Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, Minas Gerais em 1961, é filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas. Graduou-se em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e trabalhou em diversos jornais até se mudar para São Paulo em 1990. Em 2003, tornou-se escritor em tempo integral. Seu primeiro romance, “Eles Eram Muitos Cavalos”, publicado em 2001, recebeu o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2005 iniciou a série “Inferno Provisório”, concluída em 2011, que ganhou o Troféu APCA, e os prêmios Jabuti e Casa de las Americas, tendo sido reeditada, em sua forma definitiva, em volume único, em 2016. Lançou ainda os romances “Estive em Lisboa e Lembrei de Você” (2009), “Flores Artificiais” (2014) e “De mim já nem se lembra” (2015), todos pela Cia das Letras. Seus livros estão publicados em 11 países. É também organizador de diversas antologias de contos, envolvendo temas como racismo, homossexualidade, futebol, corrupção, etc. Em 2014, lançou um livro de crônicas, “Minha Primeira Vez”, pela Arquipélago. Em 2016 ganhou o Prêmio Internacional Hermann Hesse, na Alemanha. É consultor de literatura do Instituto Itaú Cultural e colunista semanal da edição brasileira do jornal El Pais. “A importância cada vez maior das redes sociais na vida das pessoas nos impõe uma reflexão mais aprofundada”, afirma o escritor
Luiz, como a literatura entrou na vida do menino que já foi operário da indústria têxtil, pipoqueiro e atendente de armarinho?
Foi assim: meu pai era pipoqueiro e eu, seu ajudante. Um domingo, um homem aproximou-se e, após comprar um pacote de pipoca, perguntou se eu estudava e onde. Antecipando-se, meu pai declinou o nome do Ginásio Antônio Amaro, um lugar de ensino ruim. Surpreso, o homem indagou por que não me matriculava no excelente Colégio Cataguases, instituição pública que congregava os filhos da elite local. Meu pai explicou que todos os anos tentava, mas nunca havia conseguido. Condoído, o homem, apresentando-se como diretor da escola, prometeu que arranjaria uma vaga para mim. Então, no início do ano letivo seguinte, lá estava eu no Colégio Cataguases, enfrentando a franca hostilidade dos colegas, que me lembravam a todo momento minha origem pobre, filho de lavadeira e pipoqueiro. Assim, decorridas apenas duas semanas, tornou-se claro que não me adaptaria àquele ambiente. Ao mesmo tempo, não podia frustrar as expectativas de meus pais, que acreditavam que o simples ingresso ao mundo de pessoas melhor situadas financeiramente me garantiria um futuro melhor. Tentei me tornar invisível, deslizando acuado rente às paredes da escola, até descobrir, sem querer, um enorme salão vazio, silencioso e pouco iluminado, que passei a frequentar. Ao me observar sempre por ali, quieto, sem nada fazer, a bibliotecária pensou talvez que eu quisesse fazer um empréstimo, mas que, por algum motivo, timidez talvez, não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, me chamou, colocou um livro na minha mão e disse: “Leve, leia e devolva daqui a cinco dias”… Em pânico, não contestei. Peguei a brochura, coloquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca.
Ao chegar, meu pai questionou, como fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, “O que é isso, menino?” Respondi, sem graça: “Um livro”. Ele: “Onde você pegou isso?!” Eu: “Peguei não, a moça lá do colégio que deu”… Ele: “Como assim?!” Eu: “Ela falou pra eu ler e devolver”. Ele: “Se ela falou pra ler e devolver, leia e devolva, que não quero nada dos outros aqui não!” Dois dias depois, aliviado, depositei o volume sobre o balcão e já me afastava, ligeiro, quando a bibliotecária, desconfiada, indagou: “Você leu o livro, menino?” Eu: “Sim, senhora”. Ela, feliz: “Que bom!” E, virando-se para a estante, tomou outro título e disse: “Tome este, leia e devolva em cinco dias”. Contrariado, mas obediente, peguei a brochura, coloquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca. Ao chegar em casa, meu pai questionou: “O que é isso, menino, não entregou o livro pra mulher, não?” Respondi que sim, esclarecendo, aborrecido, que aquele era outro… Ele, impaciente, falou: “Então leia e devolva logo!” Dois dias depois, aliviado, depositei o volume sobre o balcão, crente que me livrava de um tormento, quando a mulher indagou: “Você leu este também, menino?” Eu: “Sim, senhora”. Ela, exultante: “Que ótimo!” E, virando-se para a estante, tomou outro título e disse: “Tome, leia e devolva em cinco dias”. Contrariado, mas obediente, peguei a brochura, coloquei na pasta e deixei rapidamente a biblioteca. Enfim, a bibliotecária transformou minha vida num inferno… Eu lia os livros que ela me impingia, devolvia e, cada vez mais feliz com minha voracidade, me repassava outros volumes… No fim do ano, inadaptado, deixei o Colégio Cataguases e voltei a estudar no Ginásio Antônio Amaro, à noite, retomando minha vida. Mas o vírus da leitura já havia me contaminado…
Você é formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Existiu algum fato em especial que fez você optar pelo mundo das letras?
