José Carvalho é roteirista e mestre em Literatura cujos principais créditos são: “O primeiro dia”, de Walter Salles e Daniela Thomas; “Castelo Rá-Tim-Bum”, de Cao Hamburguer; longa-metragem documental: “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado”, de Joel Zito Araújo; telenovela: “Xica da Silva”, direção de Walter Avancini; programa de TV: “Sai de Baixo”, direção de Denis Carvalho; programa de TV: “Carga Pesada”, direção de Roberto Naar; e recentemente os longa-metragens “Bruna Surfistinha”, de Marcus Baldini, produção TV Zero e “Faroeste Caboclo”, de René Sampaio, produção Bianca De Felippes. A Roteiraria (sua agência de conteúdos) habilita profissionais no desenvolvimento de produtos para cinema, TV e storytelling na publicidade, textos originais e adaptações de obras literárias. “Bruna Surfistinha é um produto que fez mais de 2 milhões de espectadores, sem contar com um suporte mais pesado de mídia. Acho que o grande mérito do produto é narrativo. E quando digo narrativo refiro-me ao 2º ato da trama, que é onde está a espinha dorsal de um longa-metragem”, afirma o experiente roteirista. Com todo prestígio conquistado, em 10 de dezembro, às 16h, representantes de grandes produtoras brasileiras estarão reunidos no Rio de Janeiro, para uma rodada de pitching da Roteiraria. O evento já teve uma edição em São Paulo, que reuniu 25 profissionais do mercado.
O que fez você caminhar para esse ofício no qual trabalha desde o começo dos anos 90?
Na verdade, toda essa história de dramaturgia começou na minha vida através das artes cênicas, onde se deu a minha primeira formação. Até que percebi que o mundo da dramaturgia audiovisual era uma extensão do mundo que havia aprendido no teatro. Fiz na época a Oficina de Dramaturgia da TV Globo. Durante a Oficina fui convidado para ser colaborador de duas telenovelas na extinta TV Manchete. Ali, sob a direção do lendário Walter Avancini, fui colaborador exclusivo da telenovela Xica da Silva, que acabou sendo um grande sucesso – só nos Estados Unidos, houve 3 reprises…
Daquele ponto em diante, o “mercado” começou a se abrir. Mas, definitivamente, não tive nenhuma identificação com o produto telenovela, e comecei a usar essa abertura para investir na minha formação.
Quais os maiores pecados que um roteirista jamais pode cometer?
O primeiro é acreditar que o roteiro vem exclusivamente do mundo do audiovisual, quando a referência está toda na História da Dramaturgia. Muitos candidatos à área acreditam que basta assistir aos produtos de cinema, TV e agora streaming que tudo acontecerá mágica ou intuitivamente na hora da escrita.
A outra questão diz respeito à ilusão de que cursos rápidos, imersões, com celebridades nacionais ou internacionais, leituras de manuais, ou mesmo através de disciplinas eletivas que universidades muito bem conceituadas oferecerem lá fora, trarão o conhecimento necessário para o (a) aspirante à área.
Isso pode ter alguma eficiência para a escritura de produtos e formatos mais rasos, mas jamais fará desse/dessa aspirante à profissão (ou mesmo de um ou uma “profissional” já inseridos no nosso “mercado”) um autor ou autora que possa assumir produtos e formatos mais complexos.
Qual a diferença notória que faz o bom roteirista se tornar o grande roteirista?
Um grande roteirista ou uma grande roteirista são os que conseguem obter, por um cabedal de conhecimentos, sua própria autoria, a concepção de um universo só dele, só dela. A exemplo de roteiristas e dramaturgos, como Samuel Beckett, Aaron Sorkin, Nelson Rodrigues, Ann Biderman.
O poeta e ensaísta Ezra Pound fazia uma distinção entre criador e repetidor. E acredito que só aqueles que se tornam verdadeiramente criadores, e não repetidores, têm condição de se tornar um grande ou uma grande roteirista.
Que elementos são necessários para uma narrativa atraente?
Esta é uma resposta que exigiria muitas páginas, talvez a extensão de uma tese… (Risos). Porque há muitas variantes. A primeira seria o público a que um determinado produto se destina. O que pode ser desprezível e “mal” narrado para uns, pode ser lido como espetacular para outros.
Porém, volto a defender que se há conhecimento teórico, associado, claro, à prática, o roteirista ou a roteirista saberão tornar qualquer narrativa atraente. É uma ilusão achar que processos mais intuitivos, como na pintura e música contemporâneas, por exemplo, possam migrar para a dramaturgia, sem que haja prejuízos à narrativa.
Como se encontra o mercado audiovisual no país neste momento e quais as principais tendências?
O Brasil é um polo de investimento internacional nessa era das séries. Tem dimensões e público continentais. Assim como possui o que chamo de vocação audiovisual: um país que vê mais do que lê. O que me preocupa é a questão da formação. Escrever 3, 4, 5 temporadas de uma série autoral não pode ser confundido com uma aventura de tentativa-e-erro de um longa-metragem, por exemplo.
Esses produtos mais sofisticados que têm sido feitos nos principais mercados audiovisuais pelo mundo afora, liderados pelo mercado norte-americano, exigem processo, acabamento, conhecimento de causa. O que é diferente do caso desses formatos simplórios que vieram da era do folhetim e da era do rádio.
É claro que essa tendência das séries por temporada veio para ficar. Nenhum outro formato tem a possibilidade de binge watching (fenômeno de recepção que gera uma fidelidade inigualável). Até aqui o nosso “mercado” não conseguiu responder a essa onda do streaming, com produtos que se equiparem ao que está sendo feito, volto a dizer, nos principais mercados mundo afora.
