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Otaviano Canuto analisa o papel histórico do FMI

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Otaviano Canuto é ex-diretor executivo do Banco Mundial. Foi vice-presidente do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e diretor executivo do FMI (Fundo Monetário Internacional) para Brasil, Cabo Verde, República Dominicana, Equador, Guiana, Haiti, Nicarágua, Panamá, Suriname, Timor-Leste e Trindade e Tobago. Trabalhou no Ministério da Fazenda e foi professor na USP. Também foi ganhador do “Prêmio Mestre na Arte da Economia”, da Universidade de Concordia, Montreal- Quebec, Canadá, de 1979-1981. Canuto recebeu o título de doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde estudou de 1986 até 1991, sendo professor na mesma universidade até 2003. Atualmente é diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington, senior fellow do Policy Center for the New South e senior fellow não-residente do Brookings Institute. “O FMI foi estabelecido para preservar a estabilidade monetária internacional. Desde sua criação há 75 anos, muitas coisas mudaram. No início dos anos 70, o sistema monetário internacional abandonou o regime cambial fixo e ajustável cuja tutela havia estado sob a guarda e vigilância do Fundo. Nas décadas seguintes, com o aumento da mobilidade internacional de capitais, a capacidade de socorro a países com seus recursos de curto prazo encolheu”, afirma o economista.

Professor, qual a importância de instituições como o Fundo Monetário Internacional para a economia global?

O FMI foi estabelecido para preservar a estabilidade monetária internacional. Desde sua criação há 75 anos, muitas coisas mudaram. No início dos anos 70, o sistema monetário internacional abandonou o regime cambial fixo e ajustável cuja tutela havia estado sob a guarda e vigilância do Fundo. Nas décadas seguintes, com o aumento da mobilidade internacional de capitais, a capacidade de socorro a países com seus recursos de curto prazo encolheu, a não ser em casos de pequenos números de economias em desenvolvimento com necessidade de caixa em divisas. O FMI tornou-se um observador da economia mundial, um administrador de crises e gestor dos programas de resgate dos países que recorrem aos recursos da instituição.

Já sua instituição gêmea também criada na mesma Conferência em Bretton Woods, o Banco Mundial, foi criada para financiar e fornecer apoio técnico para projetos de investimento na reconstrução de países devastados pela Segunda Guerra Mundial e para países em desenvolvimento. Com o tempo, a “graduação” de países de renda mais alta os tirou da carteira de clientes e estes passaram a ser doadores de recursos. O Grupo Banco Mundial ampliou seu foco na intermediação de recursos concessionais – em condições favoráveis – para as economias de baixa renda. Países de renda média – como o Brasil, classificado como de renda média-alta – ainda recorrem a empréstimos, quando custos ou vantagens na obtenção de conhecimento via operações são atraentes, mas sua proporção na carteira do Grupo Banco Mundial é declinante. Em termos relativos, o tamanho do Banco Mundial também encolheu como proporção dos fluxos globais de capital privado para as economias em desenvolvimento.

As instituições gêmeas, além de serem fontes de recursos para países com déficits de curto prazo e/ou necessidades de financiamento de longo prazo, em conjunto com bancos regionais de desenvolvimento, também começaram a desempenhar papel de assessoria quanto a políticas públicas, de catalisadores de fluxos financeiros e investimento privado, de gestores de conhecimento e coletores de dados, bem como na advocacia e apoio para a oferta de bens públicos globais. Desde um ponto de vista monetário-financeiro, sua importância para a economia global não é mais como no passado, mas continuam importantes como observadores, aconselhadores quanto a políticas e como câmaras de coordenação multilateral.

Como se encontra atualmente a solidez do sistema monetário-financeiro internacional?

O sistema monetário-financeiro internacional passou por mudanças relevantes desde a crise financeira global, em parte como resultado das respostas de políticas nacionais a esta. Os bancos das economias no centro da crise – norte-americanos e europeus – encolheram suas exposições além de suas fronteiras nacionais. Em parte, por terem queimado seus dedos, já que, por exemplo, bancos europeus cumpriram papel-chave na formação de bolhas de ativos nos EUA e dentro da zona do euro e, mesmo se beneficiando direta ou indiretamente de programas de resgate, não saíram ilesos. Também porque os reguladores bancários aumentaram requisitos de segurança e impuseram menores níveis de alavancagem e maiores reservas de liquidez.

