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Ermínia Maricato fala da exclusão social radical

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Ermínia Maricato possui graduação (1971), mestrado (1977), doutorado (1984) e Livre Docência (1996) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Professora visitante da University of British Columbia/Center of Human Settlements, Canadá (2002) e da University of Witswaterhand of Johannesburg, África do Sul (2006). Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo (1989/1992), Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1998/2002) e Ministra Adjunta das Cidades (2003/2005). Foi consultora ad-doc da FINEP, CAPES, CNPQ, FAPESP, e também de inúmeras prefeituras no Brasil e no exterior. Criou o LABHAB – Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP (1997) e formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades. Prêmio Juan Torres Higuerras da Federação Panamericana de Associações de Arquitetos, em 2006. Prêmio Arquiteto do Ano 2007 da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas. Conferência de abertura da World Planning Schools Congress (México, 2006). Presidente da Comissão de Pesquisa da FAUUSP (2007/2009) e Membro do Conselho de Pesquisa da USP (2007/2009). Possui um vasto leque de publicações e contribuições em trabalhos científicos, dentre os quais podemos destacar “A Cidade do Pensamento Único” e “A Produção Capitalista da Casa (e da cidade) no Brasil Industrial”.

A senhora é uma das maiores autoridades na questão urbana no Brasil. Como vê a questão urbana em nosso país no momento?

A sociedade brasileira tem um histórico de desconhecimento da questão urbana. Há muita invisibilidade sobre a dimensão da informalidade urbana e das consequências desse processo de produção de cidade sem Estado e sem mercado (formal). Isto significa muita desigualdade (social, econômica e racial) e muita predação ambiental (córregos, rios, praias, por exemplo, poluídos por esgoto e lixo sólido). A outra face dessa moeda é a formação de um mercado imobiliário para poucos, isto é, o acesso à moradia via mercado imobiliário não atende nem metade da população do país. As políticas públicas também não atendem a maioria. Portanto, há uma determinação estrutural para a exclusão urbana que faz com que uma parte da população brasileira more em favelas e isto seja visto como um “defeito” ou culpa dos moradores. Mas nossas raízes históricas explicam essa realidade.

Fomos um país com população predominantemente rural durante mais de 450 anos e somos predominantemente urbanos há pouco mais de 60 anos. Atualmente perto de 85% da população brasileira mora em cidades. Apenas para dar uma ordem de grandeza em números absolutos, entre 1940 e 1980, período de maior crescimento industrial no Brasil, a população urbana aumentou em 71 milhões de habitantes! Imagine a construção dessas cidades sem a presença do Estado, do mercado, de engenheiros ou arquitetos, sem leis ou alvarás. Poderíamos dizer que temos pouca tradição de pensar cidades e direitos, mas o fato é que temos pouca tradição de pensar (e implementar) direitos universais. Durante 388 anos convivemos com a escravidão. Nossa desigualdade, nosso preconceito racial tem raízes profundas.

Tivemos algum avanço?

Sim. Em especial durante o processo de redemocratização do país, entre final dos anos 70 e início do século XXI, o Brasil viveu uma experiência de política urbana nos governos municipais, com propostas inovadoras e significativa participação social. Esse ciclo teve, inclusive, um reconhecimento internacional. As denominadas “Prefeituras Democráticas” foram resultados do crescimento de movimentos urbanos que reivindicavam melhores condições de vida (moradia, transporte, saúde, creches…) com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica e partidos políticos emergentes. A iniciativa mais conhecida desse período foi Orçamento Participativo replicado em mais de 2.800 cidades em todo mundo.

Outras iniciativas mais conhecidas foram os corredores de ônibus; os centros de estudos em tempo integral para crianças e adolescentes (com aulas complementares de esportes, artes e cultura) denominados CEU em São Paulo; a urbanização de favelas (o Favela Bairro foi o maior programa desse tipo que aconteceu no Rio de Janeiro); o programa de construção de moradias com participação de moradores e assistência técnica (arquitetura de qualidade e preço baixo) que iniciamos no governo Erundina em São Paulo), entre tantos outros. Mais recentemente, como um ponto fora da curva, na gestão Haddad, São Paulo assistiu um avanço considerável na política de mobilidade com a integração da bicicleta que resultou num surpreendente sucesso. A política de segurança alimentar também foi inovadora. Mas nesse período o Brasil já havia deixado para trás o ciclo virtuoso do poder local, ou das prefeituras democráticas que foram um sucesso em todo o país, de norte a sul.

A conjuntura política e econômica atual atrapalham a questão urbana em quais sentidos?

