O Padrão Globo de Qualidade é um conjunto de regras, implícitas e explícitas, que norteiam as operações da Rede Globo de Televisão, implementadas a partir do know-how repassado à emissora através de um acordo com a Time-Life na década de 1960. Esse padrão de produção agregou, desde o início da Rede Globo, um grupo de profissionais de produção capazes de criar uma imagem específica para a emissora, que acabou por se tornar um modelo almejado por todas as suas concorrentes.
O fator definitivo na implementação pela Rede Globo de seu padrão de qualidade deu-se em 1962 com o acordo assinado com o grupo Time-Life. Com isso chegou ao Brasil uma nova maneira de se fazer televisão, mais centrada em um modelo empresarial, cujo foco era a parte comercial e produtiva. Isso representou grandes avanços em termos técnicos e tecnológicos, pois além de receber um gerenciamento direto, a parceria resultou no treinamento de funcionários nos Estados Unidos e na importação de um modelo já consolidado na televisão americana. No entanto, mesmo dispondo desses conhecimentos, o primeiro ano da Globo não resultou em audiência, obrigando o Time-Life a substituir seu representante no Brasil pelo gerente de sua emissora em San Diego, o especialista em finanças Joe Wallack. Em 1966, Wallack contratou profissionais como Roberto Montoro e Walter Clark, que assumiu a direção-geral da emissora e convidou para a direção de Produção e Programação, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), formando a dupla Boni&Clark.
A eles são atribuídas, direta ou indiretamente, diversas inovações introduzidas pela Rede Globo, como a ideia da telenovela como âncora da programação, a idealização do Jornal Nacional e sua disposição entre duas novelas, a projeção de um canal voltado a uma rede de alcance nacional e a subordinação de emissoras afiliadas e de repetição à cabeça-de-rede no Rio de Janeiro. A ênfase no “horário nobre” (das 18 às 22 horas), com a exibição de jornalísticos e, principalmente, telenovelas, foi o principal trunfo da rede na luta pela audiência e a verdadeira marca do sucesso da Globo.
A inovação que deu mais sustentação ao padrão de qualidade foi a comercial. Sob o comando de Walter Clark, chegou ao fim o modelo de patrocinador único, que concedia a este a responsabilidade por determinados programas, passando a vigorar uma forma de venda que privilegiava a programação fixa e voltava-se para a negociação de espaços de publicidade em intervalos comerciais. Dessa forma, a emissora ganhou maior lucratividade e, consequentemente, mais autonomia no desenvolvimento de sua grade de programação.
Investindo em programas populares e evitando o confronto direto com outras emissoras, a emissora carioca foi conquistando aos poucos seu espaço na televisão. Sua hegemonia na área foi confirmada na década de 1970 com o ostracismo das concorrentes TV Excelsior e Tupi. O salto em qualidade desta época foi auxiliado pela incorporação de técnicas e profissionais do cinema, e um quadro de funcionários advindos do teatro, literatura e cinema, formando parte do padrão de qualidade que auxiliou posteriormente no contínuo desenvolvimento da emissora.
Uma intervenção governamental no começo dos anos 1970, cujo objetivo era acabar com o “baixo nível cultural” das emissoras, levou a Globo a eliminar de sua grade traços de “mau gosto” e “popularesco”, o que acabou por elevar o perfil de produção a um nível mais ao gosto do público de classe média. Junto à produção e gerenciamento eficientes, ao forte esquema comercial, aos conhecimentos e tecnologia importados, e uma proposta estética limpa de ruídos estéticos e políticos, esse foi um dos elementos primordiais para o que seria mais tarde chamado de Padrão Globo de Qualidade.
O sucesso do Padrão Globo de Qualidade perdurou durante a década de 1980, mesmo com o surgimento de novos canais de destaque, como o SBT em São Paulo e a TV Manchete no Rio de Janeiro. A resposta da Rede Globo foi a ampliação e criação de novos parques industriais televisivos e a exportação de sua programação para mercados internacionais. Na década de 1990, as inovações tecnológicas acirraram ainda mais a concorrência, enquanto a emissora inaugurou, em 1995, no Rio de Janeiro, o seu Centro de Produção Projac (atual Estúdios Globo) e estabeleceu, a partir de 1999, novos estúdios na sede da TV Globo São Paulo para jornalismo e produção de programas.
