Dante Gallian é bacharel, mestre e doutor em História Social pela FFLCH-USP, com pós-doutoramento pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, França. Professor universitário desde 1990, lecionou em instituições como Universidade Presbiteriana Mackenzie e Universidade Federal de Santa Catarina. Desde o ano 2000, é docente e diretor do Centro de História das Ciências da Saúde (CeHFi) da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde criou e desenvolveu o Laboratório de Leitura – atividade de formação humanística e ética fundamentada na leitura e discussão dos clássicos da literatura universal. Professor orientador no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva da EPM-UNIFESP e coordenador da linha pesquisa “Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde”, com financiamento da FAPESP. Gallian é também professeus visiteur na EHESS de Paris, França e Visiting Researcher no Center of Humanities and Health do King’s College London, Reino Unido. Laureado com o Prêmio Viva Leitura de 2014 (OEIA, Fundação Santillana e Ministério da Cultura) e homenageado na Brooklin Fest de 2016 pelo projeto do Laboratório de Leitura. É autor de dezenas de livros, com destaque para “A Literatura como Remédio: os Clássicos e a Saúde da Alma”, publicado pela Editora Martin Claret, em 2017.
No seu mais recente livro “A Quietude é Chave”, o escritor Ryan Holiday, afirma que os livros são uma fonte para encontrar a quietude. A literatura é uma arma infalível para os momentos turbulentos que estamos vivendo?
Sim, sem dúvida! Michèle Petit, estudiosa francesa que pesquisou o poder da literatura em situações de vulnerabilidade, em seu livro “Ler o Mundo” (Editora 34), apresenta uma imagem muito bela e verdadeira: o livro como uma cabana. Partindo do relato de centenas de pessoas em várias partes do mundo, ela constata que, para muitos, o livro (e mais especificamente a literatura de ficção) apresenta-se como um espaço, como um refúgio, um lugar de proteção e de encontro do leitor consigo mesmo, com sua intimidade. Nas pesquisas que venho realizando encontro as mesmas imagens, assim como na minha própria experiência pessoal. Para mim, de fato, o livro é um espaço de fuga da turbulência do mundo, de quietude, mas não uma fuga alienante. Muito pelo contrário; uma fuga que desperta a consciência e permite voltar à realidade num outro patamar de percepção e compreensão. A literatura nos enche de coragem, de esperança e de força para enfrentar os desafios da vida.
Quais foram os maiores efeitos da literatura em sua vida em especial?
A literatura foi e tem sido para mim aquilo que dela fala Montesquieu: uma experiência de ampliação da esfera do ser. A literatura tem sido para mim um meio privilegiado de conhecimento do humano e de autoconhecimento; um instrumento de transformação, de humanização. A literatura tem me tornado uma pessoa mais consciente e mais feliz, apesar do conhecimento revelar também o lado escuro da vida.
Existem livros que não valem a pena serem lidos ou todo livro tem o seu valor?
Lembro-me de um conto de Virginia Woolf, “Uma Sociedade”, em que uma das personagens cai num choro inconsolável diante das suas companheiras. Estas sabiam que o pai da pobre chorona tinha deixado uma cláusula em seu testamento condicionando o usufruto da sua herança somente depois que esta tivesse lido todos os livros da biblioteca de Londres. As solidárias amigas acreditavam que o choro da pobrezinha se devia a esta disposição absurda, porém, ela explica que o problema não estava em ler toda a biblioteca, mas no fato de a grande maioria daqueles livros serem tremendamente ruins! Sim, infelizmente a maior parte das coisas que se escreve e se publica é sofrivelmente ruim. A vida é muito curta para gastarmos nosso tempo lendo coisas inúteis ou ruins. Provavelmente sempre se encontrará algo de valioso em qualquer livro, porém, prefiro ler aqueles que sei que são intrinsecamente valiosos, como os clássicos, por exemplo.
Em que momento o senhor considera que uma obra passa a ser imortal?
