André Klotzel é diretor de cinema, roteirista, produtor e montador. Em 1974, estagia nas produtoras da Boca do Lixo. É assistente de produção em “Curumin” (1978), de Plácido Campos (1944), e assistente de direção em “Na Estrada da Vida” (1980), de Nelson Pereira dos Santos (1928). Em “Janete” (1982), de Chico Botelho (1948-1991), além de assistente de direção é corroteirista. Dirige o curta-metragem “Gaviões” (1982), documentário a respeito do universo da torcida corinthiana. Funda, em 1983, com os fotógrafos Pedro Farkas (1954) e José Roberto Eliezer (1954), com o diretor Ricardo Dias (1950) e com a produtora Zita Carvalhosa (1960) a Cinematográfica Superfilmes. A Superfilmes se associa a Tatu Filmes para produzir seu primeiro longa-metragem, “A Marvada Carne” (1985), que ganha 11 prêmios no 13.º Festival de Gramado. Participou da Semana da Crítica, no Festival de Cannes, e levou mais de 800 mil pessoas aos cinemas. Produz o longa-metragem “Anjos da Noite” (1987), de Wilson Barros (1948-1992). Dirige o curta “No Tempo da II Guerra” (1989) e começa a trabalhar em “Capitalismo Selvagem”, longa-metragem que conclui em 1993. No final dos anos 1990, adapta o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do escritor Machado de Assis (1839-1908), lançado em 2001. Deixa a Superfilmes e funda a Brás Filmes em 2006. Dirige “Reflexões de um Liquidificador” (2010), seu primeiro longa em que não escreve o roteiro.
André, em que momento o cinema exerce um papel social?
Acho que falar de papel social do cinema é o mesmo que falar, por exemplo, do papel cultural da culinária. A culinária não necessariamente almeja ser cultura, e é sempre alimentação. Mas queira ou não, alimentação é cultura, mesmo que não tenha pretensões culturais. O cinema, mesmo sem pretender passar mensagens de conteúdo social, sem pretender essa envergadura, involuntariamente exerce esse papel, pela simples razão de sua existência. O cinema é necessidade, na mesma medida daquela música dos Titãs que diz: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Isso é o papel social, o resto é conteúdo.
O que um cineasta jamais deve perder com o passar do tempo?
A necessidade da descoberta de como fazer cada filme. É essencial ter que inventar o jeito de contar as histórias. Eu não conseguiria aplicar uma fórmula a um enredo e me contentar em rodar isso de maneira preestabelecida. Entrar no processo de fazer um filme é entrar em uma aventura, uma viagem em que não se sabe exatamente quais desafios vão aparecer. Você pode determinar o caminho que quer percorrer, saber por onde ir, mas nunca conseguirá eliminar imprevistos, por mais recursos e planejamento que se faça.
A graça está justamente aí: descobrir a maneira de responder a isso, sabendo da necessidade do filme que está fazendo. Mesmo que o espectador jamais desconfie que isso tudo foi necessário para contar aquela história. Mesmo que a história pareça trivial depois de pronta, sempre se passa por isso. É difícil de explicar, mas quem já fez um filme sabe do que se trata. É o poder de criar uma realidade inexistente, que tem a força de um sonho – essa a jornada que fascina.
Suas indagações enquanto artista, surgem de observações externas ou de inquietações internas?
As duas coisas. Acho que funciona quando as observações externas alimentam minhas inquietações. Ou vice-versa: observo algumas coisas por ter determinadas inquietações. Não sei, e, na verdade, nunca me perguntei muito sobre isso.
Por que “A Marvada Carne” marca tanto a memória afetiva de várias pessoas em sua visão?
O mundo caipira é nostálgico por definição. Nos “causos” a história sempre começa com algo como “naqueles velhos tempos…”. É a história da fábula, do “era uma vez, era uma vez”. A Marvada é uma fábula, tem a mesma origem da narrativa oral que as fábulas. Essa narrativa que tem pendor para o cômico, o exagerado, sentimental, idealizado. E isso são coisas ancestrais, arquetípicas, universais, que tocam todo mundo.
O que os seus filmes têm em comum e que só você vê?
Aquilo que só eu vejo, eu não conto pra ninguém. É segredo! E ninguém jamais vai saber se essa afirmativa é verdadeira, ou falsa…
Essa leitura que só você enxerga, já foi assimilada por alguém que fez comentários sobre a sua obra?
Me surpreendo às vezes com coisas que nem eu sabia. É engraçado, porque um filme é coisa muito planejada, obra de criação em que muitas pessoas colaboram, e mesmo assim há resultados involuntários, que você só percebe depois que fez.
Os grandes intelectuais do cinema estão em extinção?
Claro que sim, eu não consigo me lembrar de quase nenhum. Mas isso não quer dizer que não ressurjam em breve, pode ser só que estejamos em uma temporada de entressafra. Essa palavra “intelectuais” eu já nem sei mais se é utilizada para designar uma qualidade positiva, ou depreciativa. Será que remete a alguém que vê as coisas com profundidade? Ou uma pessoa que é apartada da maioria, com uma pretensão de virtude? E talvez o raciocínio pejorativo se institucionalizou, como se ser intelectual fosse um comportamento de elite e segregacionista. Talvez eles não existam mais… nesse momento…
Você é conhecido por ser um diretor criativo. O que é fundamental para ter essa criatividade sempre aguçada?
Difícil dar uma resposta criativa a essa… vamos ver… Paga-se o preço do risco de ser criativo – porque existe risco, a criatividade pode não bater à porta e aí você fica esperando. Não é uma questão de inspiração, é uma questão de exigência. Se não houver uma ideia instigante, e que, ao mesmo tempo, tenha sua razão de ser contada, não vale a pena. E isso não é fácil, tem que pintar uma ideia que, necessariamente, será criativa. Quando não vem, tem que procurar. De minha parte, sou criativo na marra.
Quais outras fontes são absorvidas por você para manter a criatividade sempre em dia?
Nenhuma fonte, apenas fluxo da vida. Não gosto de procurar referências. Penso que as referências que são importantes são as que você absorveu e ficaram dentro de você. Aquilo que você descartou, descartou porque, no fundo não era importante preservar.
Qual a maior dificuldade em fazer cinema no Brasil?
Grana – essa a resposta que vem por impulso. Mas aí, voltando para a primeira pergunta que você me fez, grana é que nem comida: a gente quer comida mas também quer… Em cinema a gente quer grana pra fazer filme, mas também quer um sonho para as pessoas, e isso está difícil no país. Acho que o cinema é muito relacionado com sonho. O sonho americano está expresso nos filmes estadunidenses. O sonho das pessoas é universal e local. Os sonhos locais, quando existem, despertam sonhos universais. A gente está muito carente de sonhos.
Fale um pouco sobre os projetos em que está envolvido atualmente.
Estou terminando um filme, buscando recursos para finalizar – e está difícil. E escrevendo uma minissérie. É a primeira vez que tenho experiência com esse formato e estou adorando a possibilidade. É um assunto épico, grandioso, que só conseguiria colocar em um projeto longo, uma história de várias horas.
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