Na verdade, não. Na minha época havia duas opções para um adolescente pobre como eu melhorar de vida: passar num concurso do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica Federal ou formar-se em um bom curso técnico. Em Cataguases havia uma escola do Senai, excelente, que oferecia mão de obra qualificada para a indústria têxtil local. Só que sempre formava excedentes e, por isso, todo fim de ano letivo empresas enviavam representantes do RH para fichar todos aqueles alunos que quisessem trabalhar nas montadoras e metalúrgicas do ABC. Era emprego certo com salários muito bons. A questão é que, quando me formei em tornearia-mecânica, o ABC estava em crise por conta das greves e ninguém ia mais para lá… Então, ao invés de São Bernardo, me dirigi a Juiz de Fora, onde arrumei trabalho numa oficina mecânica, e à noite cursava o terceiro ano, pois queria pelo menos completar o segundo grau. Certa feita, um sujeito me perguntou, por acaso, se eu pretendia continuar estudando e eu confessei que não pensara ainda sobre o assunto. Ele disse que, como havia uma universidade pública na cidade, que eu procurasse me informar se tinha algum curso relacionado ao meu trabalho. Um dia, passando em frente a um cursinho pré-vestibular, entrei e peguei um folheto com a relação das carreiras oferecidas pela universidade.
Perguntei ao atendente como deveria me preparar para o vestibular e ele, olhando meu macacão sujo de graxa, falou, com desdém: “Tem que estudar muuuuuito!” Fui para a pensão onde morava, encontrei na lista de cursos a rubrica Comunicação, que relacionei com telecomunicações, e decidi que iria passar nas provas. Estudei, estudei e estudei e tirei o primeiro lugar. Foi quando descobri que havia me matriculado num curso de… Jornalismo… Mas aí já era tarde demais para desistir. Larguei a oficina mecânica e logo nos primeiros dias de faculdade arrumei emprego no Diário Mercantil, que não existe mais, onde fiz de tudo um pouco. Mas sempre fui um péssimo repórter. Muito tímido, ainda pesava em minha consciência o ensinamento da minha mãe, de que não temos nada a ver com a vida dos outros, que é muito desagradável uma pessoa que fica bisbilhotando ou especulando, o que me impedia definitivamente de entrevistar ou investigar, atitudes básicas na vida de um repórter… Então, pouco a pouco, fui buscando atividades que me permitiam permanecer dentro da redação, como redator, editor etc… Nesse setor, desempenhei razoavelmente bem meu papel – quando deixei a profissão em 2003, era secretário de redação do Jornal da Tarde, em São Paulo.
Quanto pesa para a escrita de um escritor, ter uma visão ampla do mundo que o cerca?