As obras imortais nascem imortais. Nem sempre, entretanto, é fácil identificar um clássico no seu nascedouro. Mas, na medida em que o tempo passa e a obra permanece, o seu caráter imortal começa a ficar mais evidente. É assim que reconhecemos um clássico. As obras imortais assim o são porque, de alguma maneira, conseguiram, nas suas circunstâncias culturais, linguísticas e históricas, traduzir, de algum modo, a experiência humana de forma perene e universal.
Shakespeare talvez seja um dos maiores exemplos dessa imortalidade. Por que acredita que o autor foi um dos grandes artífices na busca pelo que está inserido na alma humana?
Creio que a genialidade que produz obras imortais é a combinação de inúmeros fatores, porém, há dois que certamente se destacam: a amplitude e profundidade da experiência humana do autor e sua capacidade de traduzir esta experiência em palavras e imagens. Shakespeare é um exemplo clássico. Como todo gênio literário, ele se apropria da sua língua e a recria, elevando-a a um novo patamar. E isso com uma leveza e uma graça desconcertantes. Tal façanha ele realiza não como resultado de um jogo ou um desafio autoimposto de caráter soberbo, ou vaidoso, mas como uma necessidade expressiva. A necessidade e o desejo de traduzir de forma muito peculiar os movimentos e dinâmicas da alma humana. No caso de Shakespeare, creio que ninguém como ele tenha conseguido caracterizar melhor a forma como as paixões nos acometem, nos dominam e nos enlouquecem.
Ler com os olhos em silêncio ou em voz alta, qual é o melhor caminho para reter as informações de uma obra?
O objetivo essencial da leitura de uma obra nunca pode ser o de reter as informações que nela estão contidas. A leitura autêntica, proveitosa, é aquela que possibilita a vivência da obra; é aquela que nos arremessa para o seu interior, franqueando-nos a participação na intimidade com as personagens, com os sentimentos e pensamentos do autor. A leitura, para ser plena, deve transcender o nível meramente intelectual, cognitivo, aproximando-se mais de uma experiência amorosa – e nesta, o que menos importa são as informações. Neste sentido, ler em silêncio ou em voz alta é algo que deve ser definido a partir da qualidade da nossa relação com a obra. Será ela quem nos pedirá: leia-me em silêncio; ou anuncia as palavras que lês para que me escutes melhor e para que os outros possam escutar também.
Quais os livros mais perturbadores que o senhor já leu?
Entendendo o termo “perturbadores” no sentido de abalo existencial e de impacto vivencial. Destaco, dentre muitas que em maior ou menor grau tiveram esse efeito, “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski, e “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
Algum livro já lhe deu a sensação de interrogação no final da leitura?
Todos os livros bons devem, necessariamente, nos deixar com a sensação de interrogação no final da leitura. Um livro que não desperta questões é um livro que não vale a pena ser lido.
Como incutir o hábito da leitura em uma população que não lê em sua grande maioria?
O hábito da leitura não é algo que possa, nem deva ser incutido. A leitura, volto a insistir, deve ser fruto de uma necessidade existencial, e não de uma necessidade instrumental. A única forma de cultivar um hábito saudável e verdadeiramente humanizador (e, portanto, prazeroso e permanente) de leitura na população é tentando mostrar que ler tem a ver com amar a vida, o mundo e a si mesmo.
Qual a influência que o senhor trouxe da faculdade de medicina para a sua vida de historiador?
Que para cuidar do corpo é preciso antes cuidar da alma. E para cuidar da alma não há melhor remédio do que a literatura.
Quais os 5 clássicos que todo ser humano deve ler antes de morrer?
Além dos dois citados acima (“Irmãos Karamazov” e “Grande Sertão: Veredas”), recomendo: “Odisseia”, de Homero; “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri; “Dom Quixote”, de Cervantes e “Hamlet”, de Shakespeare. Com esse são seis. Foi um a mais! E no entanto ainda é tão pouco…
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