A crise econômica internacional de 2008 foi retardada, mas atingiu o Brasil em 2014. No entanto, foi a partir de 2016 que tem o início significativo do aprofundamento da desigualdade e da informalidade no trabalho quando é posta em prática a receita de austeridade fiscal preconizada pelo ideário neoliberal. O congelamento dos gastos sociais (com a PEC 95, que congelou investimentos em saúde e educação, por exemplo) e o aumento da pobreza (1 milhão de pessoas passa da linha da pobreza, a cada ano, desde 2015, segundo o IBGE) tem uma expressão territorial urbana. Ela fica evidente no aumento do número de moradores de rua em todas as nossas grandes cidades. Estima-se que São Paulo tenha mais de 20.000 pessoas morando nas ruas. Entre elas há famílias inteiras.

Tornar as cidades urbanas menos desiguais ainda é o maior desafio da nação?

Do ponto de vista quantitativo talvez sim mas, se considerarmos os ataques que camponeses sem terra, indígenas, quilombolas vêm sofrendo, é difícil fazer uma classificação hierárquica dos nossos desafios. Além dessas eu colocaria entre os grandes desafios a questão da segurança alimentar, da preservação das florestas e mananciais de água, da mobilidade urbana… enfim, o que não faltam são desafios.

Quais são as iniciativas bem-sucedidas e que considera perto do ideal quando se fala em habitação no Brasil?

Tive a felicidade de participar da criação de uma política de produção habitacional que foi muito bem-sucedida e evoluiu até chegar ao PMCMV com o nome de Minha Casa, Minha Vida Entidades. Infelizmente essa modalidade de produzir moradias recebeu apenas 2% do orçamento total do programa. Como eu já registrei esse programa recebeu elogios inclusive em universidades prestigiadas e inspirou uma tradição de participação social de cooperativas e assessorias técnicas de arquitetos, engenheiros e assistentes sociais na gestão dos empreendimentos. Durante 30 anos foram desenvolvidos, em várias cidades do Brasil, muitos exemplos que mostram que é possível fazer moradias de boa qualidade construtiva e arquitetônica a preços razoáveis.

Entretanto, a política habitacional não pode se restringir a construção de casas novas. A maior parte da nossa população constrói suas próprias moradias sem ajuda de engenheiros e arquitetos, sem alvarás, sem financiamento, sem observância da abundante legislação de uso e ocupação do solo. Uma política habitacional deve incluir a melhoria dessas moradias e desses bairros já construídos. E deve incluir também a regularização fundiária. Já temos tradição no Brasil de desenho de políticas habitacionais que consideram a realidade, os problemas e a diversidade das nossas cidades. Infelizmente o setor empresarial só consegue enxergar o déficit habitacional e a saída pelas novas construções.

A construção de residências em áreas distantes do centro urbano foi uma falha em sua visão. O que deveria ser feito para minimizar esse fato?

Esse é o maior desafio a ser vencido: ocupar à terra urbana de forma racional do ponto de vista social, econômico e ambiental. Evidentemente temos conhecimento técnico para isto. Temos Planos Diretores em todas as cidades com mais de 20 mil habitantes como determina o Estatuto da Cidade. Temos inclusive uma legislação avançada: os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade, o Estatuto da Metrópole, além da legislação ambiental. Mas interesses poderosos, ligados à produção e exploração do espaço urbano, nos impede de implementar a função social da propriedade e a função social da cidade, além dos direitos à moradia e à mobilidade, previstos na Constituição Federal. A construção de uma cidade mais includente e democrática exige a regulação pública do solo urbano. Não estou me referindo a nenhuma ideia radical. Os países cujas cidades e paisagens admiramos tanto fazem isso: Suíça, Holanda, Dinamarca, Itália, França, Alemanha… Radical é a nossa exclusão social.

O Minha Casa, Minha Vida tem mais erros ou acertos?

Se olharmos a matriz financeira do PMCMV veremos uma virtude única na história do país: construir moradias, dirigidas especialmente para a população de baixa renda, com altos subsídios. Mas a matriz fundiária-localizar grande parte dessas moradias fora da “cidade” — comprometeu profundamente o desenvolvimento urbano tornando-o menos sustentável econômica e ambientalmente. O movimento especulativo incluiu, com muita frequência, a ampliação do perímetro urbano pelas Câmaras Municipais para acomodar, legalmente, conjuntos habitacionais em áreas distantes do tecido urbano consolidado. Com isso muita terra vazia entrou no mercado urbano de terras aumentando os preços e diminuindo as hipóteses de um desenvolvimento mais sustentável. Terras vazias atravessadas por infraestrutura e serviços (água, esgoto, asfalto, iluminação pública, coleta de lixo, transporte coletivo, etc) tendem à valorização. Chamamos a esse modelo de urbanização dispersa.

