Considerado um dos mais talentosos guitarristas do Brasil, Michel Leme é também compositor e desde 1990 atua como professor. Nos palcos, Michel tocou com músicos de renome como Gary Willis, Michael Brecker, Nenê, Lee Konitz, Joe Lovano, entre outros. Ao longo dos anos, o guitarrista marcou presença em mídias importantes como Guitar Player, Cover Guitar, Clube do Jazz, Bandas de Garagem, Ejazz, além de ter sido destaque nos jornais O Globo e Folha de São Paulo, nos programas do Jô e Metrópolis, entre outros. Tem no currículo participações em mais de vinte discos de música instrumental. Mantém também um website e um perfil nas redes sociais, sobretudo no Facebook, onde é bastante ativo com postagens sobre suas atividades musicais. “Todo músico tem uma história lamentável pra contar em relação a contratantes, instituições, burocracia, programadores, mídia, bares, gerentes, seguranças, outros músicos, lojistas, etc. E o problema quanto ao desrespeito não se limita aos bares. Alguns falam sobre a “cena da música instrumental” e isso está mais para um delírio ou uma tentativa idiota de marketing, porque, de fato, não há cena alguma por aqui. Existe produção real, sim, alguns caras gravando e lançando seus discos, mas não há espaços o suficiente e muito menos vontade real de promover o encontro desta produção com o público”, afirma o guitarrista.
Michel, você é considerado por muitos como um dos grandes expoentes da guitarra no Brasil. E você, como enxerga o seu próprio trabalho?
Sou muito agradecido por saber que algumas pessoas ouvem a música que toco com meus amigos. Além do grande prêmio que é poder tocar, isso é um belo bônus. Quanto ao que faço, procuro guiar-me pelo prazer que é tocar, ouvir, aprender e descobrir minhas coisinhas na guitarra todos os dias. Estou curtindo cada vez mais o processo que é viver a música. Vivo em autoanálise, ouvindo e assistindo ao que faço e estudando pra melhorar. No momento de tocar, eu apenas tento ser o mais honesto possível. É uma vida, é um grande caminho, e eu agradeço por ter tido a boa sorte de ter sido exposto à música antes mesmo da minha primeira dentição.
Alguns músicos, dizem que um músico nunca deve achar que sabe demais, afinal a música é um processo inacabável. Você concorda com essa afirmação?
Concordo. Só não dá pra tomar este caminho como um fardo, um martírio, como alguns fazem. Pelo contrário, é muito prazeroso, principalmente quando você sabe a diferença entre trabalho para pagar as contas e arte. Só que pouquíssimos têm essa clareza, que é vital para seguir com sanidade – e sem dizer amém para raposas. Frases como essa da pergunta soam apenas clichê quando ditas por alguns músicos, porque, em sua maioria, as pessoas são boas pra repetir aquilo que ouvem, mas não para colocar em prática. O ego é um grande desafio neste meio. Honestamente, sinto que falta leitura para muitos dos meus colegas de profissão; têm livros que ajudam a abrir a mente e a perceber que o centro do universo não é o nosso umbigo.
Você começou tocando aos 7 anos com o seu avô. Quais ensinamentos dele que ainda estão presentes no seu modo de ver e atuar no seu ofício?
Meu avô paterno Durvalino Leme tocava violão muito bem. Quando percebi isso eu aproveitei o máximo que pude. Ficava ouvindo e observando o meu avô tocar por horas, e as histórias que ele contava também eram muito legais. Ele me mostrou o valor da música, da dedicação e me incentivou muito. Pouco antes de partir ele se mostrava muito feliz por saber que eu já estava tocando direto por aí.
Dentre tantas características suas, uma que chama a atenção é a improvisação. Como é manter o espírito da improvisação e sempre surpreender sem se repetir?
Se repetir nem é o problema, porque ao desenvolver um discurso você acaba usando palavras que já usou em outras oportunidades. A questão talvez seja saber sobre o que se está “falando” e fazê-lo com consciência e total concentração. E é o ser total que toca; corpo, mente e espírito em harmonia. Também não adianta ficar preso ao que deu certo ontem; assim como um dia nunca foi ou será idêntico ao outro, a mesma música vai acontecer de jeitos diferentes a cada dia. Eu amo a música e quando estou tocando eu sinto que é o momento perfeito, porque ela não mente. O Homem conseguiu macular o “music business”, mas não a música. A divina segue elevando e, como disse o músico Jack DeJohnette [compositor, pianista e baterista norte-americano 1942 -] “a cultura genuína não virá até você; é preciso buscá-la”.
