“Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, é uma das peças mais importantes da dramaturgia brasileira, estreando em 1965 em um contexto político extremamente sensível. Apenas um ano após o golpe militar de 1964, o país mergulhava em um regime autoritário, com restrições crescentes às liberdades civis e perseguição a opositores. Para muitos, o teatro tornou-se um dos poucos refúgios de resistência, onde era possível expor e refletir, ainda que de maneira indireta, as questões que afligiam a sociedade. Neste cenário, “Liberdade, Liberdade” emerge como uma peça que não apenas desafia a censura, mas também convida o público a questionar o verdadeiro significado de liberdade e as consequências da opressão.
A peça reuniu dois dos maiores nomes da cultura brasileira, o escritor e jornalista Millôr Fernandes e o diretor de teatro Flávio Rangel. Ambos estavam profundamente engajados na luta pela liberdade de expressão e utilizaram o teatro como ferramenta para abordar um tema universal que ia ao encontro das necessidades políticas e emocionais da época. Assim, a obra foi muito além de uma simples apresentação artística, transformando-se em um símbolo de resistência cultural e social contra o autoritarismo.
A parceria entre Millôr Fernandes e Flávio Rangel foi fundamental para o tom incisivo e provocativo de “Liberdade, Liberdade”. Millôr, conhecido pelo humor crítico e pelo engajamento em causas de liberdade e justiça, trouxe à peça seu olhar sarcástico sobre o poder e a sociedade. Já Rangel, com seu talento para a direção e sua habilidade de conectar o teatro a questões sociais, deu vida ao texto com uma montagem que misturava cenas dramáticas e humorísticas. Juntos, eles criaram uma peça que transcendeu o entretenimento, tornando-se uma experiência coletiva de reflexão sobre o papel do indivíduo em uma sociedade repressiva.
Ao optar por um formato de “colagem”, a peça ganhou flexibilidade narrativa, permitindo uma montagem dinâmica que combinava referências literárias, históricas e filosóficas. Cada cena, em vez de seguir uma progressão linear, era uma reflexão isolada que se conectava ao tema central de liberdade. Isso também tornou o espetáculo mais acessível, uma vez que cada espectador poderia extrair diferentes interpretações e reflexões de acordo com suas próprias vivências e percepções.
A peça é construída a partir de uma série de esquetes e cenas independentes, onde personagens históricos e figuras icônicas discutem e encenam a questão da liberdade e da opressão. Não há uma narrativa linear nem personagens fixos, mas sim uma coleção de falas e reflexões que abrangem desde Sócrates e Gandhi até Voltaire e Martin Luther King. Millôr e Rangel utilizaram essa estrutura fragmentada para reforçar a ideia de que a luta pela liberdade é diversa e que cada época e cultura enfrenta o desafio de preservar e defender a autonomia dos indivíduos.
Esse formato diferenciado permite que a peça toque em diversos aspectos do conceito de liberdade, como a liberdade de expressão, a liberdade política e a liberdade de ser, pensar e agir sem coerção. Cada cena provoca o espectador a pensar sobre a própria realidade e a natureza de suas liberdades. Embora o contexto fosse o Brasil da ditadura, a peça trazia mensagens universais, criando uma reflexão que transcendia o tempo e o espaço.
No cerne de “Liberdade, Liberdade” estão os temas de ambição e opressão, que permeiam toda a peça. Ambição, aqui, tem um duplo sentido: de um lado, a ambição do indivíduo pela liberdade e autonomia; do outro, a ambição do poder opressor de controlar e silenciar. O confronto entre essas duas forças é abordado de maneira crua e realista, mostrando o preço pago por aqueles que ousam desafiar a opressão.
Millôr e Rangel ilustram que a ambição por liberdade muitas vezes encontra oposição na ambição pelo poder, que sufoca a individualidade e tenta controlar a coletividade. O espectador é confrontado com o papel ambíguo da ambição: enquanto esta pode ser o motor para a liberdade, também pode ser o motor para a opressão, dependendo de como é canalizada. O resultado é uma reflexão profunda sobre o preço da liberdade e o dever de cada cidadão em proteger os direitos individuais.
A estreia de “Liberdade, Liberdade” causou um impacto imediato e intenso. O público, que vivia sob a vigilância do regime militar, foi profundamente tocado pela coragem da peça em tratar de temas políticos e filosóficos tão delicados. Era uma provocação aberta ao poder instituído, e isso causou reações diversas. A plateia brasileira, por vezes emocionada, respondia com aplausos e, outras vezes, com silêncio contemplativo, refletindo sobre a mensagem da obra. Para muitos, a peça significava a resistência a um sistema opressor e dava voz a sentimentos que não poderiam ser expressos em outros contextos.
Críticos e intelectuais reconheceram “Liberdade, Liberdade” como uma obra-prima do teatro político, que traduzia o clima de incerteza e medo da época. Ela se tornaria alvo de censura, um indicativo claro de que as autoridades militares compreendiam o alcance de sua mensagem e o poder que possuía. Mas, ironicamente, essa tentativa de silenciamento apenas aumentou a relevância da peça como um símbolo de luta pela liberdade. Ela inspirou outros artistas e dramaturgos a buscar formas criativas de contestar o autoritarismo, consolidando sua importância na cultura brasileira.
Além do teatro, “Liberdade, Liberdade” exerceu uma influência significativa sobre a cultura de resistência no Brasil. Sua ousadia e inventividade incentivaram artistas e intelectuais a explorar novas formas de expressão, onde a crítica social se tornava parte integrante da obra. Durante os anos da ditadura, a peça foi uma referência para outros movimentos artísticos, estimulando a criação de músicas, poemas e manifestos que criticavam a repressão e defendiam os direitos fundamentais.
A peça também reforçou o papel do teatro como um espaço de debate e conscientização. Millôr e Rangel mostraram que o palco não era apenas um local de entretenimento, mas também de transformação social. Sua criação estabeleceu um modelo de teatro engajado, que abordava questões nacionais e universais ao mesmo tempo. Isso abriu caminho para futuras gerações de dramaturgos, que passaram a enxergar o teatro como um poderoso instrumento de questionamento e mudança social.
Hoje, “Liberdade, Liberdade” permanece relevante como uma obra que nos lembra da importância de questionar o poder e de lutar pela liberdade. Em uma época de crescentes tensões sociais e políticas no mundo todo, a peça nos recorda que a luta pela liberdade é constante e que a arte possui um papel fundamental na construção de sociedades justas. A mensagem de Millôr Fernandes e Flávio Rangel é um chamado para que não nos conformemos com a opressão e que busquemos sempre a justiça, a liberdade e o respeito aos direitos humanos.
O legado de “Liberdade, Liberdade” transcende o palco e nos faz refletir sobre o papel de cada um de nós na construção de um mundo onde a liberdade seja, de fato, para todos. Com sua estrutura inovadora e sua mensagem universal, a peça continua a inspirar e provocar, servindo de lembrete de que a ambição pela liberdade nunca deve ser reprimida e de que o verdadeiro poder reside em resistir à opressão. Na visão de Millôr e Rangel, a liberdade é tanto um direito quanto um dever, e cabe a nós, como sociedade, assegurar que essa ambição se torne uma realidade concreta e não apenas uma utopia distante.
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