Penso que o escritor tem de estar mergulhado na vida. Nunca entendi aqueles que repetem um dito atribuído a Franz Kakfa [Franz Kafka foi um escritor de língua alemã, autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um dos escritores mais influentes do século XX, 1883 – 1924]. , de que tudo que não é literatura me aborrece. A literatura é somente uma parte da vida, e nem é a mais importante. Mergulhar na vida, entretanto, não significa participar dela como mero espectador, que se limita a anotar situações, descrever cenários ou sondar pessoas para depois utilizar como “material de trabalho”. Acho ridículo isso. O fazer literário exige empatia, ou seja, a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro de forma efetiva, de manter uma relação de solidariedade e compreensão com o outro. Este talvez seja o maior dilema do ser humano, lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação da nossa subjetividade só se verifique através do reconhecimento do outro – o outro é o que nos confere a existência –, ao mesmo tempo o outro é aquele que pode nos aniquilar… A história da Humanidade tem sido esse pêndulo entre vivermos com o outro e lutarmos contra o outro. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e de um extremado culto ao individualismo, nos vemos caminhando perigosamente para a supressão da subjetividade. Aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo conhecimento mútuo, hoje, mais que nunca, tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de ser o outro. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Por isso, talvez nada mais atual que a velha formulação kantiana do imperativo categórico, que prediz: age de tal maneira que trates a humanidade tão bem na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio.
Até algum tempo atrás, a literatura (principalmente no Brasil) era vista como algo inacessível para boa parte da população. Acredita que de alguma forma, as redes sociais ajudam a popularizar a literatura em nosso país, ou tem uma outra ótica sobre isso?
A importância cada vez maior das redes sociais na vida das pessoas nos impõe uma reflexão mais aprofundada. Nunca se falou tanto de livro, nunca o livro esteve tão exposto: há inúmeros sítios para discussão, onde os leitores podem opinar e recomendar títulos. Também nunca se escreveu tanto – ser escritor, antes uma carreira meio marginal ou de pouca acolhida na sociedade, passou a ser um desejo de muitos jovens, com total anuência da coletividade. Além disso, nunca foi tão fácil e cômodo adquirir livros. As livrarias, tanto as de produtos novos, quanto as de usados, possuem páginas na internet, dão descontos, fazem promoções, e, mais relevante que tudo, alcançam o leitor onde quer que ele esteja, aspecto fundamental num país com as dimensões do Brasil, onde a maioria absoluta das cidades não possui sequer pontos de venda de livros. Por outro lado, continuamos a patinar com baixíssimos índices de leitura. A impressão é a de que as pessoas falam de livros, badalam os escritores, mas não adquirem livros e, pior, não leem… E isso, por mais contraditório que pareça, faz sentido, já que vivemos a época do espetáculo – não importa o que você é, mas o que parece ser – num país iletrado. Nosso sistema de educação exibe números vergonhosos, um dos mais deficientes do mundo, e nossa elite – econômica, política e social – tem verdadeiro desprezo pela cultura em geral, e pela leitura em particular. Somos um país medíocre, e a maneira como lidamos com os nossos problemas é o maior exemplo disso…
Em um texto escrito no jornal “El País”, você afirma que o Brasil vem se tornando dia a dia um país fascista. Pela sua vivência, isso tende a piorar principalmente com as eleições majoritárias no próximo ano?
Estamos vivendo um momento politicamente muito estranho – e não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Muitas conquistas sociais e muitos direitos individuais e coletivos estão ameaçados por uma agressiva mentalidade fascista. No Brasil, vivemos uma situação bastante complexa. Observamos um “golpe de estado legal” – uma modalidade só possível em lugares como o nosso – patrocinado por movimentos de classe média reacionários, com apoio de políticos corruptos. Hoje temos um presidente exercendo o cargo de forma ilegítima comandando um Congresso quase inteiramente envolvido em denúncias de corrupção, secundado por um Judiciário comprometido… E não há contestação. Os movimentos populares que existiam e que lutaram contra a ditadura foram aparelhados pelo PT (os dirigentes foram contemplados com cargos no Governo) e perderam legitimidade e capacidade de mobilização. Ou seja, não temos oposição à esquerda, salvo alguns pequenos partidos sem expressão nacional e ideologicamente limitados, como o PSOL ou PSTU, pois a cúpula do PT, envolvida em esquemas de corrupção, não produziu nenhuma nova liderança. Também não há alternativas ao centro – a ex-ministra Marina Silva é uma figura patética. Restam articuladas a centro-direita, nossa velha conhecida, que vem dilapidando o Brasil desde sempre, e a direita, cada vez mais expressiva, saudosa dos tempos da Ditadura. A bem da verdade, os brasileiros possuem um viés fascista. Basta recorrermos a alguns fatos: a intolerância contra as mulheres e homossexuais, notável nos índices de assassinatos e na legislação restritiva ao aborto e aos direitos civis, respectivamente; o racismo contra negros e índios; os homicídios seletivos da polícia (braço armado da elite branca) contra jovens pobres da periferia; o apoio massivo da população à pena de morte e ao fim do Estatuto do Desarmamento. Por fim, acompanhamos atônitos o crescimento geométrico dos neopentecostais na sociedade, com suas ideias fundamentalistas cristãs que beiram à insanidade.