Em uma de suas entrevistas, você disse que o músico precisa criar novos espaços para tocar ou que apenas continue tocando onde exista respeito. Essa sua visão e consciência, tem a ver com algum desrespeito ocorrido principalmente no começo de sua carreira em algum bar, por exemplo, onde muitos músicos começam?
Todo músico tem uma história lamentável pra contar em relação a contratantes, instituições, burocracia, programadores, mídia, bares, gerentes, seguranças, outros músicos, lojistas, etc. E o problema quanto ao desrespeito não se limita aos bares. Alguns falam sobre a “cena da música instrumental” e isso está mais para um delírio ou uma tentativa idiota de marketing, porque, de fato, não há cena alguma por aqui. Existe produção real, sim, alguns caras gravando e lançando seus discos, mas não há espaços o suficiente e muito menos vontade real de promover o encontro desta produção com o público. Até teria espaço e o artista criativo – e que efetivamente propõe algo artístico – poderia ser bem pago em instituições como estas nomeadas com siglas que tem por aí, mas os critérios de contratação são tão misteriosos e há tanto “dois pesos e duas medidas” que você acaba desistindo de mandar material, acaba enojado e parte pra outros nichos – o que favorece, claro, a pequena corte “associada”. Já os bares de “jazz”, que poderiam ser úteis culturalmente, são uma piada, via de regra, tanto quanto a grana, mentalidade ou condições para se fazer música. As prefeituras, por sua vez, preferem pagar milhões para a “música pra pular brasileira” em eventos “mega” ao invés de fomentar uma real cena cultural. E aí, o que sobra para quem faz música? A tal “cena” é, de fato, uma terra sem lei, porque onde há dinheiro no Brasil haverá gangues e esquemas. É isso o que está rolando no meio musical como regra e eu não vejo músicos ou produtores que teriam muito que dizer publicando sequer uma vírgula a respeito, infelizmente. Por estas e outras, precisamos muito de alternativas.
Como um professor de música deve agir para ampliar um talento e não podá-lo?
Em primeiro lugar, sabendo fazer o que ensina. Não adianta, pelo menos na área “aulas de guitarra”, na qual eu atuo desde 1990, falar de música e não saber tocar. Outro quesito é não ter medo de trabalhar, ou seja, pra colaborar com o aluno você vai ter que realmente ouvir o que ele toca e vai ter que pensar em soluções efetivas para ajudá-lo. Isso exige concentração verdadeira, esforço e dedicação. E cada aluno tem suas características, portanto, não dá pra se esconder atrás de nenhuma padronização com o intuito de “facilitar o trabalho”. Ouve-se muitas histórias lamentáveis neste ramo, coisas absurdas como perseguições, ofensas e métodos de ensino pra lá de questionáveis. Isso vindo, principalmente, dos “mestres acadêmicos do jazz”; deuses em frente às suas lousas e simples piadas no meio musical – raras são as exceções. Eu ensino música na guitarra, e o faço da maneira com a qual eu gostaria de ter tido aulas. E faço questão de deixar claro que estou aprendendo diariamente neste quesito também, me recuso a vestir a “túnica de mestre”, que é a “carteirada”, a imposição de uma hierarquia, enfim, essas coisas de quem passa longe da música.
Você encontra alguma dificuldade em ter algum espaço no mainstream, mesmo depois de fazer música com uma qualidade excepcional?