Esses anos foram marcados pela consolidação da Globo como a principal emissora de televisão do Brasil, com uma programação que se destacava pela qualidade técnica e artística. Programas como “Fantástico”, “Globo Repórter” e telenovelas como “Roque Santeiro” e “Vale Tudo” se tornaram ícones da televisão brasileira, refletindo a excelência da produção da emissora.
No entanto, com a chegada do século XXI, a Globo começou a enfrentar novos desafios. A proliferação de canais de televisão a cabo, a popularização da internet e o surgimento de plataformas de streaming começaram a fragmentar a audiência e a diminuir a influência das emissoras tradicionais. A Globo, apesar de sua hegemonia, não estava imune a essas mudanças e começou a sentir os efeitos em sua audiência e receitas publicitárias.
A crise econômica que atingiu o Brasil nos últimos anos também teve um impacto significativo na emissora. O cenário econômico adverso levou a Globo a adotar medidas de contenção de despesas, incluindo uma onda de demissões que atravessou 2023 e deve seguir pelos próximos meses. A emissora, que sempre foi conhecida por seus investimentos em produção de alta qualidade, começou a cortar custos, o que inevitavelmente afetou a qualidade de suas produções.
Um exemplo simbólico desse declínio foi o cenário montado para acompanhar a chegada de 2024 na Globo. O piso comum com uma estreita faixa laminada, telão sem boa definição de imagem e estrelas de diferentes tamanhos – semelhantes às vendidas em lojas populares de material de festa – penduradas no pequeno espaço, destoaram do alto padrão ao qual o público estava acostumado. A alta expectativa em relação à maior e mais rica emissora de TV do país não foi correspondida, revelando os impactos das dificuldades financeiras e das mudanças estratégicas na qualidade das produções.
A insatisfação com as mudanças na Globo não é apenas externa, mas também interna. Galvão Bueno, um dos mais renomados narradores esportivos do Brasil, criticou a nova direção da emissora após encerrar seu contrato de décadas com a Globo. Em seu podcast, Galvão afirmou que a nova gestão estava “estragando um pouco” o que o ex-diretor de TV, Boni, construiu para transformar a Globo em líder de audiência e criadora do Padrão Globo de Qualidade.
Galvão Bueno destacou a importância da Globo na mídia e reconheceu os ensinamentos de Boni como fundamentais para o sucesso da emissora. “Sempre se pode fazer melhor”, disse ele, refletindo a filosofia de excelência que permeou a Globo por décadas. No entanto, as críticas de Galvão apontam para uma percepção de que a emissora está se afastando dessa filosofia em busca de novas estratégias para enfrentar um mercado cada vez mais competitivo e fragmentado.
Além do cenário de fim de ano, outros exemplos ilustram o fim do Padrão Globo de Qualidade. A produção de telenovelas, que sempre foi o carro-chefe da emissora, começou a apresentar sinais de declínio. Novelas recentes não conseguiram atingir o mesmo nível de audiência e repercussão de suas antecessoras. A falta de inovação nos roteiros e a repetição de fórmulas desgastadas contribuíram para a perda de interesse do público.
Outro exemplo é o “Jornal Nacional”, que, apesar de ainda ser o principal telejornal do país, enfrenta desafios para manter sua audiência diante da proliferação de fontes de notícias online e da concorrência de outras emissoras. A perda de grandes talentos do jornalismo, devido a demissões e aposentadorias, também afetou a qualidade do conteúdo jornalístico da Globo.
Programas de entretenimento, como “Domingão do Faustão”, que foi um ícone da programação dominical por décadas, também sofreram mudanças significativas. A saída de Fausto Silva e a reformulação do programa sob novo comando não conseguiram manter o mesmo nível de audiência e repercussão, evidenciando a dificuldade da emissora em se adaptar às mudanças no gosto do público.
Diante desses desafios, a Globo tem buscado se reinventar e encontrar um novo padrão de qualidade que se adeque às demandas do mercado atual. Investimentos em plataformas de streaming, como o Globoplay, e a produção de conteúdos exclusivos para a internet são estratégias adotadas pela emissora para se manter relevante.