Quando acredita que a arte e em especial a literatura, exerce um papel social e fundamental?
Certa feita, durante o lançamento de um dos volumes do meu romance “Inferno Provisório”, um leitor postou-se à minha frente, e sapecou a terrível pergunta: “Lembra-se de mim?”. Se pela passagem do tempo seu rosto me era indefinível, agora, agravado pelo nervosismo da situação, tornara-se absolutamente estranho. Percebendo meu constrangimento, ele tentou atiçar minhas recordações: “Também sou de Cataguases…”. E, então, algumas vagas imagens ascenderam. Por debaixo da calvície, dos óculos de lentes grossas, da barriga proeminente, emergiu o Carlinhos, meu colega do curso primário no Grupo Escolar Flávia Dutra. Levantei-me e o abracei e, bastante comovido, antes que me sentasse novamente, ele arremessou, à queima-roupa: “Eu não sabia que o Gilmar tinha ficado manco não… que coisa! Sabe que eu lembro até hoje do dia que o Marquinho foi atropelado… a gente era pequeno, mas fiquei impressionado com aquela mancha enorme nos paralelepípedos… E o Vicente Cambota, heim? Que maneira horrível de morrer!” E, me segredando: “Agora, cá entre nós, eu sempre achei estranho o Tiquinho ter desaparecido assim, sem mais nem menos… sabia que tinha alguma coisa errada ali…” E, segurando meu braço: “Que memória você tem! Como você consegue lembrar de tudo, tintim por tintim?”. Confuso, tomei um copo d’água. Zonzo, pensei explicar que aquelas pessoas de quem ele falava, com tamanha intimidade, eram somente personagens de meus livros, não recordações da nossa infância. Mas como dizer isso a ele, se de alguma maneira aquelas minhas evocações difusas haviam se transformado em reminiscências comuns? Notando meu espanto, Carlinhos ainda me sussurrou, antes de se despedir: “Preocupa não, eu percebi que você tentou disfarçar, trocando os nomes…” A pergunta que me persegue é: como podemos, a partir de experiências pessoais, portanto autobiográficas, erigir uma obra que, embora artificial, possa afetar o outro, a ponto de tornar-se uma espécie de “verdade comum”. Creio que, por mais que tenhamos consciência de que caminhamos muito desde que descemos das árvores e passamos a usar as mãos para a fabricação de instrumentos, alguns de nossos hábitos mais primitivos mantiveram-se arraigados nos recônditos de nosso ser. Imaginemos um bando de homens, coletores ou caçadores, voltando para a caverna ao fim de um dia estafante, e que, após reencontrar as mulheres e as crianças, reúnem-se em torno de uma fogueira para descansar. Logo surge alguém se gabando de que, após ter sido entocado por uma fera, conseguiu se livrar, astuciosamente, ferindo-a de morte.
Há um alvoroço, nascem indagações, questionamentos, alguém pede mais detalhes, e, entre suspiros de admiração e esgares de inveja, o sono espesso se instala. No dia seguinte, antes de eles saírem novamente para a aventura da sobrevivência, um dos componentes do grupo (talvez uma mulher, por que não?) registra nas paredes da caverna a cena narrada. Inscrita, ou seja, tornada concreta, a história contada deixa de ser uma experiência individual, transfigurando-se, inicialmente, em exemplo. Com o tempo, entretanto, as relações objetivas entre aquele sinal pictórico e seu fato gerador vão se esgarçando, e a experiência do indivíduo que suscitou a cena descrita torna-se, pela repetição, experiência do grupo ao qual ele pertence – o que era memória individual transmuda-se em memória coletiva. Ou, melhor ainda, transcende o caráter meramente didático, ressurgindo em arte. Quando, na década de 1990, decidi-me pela literatura, eu sabia exatamente sobre o que escrever, embora não tivesse ideia ainda do como. Eu trazia, gravadas em meu corpo, inúmeras histórias sobre aqueles que batem cartão de ponto, personagens estranhamente ausentes das páginas dos livros de ficção brasileiros. Não eram as minhas memórias pessoais que afloravam quando me dispunha a escrever, mas os cheiros, os sons, as imagens, os gostos e as sensações térmicas de um espaço e de um tempo comuns.
