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O racismo segundo o ativista Hédio Silva Júnior

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Nascido em 1961, na cidade de Três Corações, Hédio Silva Júnior formou-se em Direito pela Universidade São Judas Tadeu. Atuou como consultor na Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, na Unesco e no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Doutor em Direito Constitucional e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP, Hédio é também diretor executivo da ONG Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade. Como coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, trabalhou para apurar a chacina de moradores de rua em São Paulo e realizou blitz em hospitais psiquiátricos para verificar as condições de atendimento aos pacientes. Publicou ainda livros sobre a questão racial no Brasil como: “Anti-Racismo – Coletânea de Leis Brasileiras (1998) e “Discriminação Racial nas Escolas – Entre a Lei e as Práticas Sociais” (2002). “O mal da sociedade brasileira é o racismo e o DNA escravocrata de parte dos nossos intelectuais. Antes das ações afirmativas, inúmeras vezes fui convidado para participar de bancas em universidades públicas da Bahia, um estado em que 80% da população é negra. Só se via negros na limpeza, na cozinha e na vigilância. (…) Acho que com minha mãe, que era branca e sempre sofria e chorava copiosamente quando as pessoas a indagavam se eu e meu irmão éramos filhos adotivos”, afirma o doutor em Direito. 

Hédio, para começar a entrevista, nos fale um pouco do seu começo de vida.

Minha origem não se diferencia muito da trajetória da imensa maioria dos negros brasileiros: bairro pobre, na periferia de São José dos Campos, escola pública. Minha família sempre me incentivou a estudar, o que certamente fez toda a diferença.

A maioria das pessoas da raça negra têm em algum momento de suas vidas, uma história de racismo que aconteceu consigo ou com alguém bem próximo. Isso já aconteceu com o senhor?

A experiência mais traumática de discriminação racial que vivi foi na escola. No antigo ginásio, éramos dois negros na minha sala, eu e o Paulinho Lélis, meu primeiro e mais longevo amigo. Houve um furto na sala da diretoria e a professora de português – que frequentemente elogiava minha redação – soltou aquela máxima do racismo cordial, em plena sala de aula: “Não quero acusar ninguém, mas, pra mim, quem roubou foi o Hédio ou o Paulinho”. Eu tinha 12 anos e sabia perfeitamente porque ela estava nos acusando. Um tempo depois o Paulinho abandonou a escola e nunca mais retornou. Do meu lado, um tempo depois entrei para o Movimento Negro e fui lutar contra o racismo na sociedade.

Em que momento foi criada a consciência de ser um lutador, ou melhor, de ser um ativista social pela causa dos negros no Brasil?

Acho que com minha mãe, que era branca e sempre sofria e chorava copiosamente quando as pessoas a indagavam se eu e meu irmão éramos filhos adotivos. Minha mãe tinha uma consciência aguda do racismo no Brasil e, mesmo não verbalizando, os comentários que ela fazia da experiência de ser mãe de crianças negras foram fundamentais para me deixar atento ao racismo no cotidiano.

Sabemos que o racismo não tem uma cara, ou seja, em todos os países até mesmo numa nação miscigenada como a nossa, ele se faz presente. Podemos dizer que o racismo então é uma forma hereditária de um grupo, que quer se colocar superior a outro não dependendo de um lugar específico?

O racismo se alimenta do silêncio, da omissão dos indivíduos e do Estado. Tem muita gente boa que acredita que o fato do país ser miscigenado significaria que não há discriminação. Mas o exemplo do Neymar [recentemente insultado por torcedores do Barcelona que ao verem o atacante imitaram sons de macacos], do Roberto Carlos (no passado recente) e outros estão aí pra provar que o indivíduo miscigenado não é identificado como branco, mas como negro. Se o miscigenado tiver aparência de branco, tudo bem, ele vai ser tratado como branco. Mas se ele ostentar um único atributo físico de negro, ele será tratado como negro. O Neymar é negro, embora ele queira ser branco, e é só por isso que é chamado de macaco por torcedores europeus – que bem poderiam também ser brasileiros.

Muitos que defendem a meritocracia como forma de galgar degraus na vida, dizem que as cotas em universidades são um mal para a sociedade. Como vê essa afirmação?

O mal da sociedade brasileira é o racismo e o DNA escravocrata de parte dos nossos intelectuais. Antes das ações afirmativas, inúmeras vezes fui convidado para participar de bancas em universidades públicas da Bahia, um estado em que 80% da população é negra. Só se via negros na limpeza, na cozinha e na vigilância. Nos bancos universitários, a cota era de 100% de brancos. Nessa época, muita gente boa dizia que no Brasil não havia racismo e que se os negros não prosperavam era por nossa própria culpa, e não das estruturas racistas de nossa sociedade.

