Denise Courtouké é atriz e escritora. Atuou ao lado de artistas como: os diretores teatrais Antunes Filho e Ulysses Cruz, o dramaturgo Samir Yaszbek, o ator Ângelo Antônio, a atriz Letícia Sabatella, o compositor e pianista André Mehmari, o dançarino e coreógrafo catalão Andrés Corchero, o ator e coreógrafo Min Tanaka, o maestro japonês Seiji Ozawa, a cantora lírica Jessye Norman, o dançarino e coreógrafo Tadashi Endo (Japão/Alemanha), além da dançarina e coreógrafa Tess de Quincey (Austrália). Realizou projetos de escrita, dramaturgia, dramaturgia do ator e do corpo em teatro, ópera, cinema e dança. Atualmente lançou a obra “Escrita das Névoas”. Em Escrita das Névoas”, os fatos históricos envolvendo essas várias etnias que formam o mosaico do Brasil, são descritos através da sagacidade de Francesca, que escreve sobre apagamento histórico, preconceito racial, intolerância, discriminação de gênero, discriminação e mitos sobre o deficiente visual e outros assuntos que compõem momentos do tecido histórico da realidade brasileira e dos muitos povos que aqui convivem. Abra o livro e entre nas névoas! Você vai se emocionar e transformar em uma jornada rumo a uma aventura desconhecida por territórios novos. “Diria que as observações externas foram fundamentais para que eu pudesse conceber esse livro, porque fui colher informações em diversas fontes para desenvolver os assuntos sobre os quais eu queria fala”, afirma a autora.
Denise, como as observações externas foram fundamentais para a escrita de “Escrita das Névoas?”.
Diria que as observações externas foram fundamentais para que eu pudesse conceber esse livro, porque fui colher informações em diversas fontes para desenvolver os assuntos sobre os quais eu queria falar.
E as suas reflexões internas?
Alguns escritores fazem pesquisa antes de começar a escrever, no meu caso, faço antes e durante a escrita do livro, porque por mais que eu planeje um livro, que eu saiba sobre o que quero falar e como vou falar sobre isso, acontecem muitas surpresas e mudanças conforme começo a escrever e a história pode tomar rumos inesperados. Todo o material colhido durante a pesquisa, encontra com o mundo subjetivo do autor e é transformado através desse encontro.
Cada livro vai se fazendo de um jeito, alguns livros demandam mais pesquisa, outros são mais caóticos e intuitivos. Julgo que “Escrita das Névoas” é uma mescla de todos esses tipos de processos.
O Brasil tem atualmente 6,5 milhões de pessoas cegas. As pessoas estão “cegas” para essa parte da população?
Na verdade, são 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual, entre cegos e pessoas com baixa visão, de qualquer forma, os problemas que eles enfrentam são muito parecidos. Acredito que temos incontáveis problemas sociais no Brasil atualmente, entre eles, a falta de políticas públicas para essa população, o descaso e o preconceito de ordem estrutural em relação aos cegos e outros tipos de deficientes, que infelizmente, ainda se encontram à margem da sociedade e não participam da vida social tanto quanto seria possível e desejável. Quanto menor a localidade em que o deficiente visual vive, pior é seu cotidiano, não tem acesso a trabalho, tem enormes dificuldades para se locomover, porque via de regra, transporte público e vias públicas não contam com acessibilidade; teatros, museus, cinemas estão despreparados para a inclusão do cego e de pessoas com outras formas de deficiência.
Segundo o IBGE, em pesquisa do ano de 2019, no Brasil, apenas 4,7%, das calçadas são acessíveis para pessoas com deficiência física, por exemplo. Em São Paulo, o índice é irrisório e vergonhoso, apenas 9% das calçadas são acessíveis a essas pessoas, o que significa que 91% não o são, um número assustador. Isso significa que se o deficiente físico não tem acesso, o cego muito menos, que precisa que as calçadas tenham pisos podotáteis para que possa se locomover.
Você trabalhou com cegos em instituições no Rio de Janeiro e São Paulo. Quando está mais próximo do problema, a empatia se torna mais forte?
Sim, se torna mais forte, porque você começa a imaginar como seria a sua vida, se você vivesse na pele de uma daquelas pessoas, que são muito parecidas com você, mas que tem um impedimento real que é a cegueira ou baixa visão. Você percebe que elas dependem de uma série de ajustes para poder viver suas vidas com todo o potencial a que tem direito, porque são pessoas com capacidades e talentos incríveis, que se tornam desperdiçados por falta de oportunidades. Você se lembra que para chegar onde está, em termos profissionais, por exemplo, você teve uma série de oportunidades, incentivos e percebe que a quantidade de incentivos e oportunidades que as pessoas cegas, ou com baixa visão tem ou tiveram é muito menor, ou seja, é uma situação muito injusta.