Eu apenas intermediava a manifestação da memória coletiva, filtrando-a em narrativas que, em última análise, se querem devolvidas, por meio do leitor, à memória coletiva, num processo semelhante à ressensibilização de um membro do corpo de um paciente que, após sofrer um trauma, não reconhece mais os comandos enviados pelo cérebro. Creio que isso o que ocorreu com meu amigo Carlinhos. As minhas lembranças ficcionais presentes no “Inferno Provisório” despertaram nele lembranças reais, não porque as histórias narradas tenham se baseado em fatos ocorridos, mas porque elas alicerçavam-se em memórias comuns a mim, a ele e a todos os que num determinado momento encontravam-se num dado lugar. O mais fascinante é que esse determinado momento e esse dado lugar transcende o tempo e o espaço da narrativa, dissolvendo-se ou expandindo-se no espaço e no tempo da ficção, que é, ao fim e ao cabo, o aqui e agora do leitor.
No seu primeiro romance “Eles Eram Muito Cavalos”, você de alguma forma tentou trazer para o público uma São Paulo que muitos não querem ver ou sua intenção quando escrevia a obra era outra?
São Paulo é o sexto maior aglomerado urbano do planeta, com cerca de 20 milhões de habitantes. Uma metrópole onde a segunda maior frota de helicópteros particulares do mundo sobrevoa ônibus, trens e metrôs que desovam trabalhadores em estações superlotadas; traficantes ricos instalados em suas mansões leem nos jornais notícias sobre traficantes pobres perseguidos pela polícia corrupta e violenta; políticos roubam a nível municipal, estadual e federal; as vitrines dos restaurantes chiques refletem os esfomeados, os esfarrapados; rios apodrecem em esgoto, lama, veneno; favelas enlaçam prédios futuristas; universidades de excelência alimentam a próxima elite política e econômica, enquanto na periferia escolas com professores mal remunerados, mal formados e mal protegidos geram os novos assalariados; a mais avançada tecnologia médica da América Latina assiste, impassível, à fila dos condenados à morte: homens vítimas da violência, mulheres vítimas de complicações do parto, homens e mulheres vítimas da tuberculose, crianças vítimas da diarreia; muros escondem a vida miúda que escorre lá fora. Como transpor o caos dessa cidade para as páginas de um livro? Penso que o ficcionista deveria ser assim uma espécie de físico que ausculta a Natureza para tentar compreender o mecanismo de funcionamento do Universo.