A Globo também tem buscado parcerias internacionais e a produção de séries e filmes com potencial de alcance global. Essas iniciativas visam diversificar as fontes de receita e ampliar o alcance da emissora em um mercado cada vez mais globalizado. No entanto, esses esforços ainda enfrentam desafios, incluindo a necessidade de adaptar a cultura organizacional e a estrutura de produção da emissora para esses novos formatos e mercados.
A reestruturação interna tem sido uma das principais estratégias da Globo para enfrentar a nova realidade do mercado. A emissora tem implementado cortes de custos e uma revisão completa de suas operações, o que inclui a demissão de funcionários, a redução de investimentos em produções de alto custo e a otimização de processos. Essas medidas, embora necessárias para a sustentabilidade financeira da empresa, têm gerado críticas e preocupações sobre a perda de qualidade nas produções.
A busca por uma nova identidade é um desafio complexo para a Globo. A emissora precisa equilibrar a tradição e a inovação, mantendo o legado do Padrão Globo de Qualidade enquanto se adapta às novas demandas do público e às mudanças tecnológicas. Esse processo de transformação inclui a exploração de novos formatos de conteúdo, como séries documentais, reality shows e produções interativas, além do fortalecimento de sua presença digital.
Um exemplo dessa reestruturação é a criação de conteúdos exclusivos para o Globoplay, a plataforma de streaming da Globo. Séries como “Arcanjo Renegado” e “Desalma” têm recebido elogios por sua qualidade de produção e narrativa inovadora, mostrando que a emissora ainda tem capacidade de criar conteúdos relevantes e atraentes. Além disso, a parceria com produtores e estúdios internacionais tem permitido a criação de conteúdos com potencial de alcance global, diversificando o portfólio da Globo e atraindo novos públicos.
A Globo também tem investido em novas tecnologias de produção, como realidade aumentada e virtual, para criar experiências mais imersivas para o público. Essas inovações tecnológicas visam não apenas melhorar a qualidade das produções, mas também explorar novas formas de contar histórias e envolver o público de maneira mais profunda e interativa.
Outro aspecto importante na busca por um novo padrão de qualidade é o compromisso com a diversidade e inclusão. A Globo tem se esforçado para refletir a diversidade da sociedade brasileira em suas produções, abordando temas como igualdade de gênero, representatividade racial e inclusão de pessoas com deficiência. Essas iniciativas são fundamentais para a relevância da emissora em um mercado cada vez mais consciente e exigente em relação a questões sociais.
Programas como “Amor de Mãe” e “Bom Sucesso” têm sido elogiados por trazer personagens e histórias que refletem a diversidade do Brasil, abordando temas sociais relevantes de maneira sensível e impactante. Essas produções mostram que a Globo está atenta às mudanças na sociedade e disposta a adaptar seu conteúdo para atender às expectativas de um público mais diverso e engajado.
Além disso, a Globo tem implementado políticas internas de diversidade e inclusão, promovendo a igualdade de oportunidades e a valorização da diversidade em seu ambiente de trabalho. Essas ações são essenciais para a construção de uma cultura organizacional mais inclusiva e para a atração de talentos diversos, que podem contribuir para a inovação e a qualidade das produções.
O Padrão Globo de Qualidade foi um marco na história da televisão brasileira, estabelecendo um nível de excelência técnica e artística que influenciou gerações de profissionais e espectadores. No entanto, as mudanças no mercado e na sociedade exigem que a emissora se reinvente e encontre novas formas de manter sua relevância e liderança.
O fim do Padrão Globo de Qualidade, como originalmente concebido, não significa necessariamente uma perda total de qualidade. Pelo contrário, pode representar uma oportunidade para a Globo redefinir seus padrões e se adaptar às novas realidades, explorando novas tecnologias, formatos de conteúdo e práticas inclusivas.
A trajetória da Globo mostra que a emissora tem capacidade de inovação e resiliência para enfrentar desafios e se reinventar. O futuro da Globo dependerá de sua habilidade de equilibrar tradição e inovação, mantendo seu compromisso com a qualidade enquanto se adapta às mudanças no mercado e nas expectativas do público.
O Padrão Globo de Qualidade pode estar passando por uma transformação, mas seu legado de excelência continua a inspirar e a orientar a emissora em sua busca por um novo padrão que reflita as demandas e as oportunidades do século XXI.
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