Assistiu-se a enorme ampliação das carteiras de ativos de bancos centrais, como parte das “políticas monetárias não-convencionais”, com aumento das parcelas de ativos financeiros privados por eles adquiridos. Isto acentuou a “volta para casa” dos bancos privados. Bancos de países emergentes compensaram apenas parcialmente o encolhimento de europeus e norte-americanos.

O volume de recursos financeiros transfronteiras não declinou porque a emissão de títulos de dívida e os fluxos de capitais de portfólio preencheram a lacuna… A intermediação financeira não-bancária cresceu em termos relativos, inclusive através das fronteiras nacionais.

Por um lado, dado que bancos constituem o elo mais vulnerável a corridas e crises na cadeia de intermediação financeira, por conta da natureza de seus balanços com passivos de curto prazo, seu encolhimento vem implicando menor vulnerabilidade sistêmica a choques e a seu desdobramento em crises. Por outro lado, isto pode simplesmente ter significado a transferência de riscos para esferas não-bancárias.

Á medida que as políticas monetárias não-convencionais, com juros baixos e provisão de liquidez mediante aquisição de ativos pelos bancos centrais, se estenderam no tempo, tem-se assistido à emergência de focos de preocupação quanto a possíveis áreas de vulnerabilidade, por conta de excesso de alavancagem de credores e endividamento de tomadores. O endividamento corporativo chinês frequentemente aparece entre eles, mas o fechamento financeiro relativo do país e a capacidade de resgate por seu setor público mitiga a percepção de riscos.

O endividamento de empresas não-financeiras dos EUA também aparece nessa lista. Há, porém, fatores que atenuam a probabilidade de alguma catástrofe no futuro próximo, pelo menos enquanto durarem os baixos juros. Durante a expansão dos últimos anos, os gastos com investimentos fixos pelas empresas norte-americanas estiveram abaixo de seus lucros e muitas dispõem de reservas. Em parte, a emissão de dívidas foi para recompra de ações e, neste caso, resultado de reestruturações de balanço planejadas e não por necessidade de caixa. Margens de lucro empresarial declinaram recentemente, mas permanecem elevadas. Finalmente, o mercado de empréstimos alavancados e seus derivativos não têm proporções equivalentes às de seus antecessores.

O fato é que, como destacado no Relatório sobre a Estabilidade Financeira Global do FMI divulgado há algumas semanas, a vulnerabilidade em diversos setores – dívida soberana, empresas não-financeiras e instituições financeiras não-bancárias – está elevada em várias economias com peso na economia global. Surpresas negativas – reavaliação súbita de riscos por parte de credores, desacelerações inesperadas no crescimento mundial, acirramento de tensões comerciais, um Brexit caótico – podem expor tal vulnerabilidade e elevar riscos de instabilidade financeira no médio prazo.

A resposta então é: o sistema monetário-financeiro não está à beira de colapso, mas exibe vulnerabilidades crescentes em alguns pontos, especialmente em relação a mudanças de postura em relação a riscos por parte de agentes privados.

Vamos falar um pouco do Brasil. Quais erros devem ser evitados na política macroeconômica neste momento?

As direções da política macroeconômica anunciadas pelo Governo vão na direção de enfrentar dois problemas básicos da economia brasileira, a saber, a trajetória fiscal insustentável e a anemia nos aumentos de produtividade. Há necessidade de cortes permanentes nos gastos públicos para tornar exequível o cumprimento do teto de gastos estabelecido constitucionalmente, para o que será fundamental uma reforma previdenciária. Na mesma linha, implementar um programa de privatização pode funcionar como forma de obtenção de receitas extraordinárias e de focalização no escopo de operações de empresas públicas. Adicionalmente, será possível melhorar o ambiente de negócios e reduzir os desperdícios de recursos que este impõe sobre o setor privado mediante reforma que simplifique o sistema tributário.

Um programa de abertura comercial pode abrir oportunidades de melhoria de produtividade. Além disso, o reforço da participação privada na infraestrutura poderia impulsionar decisões de investimento, com efeitos sobre a demanda agregada e sobre a produtividade, negativamente afetada na história recente pela carência de investimentos em infraestrutura no país.

Por outro lado, confiança na materialização dessa agenda será condição necessária para que agentes privados contem com alguma melhora no dinamismo de mercados num horizonte para além da lenta e tíbia recuperação econômica em curso e, assim, resolvam assumir riscos e investir. Tais investimentos e outros gastos privados serão fundamentais para a revitalização do crescimento e estabelecer algum tipo de círculo virtuoso à frente, posto que a política fiscal não poderá ser expansiva, o consumo baseado no crédito passou há pouco por um ciclo de alta e queda e a dinâmica de emprego e salários continua deprimida. Condições monetárias e financeiras para apoiar tal ciclo de investimentos privados são hoje favoráveis, mas, parafraseando John Maynard Keynes, a distância entre a taça e a boca pode ser grande e vai depender de confiança.