Cada passo na direção deste conhecimento resulta em mudanças significativas em sua concepção do mundo e, portanto, em uma imediata necessidade de elaborar novos instrumentos para continuar a busca. O objeto de estudo do romancista é o Ser Humano mergulhado no Mundo. E, assim como a Natureza, o Ser Humano permanece indevassável – o que temos são descrições, umas mais, outras menos, felizes, da vida em determinados períodos históricos. Também como o físico, o ficcionista, na medida em que mudam as condições objetivas, sente necessidade de criar ferramentas de prospecção para aproximar-se da natureza humana, muitas vezes absorvendo avanços de outras áreas do conhecimento. Nós, herdeiros e tributários do Século XX, vivenciamos na pele imensas mudanças: Einstein [Albert Einstein, físico teórico alemão. Entre seus principais trabalhos desenvolveu a teoria da relatividade geral, ao lado da mecânica quântica um dos dois pilares da física moderna, 1879 – 1955]. e Heisenberg [Werner Heinserberg, físico teórico alemão que recebeu o Nobel de Física de 1932, “pela criação da mecânica quântica, cujas aplicações levaram à descoberta, entre outras, das formas alotrópicas do hidrogênio”, 1901 – 1976] desconstruíram nossa intuição de tempo e de espaço; Freud [Sigismund Schlomo Freud, médico neurologista criador da psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica, em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco, 1856 – 1939]. e Lacan [Jacques-Marie Émile Lacan, psicanalista francês. Depois dos estudos em Medicina, Lacan se orientou em direção à Psiquiatria e fez seu doutorado em 1932, 1901=1981] desarrumaram a nossa autopercepção; Marx [Karl Marx, filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista. Nascido na Prússia, ele mais tarde se tornou apátrida e passou grande parte de sua vida em Londres, no Reino Unido, 1818 – 1883] e Ford [Henry Ford, empreendedor estadunidense, fundador da Ford Motor Company, autor dos livros “Minha filosofia de indústria” e “Minha vida e minha obra”, e o primeiro empresário a aplicar a montagem 1863 – 1947] dinamitaram os fundamentos do antigo mundo do trabalho, afetando diretamente nosso dia a dia; o Nazismo restituiu-nos à nossa barbárie; Baudelaire [Charles-Pierre Baudelaire, poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição 1821 – 1867] e Poe [Edgar Allan Poe, autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense, 1809 -1949] apresentaram-nos o Homem na multidão – e vieram Kafka [Franz Kafka, escritor de língua alemã, autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um dos escritores mais influentes do século XX, 1883 – 1924], Proust [Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust, escritor francês, mais conhecido pela sua obra À la recherche du temps perdu, que foi publicada em sete partes entre 1913 e 1927, 1881 – 1922], Pirandello [Luigi Pirandello, dramaturgo, poeta e romancista siciliano. Foi um grande renovador do teatro, com profundo sentido de humor e grande originalidade, 1867 – 1936], Joyce [James Joyce, romancista, contista e poeta irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX, 1882 – 1941], Faulkner [William Faulkner, considerado um dos maiores escritores estadunidenses do século XX. Recebeu o Nobel de Literatura de 1949. Posteriormente, ganhou o National Book Awards em 1951, por Collected Stories e em 1955, pelo romance Uma Fábula, 1897 – 1962], Breton [André Breton, escritor francês, poeta e teórico do surrealismo. De origem modesta, iniciou sem entusiasmo estudos em Medicina sob pressão da família, 1896 – 1966] , o Noveau roman [refere-se a um movimento literário francês dos anos 1950 que diverge dos gêneros literários clássicos], o Oulipo [corrente literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de maneira paradoxal, através de constrangimentos literários]…
Agora, o Século XXI descortina-se às nossas incertezas: a teoria das supercordas, a neurociência, a robótica industrial, a internet, as megalópoles… Ora, se os acontecimentos externos podem modificar nossa constituição de seres humanos (por exemplo, a crise do emprego formal que abala nossa segurança psicológica), então devemos admitir que somos obrigados a idear novas formas de compreendermo-nos imersos neste mundo repleto de múltiplas significâncias. Continuar pensando o romance como uma ação transcorrida dentro de um espaço e num determinado tempo, e que pretende ser o relato autêntico de experiências individuais verdadeiras, passa a ser, no mínimo, anacrônico. Pois, vejamos. A desigualdade econômica, que contamina e necrosa o tecido social, imiscui-se na própria natureza humana. O tempo e o espaço, por exemplo, são absorvidos de maneira diferente se lidamos com alguém que habita o conforto de uma mansão num bairro rico ou a pestilenta emanação dos esgotos de uma favela. Porque o tempo é elástico para uns, que dispõem de veículos que se deslocam rápido pelas ruas e avenidas, enquanto para outros o tempo é comprimido em vagões de trens entupidos de gente, ou semi-estático nos intermináveis engarrafamentos. E se o espaço de uns é infinito, pois destinos distantes como os Estados Unidos ou a Europa alcançam em algumas horas, para outros ele é apenas o lugar que o corpo ocupa. Além disso, quando uma pessoa deixa seu torrão natal, e essa é sempre uma decisão tomada em último caso, quando já não resta absolutamente nenhuma outra opção, ela é obrigada a abandonar não apenas o sotaque, os costumes, as paisagens, mas, mais que tudo, os ossos de seus entes queridos, ou seja, o signo que indica que ela pertence a um lugar, a uma família, que possui, enfim, um passado.