Passados mais de dez anos das ações afirmativas no acesso ao ensino superior, qual o resultado? Os estudantes negros apresentam exatamente o mesmo desempenho dos demais estudantes. As cotas democratizaram o acesso ao ensino superior, favoreceram inclusive o acesso de brancos pobres às universidades públicas, e desmascararam a farsa do vestibular – uma engenhoca racista e elitista, feita para favorecer os milionários cursinhos preparatórios. Meritocracia você mede em sala de aula; não na antessala da universidade.

Em 2001, o senhor não estava contente com a política antirracismo do Governo Federal. E hoje depois de 13 anos, como vê esse trabalho?

O Governo FHC pautou o tema do racismo, adotou algumas ações no plano simbólico, mas teve medo de implementar medidas concretas. Os Governos Lula e Dilma implementaram importantes reivindicações da agenda do Movimento Negro brasileiro e tomaram medidas concretas, com impacto altamente positivo no enfrentamento do racismo. Não tenho dúvidas de que a população negra acompanha atentamente estas medidas e talvez aí resida parte do prestígio que Lula e Dilma tem no eleitorado negro.

Na era FHC, o senhor dizia que o Governo vendia uma imagem externa de que aqui existia perfeita integração com a sociedade civil passando, no plano internacional, a imagem de que dialoga e reflete os anseios do Movimento Negro. Algo mudou com os anos em que o PT está no poder?

FHC reconhecia o Movimento Negro, ouvia as lideranças, mas foi tímido na implementação de políticas. Os Governos Lula e Dilma poderiam avançar muito mais se ouvissem as lideranças negras independentes, que não têm alinhamento automático com o Governo Federal, mas apoiam as medidas que tem sido tomadas e se dispõem a colaborar.

O Estado deve investir de um modo diferenciado no segmento negro?

O Estado deve garantir que a igualdade racial seja algo palpável pelas pessoas no cotidiano. Igualdade de oportunidades no acesso à educação, na política educacional, no acesso ao emprego, na mobilidade ocupacional, no tratamento dispensado pela polícia, etc.

Não se combate uma doença grave, como o racismo, com remédios adocicados. As ações afirmativas são um remédio amargo, temporário, mas é o único medicamento capaz de enfrentar um problema estrutural na sociedade brasileira e que por séculos foi colocado embaixo do tapete.

Muitos homens e mulheres da raça negra, perguntados se querem relacionar afetivamente com pessoas da mesma raça, dizem em um tom sério: “Preto já basta eu”. Isso também é uma forma de racismo não é?

Houve judeus que colaboraram com os nazistas – os judeus colaboracionistas – mas eu nunca ouvi ninguém tentando diminuir a gravidade do nazismo em razão do papel desempenhado pelos judeus colaboracionistas. Há casais de lésbicas que reproduzem a mesma violência doméstica que homens praticam contra mulheres; nem por isso se pode afirmar que mulheres são tão violentas quanto os homens.

Os negros são um grupo humano, diverso, com pluralidade de pensamentos, ideologias, credos, valores, etc., como qualquer outro grupo humano. O fato de haver negros que pensam desta forma não torna menos grave nem justifica o racismo no acesso à educação, ao trabalho, enfim, no exercício dos direitos individuais e sociais.

O que deve ser melhorado na legislação racial em nosso país?

Temos uma excelente legislação seja de natureza civil, trabalhista, criminal, enfim, um arsenal jurídico poderoso contra o racismo. O problema é que essa legislação frequentemente não é aplicada. Advogados, promotores, juízes desconhecem a legislação e, muitas vezes, tendem a analisar o problema com base nos seus credos e valores pessoais e não no que determina a lei. Vou te dar um exemplo: desde 2009 o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a prever a realização de palestras para pessoas interessadas em adoção, com o objetivo de pautar o problema do preconceito racial nos processos de adoção. O que foi feito até agora? Quase nada. Em razão disso a Petrobras resolveu apoiar um projeto, coordenado por nós, para que uma das mais longevas ONGs negras do Brasil, o CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, desenvolva materiais e cursos para conselheiros tutelares e demais atores do sistema de garantia de direitos das crianças e adolescentes no Brasil.

É preciso, portanto, que os cursos de Direito, as instituições jurídicas, as escolas profissionais preparem os operadores do Direito para lidarem adequadamente com esta matéria. É isso o que falta para que as vítimas possam confiar mais no sistema de justiça e não hesitem em defender seus direitos.

Samora Machel, Nelson Mandela e Martin Luther King, o que o senhor absorveu de cada um deles?

Nelson Mandela foi sem dúvida o maior estadista do século XX e um dos maiores estadistas da história. Martin Luther King é um exemplo de audácia política, capacidade gregária e habilidade para costurar amplas alianças em favor da igualdade e da inclusão social. Samora Machel é um exemplo de rebeldia, de liderança política dentro e fora do continente africano. Li, aprendi e aprendo cotidianamente com os exemplos deles.


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