Proponho fazermos o exercício de dividir o mainstream em várias camadas, diferenciando-as pela quantidade de grana envolvida e exposição, mas sempre tendo em mente que, seja qual for a camada, a orientação de difundir estupidez na sociedade é a mesma. Então: 1) há o mainstream das grandes gravadoras que bancam a execução de seus produtos de entretenimento em todas as mídias, ao nível mundial; 2) em outro nível de grana e falando em Brasil, há o mainstream das instituições e festivais que ainda podem pagar bons cachês e que deveriam servir à sociedade apresentando manifestações artísticas legítimas e sob critérios de contratação claros, mas, em ação, salvo raríssimas exceções, não passam de currais de programadores/curadores e seus jogos de interesses que se eternizam com artistas e produtores se acotovelando para fazer parte; 3) há o mainstream da educação musical, que, através de marketing ideológico “só será um músico sério aquele que possuir um diploma”, acaba sendo aceito como algo legítimo na sociedade, mesmo com seus “mestres” ou métodos não sendo legítimos musicalmente – raríssimas são as exceções também; 4) em um nível de bem menos grana, há o mainstream dos barzinhos que só abrem espaço para bandas ‘cover’, ou seja, apenas mais do mesmo e a criação artística que se dane – e a moda está pegando nos bares de jazz também, com cada vez mais “tributos” aos grandes nomes americanos em suas agendas (jazz = liberdade? Hum…); e etc, etc. Enfim, “mainstream”, na minha visão, não é só onde rola milhões, é toda camada ou nicho que reproduz os valores do grande teatro de horror que é a indústria cultural. Então, eu não faço, não quero fazer e provavelmente nunca farei parte do mainstream ou mesmo de suas sucursais, porque continuo amando a música e a minha dignidade – o que “não é de bom-tom” num meio onde sorrir muito, dar tapinhas nas costas, elogiar, adequar a música e entrar nos esquemas é a lei.
Quando tocou com nomes da música norte-americana, como Lee Konitz, Gary Willis e Michael Brecker, você disse que eles chegaram mostrando igualdade, tranquilidade e humildade. No Brasil, músicos de modo geral com quem você tenha tocado, mostraram essa mesma tranquilidade, igualdade e humildade?
Independente da pátria de origem, existem muitas variáveis. Mesmo assim, pelo que observo, parece que há uma constante: quando o cara toca mesmo, ele é mais tranquilo. Acho que tocar música de fato, ser “do ramo” e estar consciente de si são fatores que eliminam melindres, egotrips e tudo o que não combina com a música. Tem exceções, claro, como caras que tocam bem e, mesmo assim, são escrotos. Mas isso é raro e estes ficam logo “marcados” no meio musical. Eu, por muito boa sorte talvez, venho tocando com músicos que compreenderam o quão ridículo é colocar-se acima da música.
Fale um pouco do seu trabalho “Michel Leme 9” lançado no ano passado.
Após lançar o CD “Na Hora”, em 2013, eu tinha alguns temas prontos e outros foram nascendo quando pensei em adicionar o pianista Felipe Silveira ao trio – que está na ativa desde 2008 – com Bruno Migotto no baixo e Bruno Tessele na bateria. Fizemos apenas uma apresentação com a formação nova, curtimos muito e cinco dias depois gravaríamos o disco. A locação foi o salão da Igreja Betesda em Diadema, onde fomos recebidos maravilhosamente pelo meu querido Miguel Garcia e família. Gravamos com a unidade móvel do Flávio Tsutsumi, parceiro desde o CD “5°”, no dia 31 de julho de 2014. As fotos são da Taty Catelan e a mix, master e arte são do Flávio Tsutsumi também – com meus palpites. É importante citar o apoio cultural dos parceiros: D’Addario, EM&T, Espaço Sagrada Beleza, Luthieria. Net, Rotstage, Sho’You audio & vídeo, Tecniforte e Timbres. O CD chegou da fábrica em 19 de novembro de 2014 e chama-se “9” porque é o meu nono lançamento oficial. São seis temas inéditos e de características variadas. O “9” está sendo distribuído física e digitalmente pela Tratore, e está à venda pelo meu site também.
“Siga aquele Diploma!”, de certa forma é um desabafo para aqueles que dizem que músicos de verdade são “criados” em conservatórios ou coisa parecida?
É inegável a ironia neste título, porque, depois de conhecer a magnitude da música, quem vai querer seguir um mero pedaço de papel, não é?
O poeta francês Paul Claudel, disse que a música é a alma da geometria. E para você, o que é a música?
Peço licença para não tentar defini-la, porque qualquer tentativa resultaria incompleta ou injusta. Pra saber o que a música é para mim eu peço que ouçam a música que toco com meus amigos.
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