Quando assentado em outro sítio, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada, inaugurando-se dia a dia. Como construir relatos de caráter biográfico se lidamos com personagens sem história? Esses os dilemas que enfrentei quando me pus a refletir sobre como trazer para as páginas de um livro toda a complexidade desta cidade que me habita. Lembrei-me então de uma instalação de artes plásticas, exposta na Bienal Internacional de Artes de São Paulo de 1996 (“Ritos de Passagem”, de Roberto Evangelista): centenas de calçados usados, masculinos e femininos, caoticamente amontoados a um canto… Cada um deles trazia impressa a história dos pés que os usaram, impregnados pela sujidade dos caminhos percorridos. A partir desta iluminação, percebi que ao invés de tentar organizar o caos – que mais ou menos o romance tradicional objetiva – tinha que simplesmente incorporá-lo ao procedimento ficcional: deixar meu corpo exposto aos cheiros, às vozes, às cores, aos gostos, aos esbarrões da megalópole, transformar as sensações coletivas em memória individual. Compreender que o tempo não é mais paulatino e sequencial, mas sucessivo e simultâneo. Assumir a fragmentação como técnica (as histórias compondo a História) e a precariedade como sintoma – a precária arquitetura do romance, a precária arquitetura do espaço urbano. A violência da invisibilidade, a violência do não-pertencimento, a violência de quem tem que construir uma subjetividade num mundo que nos quer homogeneamente anônimos. A impossibilidade de narrar: cadernos escolares, emissões radiofônicas, diálogos entreouvidos, crônica policial, contos, poemas, notícias de jornais, classificados, descrições insípidas, recursos da alta tecnologia (mensagens no celular, páginas de relacionamento na internet), discursos religiosos, colagens, cartas… Tudo: cinema, televisão, literatura, artes plásticas, música, teatro… E a linguagem acompanha essa turbulência – não a composição, mas a decomposição.
Em sua visão, o que a sua escrita ganhou no estilo (e que só você percebe) desde que publicou seu primeiro romance “Eles Eram Muitos Cavalos” de 2001 até “Flores Artificiais” de 2014?
Penso que cada livro exige uma forma específica para ser edificado. O maior desafio é justamente encontrar esse lugar espaço-temporal da narrativa que consiga recriar o mundo, dando-lhe concretude. A ficção, quando alcança a transcendência, seu objetivo último, estranhamente torna-se mais real que a realidade. Um exemplo: milhares de historiadores já se debruçaram sobre a sociedade francesa do fim do século XVIII e começo do século XIX e todos os anos surgem novas hipóteses e novas descrições sobre aquele momento da trajetória da Humanidade, sem que nenhum deles consiga dar conta da totalidade das mudanças efetivamente ocorridas. No entanto, o escritor Honoré de Balzac [produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, 1799 – 1850], por meios artificiais, o da narrativa ficcional, apreendeu aquele período com tal perfeição que para entender a derrocada da aristocracia e a ascensão da burguesia, não só na França, mas em toda a Europa, basta ler seus romances e contos. No meu caminho, construí cada romance como uma peça autônoma, emulando e atualizando gêneros romanescos, de acordo com necessidades específicas de expressão. “Eles Eram Muitos Cavalos”, de 2001, é um caderno de exercícios formais – praticamente, cada um dos 70 fragmentos (ou 71, já que considero a página dupla em preto um capítulo), tenta recriar uma maneira de narrar singular, buscando uma multiplicidade de vozes que represente a diversidade social, étnica e religiosa de São Paulo. É um romance, ou “instalação literária”, como o denomino, que dialoga diretamente com outras linguagens, como as artes plásticas, as artes gráficas, o cinema, o teatro, o jornalismo, a fotografia, o rádio, a televisão, a publicidade, as novas tecnologias, a oralidade, o conto, o romance, o poema, o vazio.