Qual foi o maior aprendizado que você absorveu dessas pessoas?
Admiro sua resiliência, sua força e coragem. Enfrentam comportamentos preconceituosos diariamente, muitas vezes enfrentam maus tratos. Ouvi relatos de cegos, que me contaram que foram roubados, empurrados, levaram surras, pelo simples fato de serem cegos. Admiro sua capacidade de acordar todos os dias e mostrar que são extremamente capazes de realizar qualquer coisa a que se propuserem.
Quais os problemas de acessibilidade que poderiam ser resolvido facilmente e que não são?
Nenhum problema, no que tange ao tema acessibilidade, é fácil. Meu romance “Escrita das Névoas”, tem Ouro Preto, Minas Gerais, como cenário. O IPHAN tem estudos e propostas de ações detalhadas sobre acessibilidade para cegos e deficientes visuais, mas como se trata de uma cidade histórica, de patrimônio histórico, as medidas devem ser implantadas com cuidado para que não haja uma descaracterização desse patrimônio.
Em termos gerais, faltam iniciativas contundentes por parte da sociedade e instituições. O cidadão precisa ser protagonista dessas iniciativas, caso não se torne protagonista, acho muito difícil chamar a atenção de políticos e governantes sobre o tema, porque deficiência não é um dos temas relevantes na pauta da grande maioria dos políticos brasileiros. A pressão popular é essencial, para que a pauta da deficiência se torne um tema relevante, uma prioridade.
A cada iniciativa, é necessário ter consciência de que a pessoa cega existe, que o deficiente de qualquer espécie existe, seja na construção de um shopping, de um cinema, teatro, hospital, centro esportivo, em termos de planejamento urbano, de criação de políticas públicas e privadas para a admissão de pessoas com deficiência em escolas, no mercado de trabalho e em todas as esferas da vida social.
O preconceito é velado contra as pessoas cegas?
Sim, infelizmente o preconceito ainda é velado. Creio que ainda se quer manter os deficientes, assim como os idosos, longe dos olhos da sociedade, creio que ainda são considerados um problema, um estorvo.
Em que momento você acredita que a arte exerce um papel social?
Julgo que a arte sempre tem um papel social, porque interfere na trama da sociedade através de uma história, de um roteiro de cinema, de uma narrativa visual, afinal a arte é uma atividade humana feita para humanos, nessa medida é uma atividade social que expõe aspectos de uma determinada sociedade, comenta ou retrata uma determinada sociedade, ou época.
“Escrita das Névoas” está exercendo esse papel?
Certamente. Através da história de Francesca, uma advogada de sucesso que após enfrentar uma grave doença fica cega, o livro se posiciona sobre diversos assuntos polêmicos como discriminação racial, de gênero, em relação aos deficientes visuais, através da voz da protagonista que é a narradora da história.
O lado cultural do livro também chama bastante atenção dos leitores.
Com certeza, a história se passa numa das mais lindas cidades históricas do Brasil, então é natural que o livro desenvolva uma narrativa sobre patrimônio histórico e memória cultural. O livro trata de assuntos como alimentação e gastronomia, legado histórico e cultural dos imigrantes e da cultura africana no Brasil. A protagonista é descendente de gregos e italianos e acaba resgatando parte dessa memória através das suas pesquisas, num processo de reelaboração de sua identidade depois que fica cega. Através de uma forte história de amor que vive com um brilhante pianista negro, chamado Josias, Francesca redefine mais uma vez os contornos da sua vida, causando polêmica na cidade ao se envolver com um homem negro.
As palavras superação e autoconhecimento estiveram muito presentes em alguns relatos sobre o livro. Elas [palavras] definem a sua obra em sua visão?
No caso desse romance pode-se dizer que são palavras que atravessam o livro, mas eu não diria que o definem, definir é uma palavra muito definitiva e esse livro é feito de outras palavras como incerteza, reflexão, emotividade e subjetividade. Esse livro tem essa leveza, porque quanto mais nos tornamos disponíveis ao que é impermanente, ao que se compõe através do fluxo, mais leves nos tornamos. Pelo que ouço, através de pessoas que entram em contato comigo nas redes sociais ou de avaliações de pessoas que leram o livro e deixaram isso registrado no site da Amazon, onde é possível encontrar o livro: é uma leitura deliciosa de se fazer, transformadora, emotiva, que faz a reflexão, que fala do social, sem romantizar, e, no entanto, sem peso, com um coração quente em busca da beleza, do diálogo e do amor.
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