, o senhor falou sobre a indústria do sofrimento. O que norteia essa indústria?
Em última instância o conceito de indústria liga-se ao modo de produção, mais ou menos regular, feito por procedimentos de racionalização, anônimos e impessoais, tendo em vista o lucro, quer por acréscimo de desempenho, quer por diminuição de custos. A indústria do sofrimento, considerada como um conjunto de práticas que visam mitigar o mal-estar é tão velha quanto a medicina e a religião, no entanto, desde os últimos 40 anos ela assumiu um novo feitio. Isso se deve a práticas de indução de sofrimento com o objetivo direto e gerencial de aumentar a produtividade. Esta é uma demanda moral por trás do neoliberalismo, deixem-nos livres para impingir resultados impraticáveis, jornadas de trabalhos infinitas intermitentes ou precárias, bônus aleatórios, microgestão sádica do seu cotidiano, avaliacionismo 1x24x365. Sem falar em incitação maníaca ou narcísica da performance exibicionista e da individualização do fracasso, como culpa ou depressão.
Há quarenta anos ficou claro que se poderia inventar novas formas de sofrimento de trás para a frente, por exemplo, determinados efeitos psicoativos poderiam ser a cura para uma doença que é descrita pela exata coincidência destes mesmos sinais invertidos. Desistimos de procurar causas reais e nos contentamos com causas operacionais. Se pudermos ser treinados para contornar nossos sintomas ou viver uma vida de evitação em relação aos “gatilhos” de nossos sofrimentos isso já terá sido suficiente. Se vivermos uma vida cronicamente determinada pela modulação química de nossa paisagem mental isso poderá nos colocar em contato com o plano de metas conhecido como felicidade. Hoje há uma extensa bibliografia científica sobre como inventar novas doenças, considerando sua viabilidade econômica para o público consumidor e sua justificativa administrativa legitimada por universidades. Psiquiatras transformaram-se em técnicos proletários emissores de receitas, que não conseguem mais falar com seus pacientes, porque os planos de saúde demandam minutos de atenção. Psicoterapeutas competindo com fórmulas morais e disciplinas alimentares que continuam a nos persuadir que todo mal-estar pode ser reduzido a uma constelação de sintomas, e que toda forma de sofrimento são sintomas que ainda não foram apropriadamente nomeados.
Qual o papel da mídia para o crescimento dessa indústria?
O papel da mídia aqui é ambíguo. Por tempo demais ela enterrou Freud e os antigos tratamentos da alma, em nome de fórmulas mais acessíveis e práticas, por outro lado, uma parte dela, mais crítica sempre insistiu ou pressentiu a indústria do sofrimento como extensão e efeito colateral da indústria cultural. Fez se pouco em divulgação científica nesta área, no contendo com a informação periódica de que dados e números sobre consumo de medicação e expansão de diagnósticos.
Como fugir dessa indústria?
Uma indústria deste tipo nos alcançou a todos e é só por isso que podemos agora sentir os efeitos de uma crise global em saúde mental, ou seja, porque ela se tornou muito mais uniforme e homogênea do que jamais foi. Tivemos o fim dos debates teóricos em psicopatologia, e a competição entre abordagens clínicas e psicoterápicas parece ter se reduzido ao cognitivismo de um lado e a psicanálise do outro. Resistência senão fuga desta indústria passa por suspender rotinas de pensamento em torno de fórmulas genéricas e impessoais para enfrentar o sofrimento. A escuta em comunidade, a fala em primeira pessoa, as experiências de intimidade e compartilhamento do sofrimento são muito importantes para não nos vermos apenas gritando segunda a partitura que nos foi imposta.
Novas formas de sofrer podem ser contadas, lembrando que o sofrimento depende da narrativa na qual ele se apresenta, mas também das políticas de reconhecimento e partilha sobre ”quem, como e de que maneira pode sofrer” e quem deve permanecer em silêncio culpado. Cuidado com slogans religiosos que desdenham do sofrimento como parte da vida e da relação com o sacrifício, incitando a vida de realização e prosperidade mágica. Cuidado com rotinas de tratamento artificial do sofrimento: compra terapia, academia de ginástica em vez da academia de saber. Evite formas de vida baseadas na pressão, de segunda a sexta seguida de descompressão desordenada e etílica de sábado e domingo. Substitua conversas e experiências de baixa qualidade pela busca de alguma excelência na arte de viver.
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