Depois, entre 2005 e 2011, publiquei os cinco volumes do “Inferno Provisório”, que em 2016 saiu em um volume único, revisto, reescrito, reorganizado. Este livro é um esforço no sentido de produzir um romance coletivo: são dezenas de histórias independentes de personagens oriundos da classe média baixa, abarcando grosso modo o período que compreende o grande êxodo rural (década de 1950) até o começo do século XXI, intervalo no qual vivenciamos a transformação do Brasil, de um país eminentemente rural em totalmente urbano. Queria estudar o impacto na subjetividade provocado pela violência desta mudança, a substituição do espaço amplo do campo pelo espaço exíguo das casas suburbanas, a troca do tempo sucessivo pelo tempo simultâneo.
Para isso, inverti o modelo do realismo socialista, fábrica de péssima literatura, que pensava o coletivo como anulação do sujeito. “Inferno Provisório”, ao contrário, tenta construir o coletivo a partir da ênfase no indivíduo e sua luta, não contra a sociedade, mas para inserir-se nela, algo que, jocosamente, chamo de realismo capitalista. “De mim já nem se lembra” é um recorte no período mais duro da Ditadura Militar, vista não por um militante político, mas por meio de cartas de um operário alienado, que mora e trabalha em Diadema. Aos poucos, ele vai, sem querer, tomando pé do que estava acontecendo no Brasil. Este livro é uma apropriação e atualização do gênero epistolográfico, que esteve em alta no começo do século XIX. “Estive em Lisboa e Lembrei de Você” flerta com o romance-documentário: é a representação do imigrante pobre brasileiro que, por falta de perspectivas no Brasil, vai tentar a vida em Portugal. O livro é uma espécie de “transcrição de um depoimento” colhido em Lisboa. “Flores Artificiais” remete aos manuscritos recebidos ou encontrados, comuns também na literatura do século XIX. O Luiz Ruffato recebe uma espécie de capítulos de memórias de um parente afastado, Dório Finetto, ex-diretor do Banco Mundial, que relata episódios de suas viagens a trabalho ao redor do planeta. São histórias de desenraizamento, que mostram que o questionamento do pertencimento não se limita aos países e povos do Terceiro Mundo.
O genial poeta francês Arthur Rimbaud, dizia que o poeta faz-se vidente através de um longo, imenso e sensato desregramento de todos sentidos. Em algum de seus livros de poesia, você acredita que se tornou vidente através de um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos?
Bom, eu publiquei apenas um livro de poemas, “As Máscaras Singulares”, embora tenha outro pronto para publicação, sem data ainda para lançamento – certamente, não será em 2017. Sinceramente, não acredito em desregramento – não, pelo menos, no meu caso. E muito menos em vidência… Acho que o poeta, o escritor, o artista, representa os impasses de seu tempo. E, caso sua arte transcenda seu lugar e sua época, perdurará como testemunho – e todo testemunho, compreendido retrospectivamente, tem um caráter antecipatório… Mas não creio que isso seja fruto de qualquer desregramento – aliás, não creio em axiomas definitivos. As verdades são sempre relativizáveis…
Henry Miller dizia que um escritor deve escrever primeiro sempre e que todo resto que temos que fazer em nossas vidas vêm depois. Sabemos que você também é bem metódico na hora de escrever. A disciplina é o combustível essencial para um escritor que queira ter êxito em seu ofício?
Penso que a disciplina é fundamental em qualquer profissão, seja ela a de gari, engenheiro, professor ou artista. Um talento sem disciplina conserva-se como um talento em potência – e como conclui Aristóteles [filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a física, a metafísica, as leis da poesia e do drama, a música, a lógica, a retórica, o governo, a ética, a biologia e a zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental, 384 a.C – 322 a.C], nada é em potência. Isto posto, ou seja, que concordo que a disciplina, a serviço do talento, é essencial para um escritor que queira ter êxito em seu ofício, não concordo que o escritor deve escrever primeiro e que todo o resto em nossas vidas vêm depois. Aliás, penso exatamente o contrário, o escritor deve ser um cidadão como outro qualquer, mergulhado na vida, com suas rotinas e com suas paixões, com suas certezas e com suas contradições, e a escrita deve ser exercida como parte inerente e indissociável da vida. Eu, por exemplo, entre conversar ou viajar com meus filhos e escrever, prefiro conversar e viajar com meus filhos…
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