O ex-ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, disse que as prefeituras podem realizar fraudes no programa, por isso a reformulação é necessária. Tem a mesma percepção?

Tenho a opinião contrária. Quanto mais as decisões forem concentradas, num país territorialmente tão vasto quanto o Brasil, menor é a chance do controle social e maiores as oportunidades dos lobbies dominarem. Defendo a volta do modelo de relação federativa que deu mais autonomia aos municípios, acordada na Constituição Federal de 1988. É neles que a democracia direta pode florescer e a participação capilar acontecer: nos bairros, nas praças, escolas, igrejas…

Os Planos Diretores viraram instrumentos de politicagem?

Os Planos Diretores nunca foram eficientes para dar orientação às nossas cidades. É muito frequente que os planos sejam aplicados a uma parte da cidade apenas, onde domina o mercado formal e o Estado regulador está presente. O professor Flávio Villaça cunhou o conceito de “Plano Discurso”: uma peça que tem, em parte, um caráter ideológico de suprir uma expectativa. Não nos faltam planos bem elaborados e nem leis avançadas. Mas eles e elas quase não dialogam com a cidade informal que, em muitos casos, constitui a maior parte das cidades. Avançamos timidamente com propostas de regularização fundiária e urbanização de áreas precárias por meio das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, previstas no Estatuto da Cidade.

Por que as propriedades da terra e dos imóveis no Brasil continuam sendo um nó?

O poder político e social no Brasil está historicamente ligado à detenção de patrimônio. Propriedade de escravos e, depois, propriedade da terra eram condições de mando. O processo de libertação dos escravos cuidou para que a mão de obra livre não tivesse acesso à terra, portanto, não conquistasse autonomia. Em algumas cidades médias do Brasil essa oligarquia está muito presente e viva não apenas nos nomes das ruas, mas na propriedade de imóveis, nas disputas dos investimentos públicos e na definição da legislação urbana. Em algumas regiões, a relação dos proprietários com os cartórios de imóveis é muito forte como revelam pesquisas em todo o país. A soma das terras registradas no Pará equivale a mais de duas vezes a superfície do Estado (ver Revista FAPESP n. 279, maio de 2019). Mas temos muitas patologias semelhantes também aqui em São Paulo.

Gostaria que a senhora falasse sobre o projeto BR Cidades.

Durante 50 anos me dediquei a estudar as cidades como professora de graduação e de pós-graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Militei nos bairros da periferia de São Paulo junto às CEBs da Igreja Católica nos anos 70 e 80. Tive duas experiências em governos, uma na prefeitura de São Paulo e outra no Governo Federal. Fui Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e 1992. Na segunda experiência fui trabalhar na transição dos Governos Lula e Fernando Henrique Cardoso para criar o Ministério das Cidades onde permaneci entre 2003 e 2005. Foi tudo muito intenso: algumas vezes muito estimulante, algumas vezes dolorido. Ao perceber a regressão nas condições de vida urbana tive de lidar com minha frustração. Após me aposentar tomei a decisão de dedicar o resto dos meus dias a combater o que chamo de “analfabetismo urbanístico” na sociedade brasileira. Não via nenhuma saída de curto prazo. Certamente seria um trabalho de formiga e eu não viveria para ver algum resultado significativo nesse país continental com 175 milhões de pessoas vivendo em cidades.

A Frente Brasil Popular iniciou um processo de repensar o Brasil, diante de tantas mudanças nacionais e internacionais, e me convidou para coordenar o GT de Cidades com a professora da USP, Karina Leitão. Escrevemos um manifesto e postamos nas redes sociais. Convidamos intelectuais, profissionais e lideranças sociais para formar uma rede horizontal que recebeu o nome de BrCidades – Um projeto para as cidades do Brasil. Nossa iniciativa explodiu. O sucesso entre os jovens têm sido espetacular. Hoje estamos em 15 Estados da Federação e 25 universidades além de termos parceiros em muitas entidades sociais, profissionais e de pesquisa. Estamos fechando, em fevereiro, uma agenda nacional para as cidades brasileiras e vamos iniciar projetos para cada cidade onde temos núcleos atuando. Não vetamos o debate eleitoral, mas ele está muito longe de ser nossa prioridade. Estou impressionada com o entusiasmo do trabalho voluntário (que chamamos de trabalho livre) em torno do debate sobre as cidades. E tudo isso se dá com um orçamento próximo de zero. Adquiri a convicção de que a reconstrução da democracia brasileira vai passar pelas cidades.


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