Vejo um avanço no padrão de produção em alguns casos, o que não se aplica, a meu ver, ao padrão narrativo.
Esse mercado é bem explorado enquanto negócio?
Não me vejo como um produtor nem empresário do setor. Sou apenas roteirista, professor e produtor de conteúdos. E dentro do trânsito que me compete, percebo que o nó desse “mercado”… e coloco “mercado” sempre entre aspas, porque é algo em formação, algo a ser consolidado… Então, o nó desse “mercado” está na baixa capacitação dos nossos “profissionais” (idem).
Os que estão chegando com capital para investir no setor precisam criar a consciência de que uma boa parte dos investimentos terá de ser em capacitação, sobretudo para competirmos com a universalidade de vários produtos internacionais, que alcançaram grande êxito nas últimas duas décadas.
Como se deu o surgimento da Roteiraria?
A ideia da Roteiraria já vinha comigo desde o final dos anos 90. Já havia percebido lá atrás não só a ausência de uma formação adequada, como da figura de um mediador entre o talento e o “mercado”.
Quando lecionava no mundo acadêmico, alunos e pais de alunos me perguntavam o que o filho ou a filha deveriam fazer para ingressar no “mercado”. Como, repito, universidades, escolas e cursos não constroem uma parceria com o “mercado”, criei a Roteiraria após ter ido fazer parte da minha formação nos Estados Unidos.
Sim, somos a única Escola voltada para a formação e agenciamento de roteiristas no Brasil.
Quais os principais pilares e que você considera como fundamentais da Escola e da produtora?
Todos os nossos colaboradores têm de ter passado pela Escola. Hoje, novembro de 2018, a Escola tem quase 300 alunos entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Quando identificamos e selecionamos alunos que terão uma primeira oportunidade conosco, desenvolvendo um produto vindo de nós ou do próprio aluno, ou da própria aluna, preciso que todos “falem a mesma língua”. Portanto, a Escola é um pré-requisito para esses potenciais autores e/ou colaboradores.
A produtora de conteúdos é o último estágio que o aluno ou aluna atravessam nessa jornada conosco. Primeiro, eles têm de tomar contato com o método quando ingressam na Escola. Depois, apresentar um conteúdo de série ou longa-metragem. E, uma vez selecionado ou selecionada, treinamos os talentos para a defesa de seu conteúdo junto ao mercado, sob a forma de um pitching.
O gênero comédia venceu a narrativa (interna e externa) e a condução dos negócios (marketing entre eles) no mercado nacional da sétima arte?
Acho que o cinema nacional precisava encontrar um nicho de “mercado”, e foi através de um estilo de comédia que, em geral, tem um baixíssimo padrão narrativo que isso acabou acontecendo.
Esse é um produto oferecido como uma extensão do que já é feito na TV brasileira, só que na tela grande. Acho válido para a formação de plateia e consolidação do produto nacional em meio à predominância dos conteúdos que vêm de fora.
Mas daí a dizer que esses conteúdos impulsionam o nosso cinema vai uma distância. Haja vista o fato que são produtos que não “viajam”, que não entram nos festivais que têm a capacidade de nos projetar, nem são comercializados para distribuição lá fora.
Quais os maiores desafios em colocar na tela o que se lê em um livro como foi o caso de “Bruna Surfistinha?”.
Bruna Surfistinha é um produto que fez mais de 2 milhões de espectadores, sem contar com um suporte mais pesado de mídia. Acho que o grande mérito do produto é narrativo. E quando digo narrativo refiro-me ao 2º ato da trama, que é onde está a espinha dorsal de um longa-metragem. Apesar de escolhas que tiraram a força do 1º e 3º atos, o miolo da narrativa está lá, com seus altos e baixos, onde um(a) protagonista vive seus maiores conflitos.
E é claro que poder trabalhar em cima de um romance que já obteve resposta do público é sempre mais fácil. Lá fora mesmo, foi o que se procurou, e ainda se procura, na indústria do entretenimento. Se o público já se identificou com a narrativa literária, larga-se com a vantagem do entendimento dos pontos que conquistaram o leitor. No nosso caso, especificamente, acho que muita coisa potencial que havia no livro acabou ficando de fora. Mesmo assim a resposta veio. Por isso, volto a dizer, o mérito é da adaptação, da narrativa.
Aliás, não por acaso, a etimologia da palavra “narrativa” em grego é “dar a conhecer”. Já à época dos poemas épicos e da tragédia, havia essa preocupação em narrar o que trouxesse a identificação do público.
Em quais sentidos o surgimento da internet foi um impulsionador para um desenvolvedor de conteúdo audiovisual?
Sem a internet, não teríamos entrado na era do streaming, do binge watching, da second screen, do fandom… todos estes são, como disse acima, fenômenos de recepção. Todos os executivos do mundo do streaming têm reafirmado que não há como a TV aberta, o cabo básico e o cabo premium concorrerem com produtos em que o consumidor escolhe o dia, a hora e a maneira de assistir a eles. Nada disso teria sido possível sem a internet.
Acho que a nossa atenção agora deve se voltar para o principal nicho de audiência que esses fenômenos da internet trouxeram. Refiro-me à demografia de menos de 35 anos até a base da audiência. É um público que, em boa parte, não passará pelo produto convencional da TV, e que, com isso, acabou sendo influenciado por um imaginário que veio das formas de exibição e conteúdos da internet.
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