O maior erro a se evitar, portanto, é dar margem de desconfiança quanto à coesão do executivo em torno da agenda econômica e quanto a sua capacidade de obter resultados no Congresso. Componentes não estritamente econômicos da agenda do Governo que possam gerar ruídos e reações, nos âmbitos doméstico e externo, também podem atrapalhar.

O senhor está vendo com bons olhos a reforma previdenciária que foi levada ao Congresso pelo presidente Bolsonaro?

Como dissemos, a reforma previdenciária será essencial para se esperar exequibilidade do ajuste fiscal nos próximos anos. A estimativa anunciada pelo Governo quanto a ganhos substantivos em termos de cortes de despesa pública, apesar de graduais ao longo dos próximos anos, está em linha com necessidades, embora não suficiente por si só para o cumprimento da exigência do teto de gastos. Visivelmente a proposta contém elementos que podem ser descartados ao longo da negociação congressual sem afetar em muito o resultado. Mas a prova do pudim está em comê-lo, como dizem os ingleses.

Acredita que o ambiente de negócios no país irá melhorar se a reforma previdenciária for aprovada?

Poderá reforçar a confiança não apenas no ajustamento fiscal, mas também na aprovação dos itens da agenda que dizem respeito a produtividade.

Quais outras reformas adicionais são necessárias para restaurar a sustentabilidade fiscal da nação?

Mesmo que uma reforma previdenciária com resultados substantivos seja obtida, haverá necessidade de outras medidas, já que os ganhos com a reforma previdenciária não ocorrerão no futuro imediato. Itens óbvios no caso seriam uma revisão de subsídios e isenções tarifárias vigentes, bem como redução em termos reais de gastos públicos com pessoal.

Por que a economia do Brasil ainda é tão fechada?

No Brasil, como em outras partes do mundo, grupos de interesse tendem a se estabelecer em defesa de políticas que os privilegiem, mesmo quando se possa mostrar a possibilidade de seu ônus sobre os demais. O Brasil recorreu historicamente a proteção e fechamento comercial com intensidade acima até de outras experiências comparáveis. O tipo de “governança” – ou seja, de relação entre setores público e privado – só fortaleceu e se beneficiou desse fechamento. A saída poderia ser um programa de abertura gradual, desde que acompanhada de confiança de que os problemas usados como justificativas para a proteção comercial estejam sendo solucionados (ambiente de negócios desfavorável, infraestrutura, etc.).

Também diminuiria a resistência caso o Governo apresentasse programas de suporte e adaptação a regiões e trabalhadores que sofreriam o impacto imediato da abertura, tornando possível que os ganhos dos “vencedores” com a abertura compensem em parte os “perdedores”. Aliás, esse ponto se aplica ao conjunto das políticas públicas.

O Governo Dilma é o principal culpado pela nossa piora fiscal?

É um grande culpado, mas não o único. Desde os anos 90 tem-se uma máquina legal – constitucional e infra-constitucional – em operação, mandando quem quer que esteja no executivo aumentar gastos ano após ano. Vinculações de receitas, pisos de gastos, privilégios previdenciários e outros, em parte com boas intenções distributivas, mas também sem revisão de privilégios, implicaram gastos públicos ascendentes em termos reais ao ritmo médio de 6% ao ano entre 1992 e 2014. Não por acaso, apesar dos anos de crescimento econômico acima de 4% na década passada, a proporção de gastos públicos elevou-se substancialmente como proporção do PIB. Além disso, o percentual de orçamento disponível para infraestrutura e outros gastos públicos discricionários foram encolhendo. Nada disso se transfigurou em crise fiscal antes porque, dada a incorporação de trabalhadores e a tributação com base em seu consumo, a carga tributária também subiu em termos reais. O fim da onda de crescimento via incorporação de mão de obra e por conta do super-ciclo de preços de commodities mostrou que o setor público estava sem calção de banho.

A parcela de culpa do Governo Dilma diz respeito à fantasia que tentou realizar quando aquele padrão de crescimento brasileiro dos anos prévios à crise financeira global deu sinais de exaustão a partir de 2011. Tentou usar a dívida pública para disparar gastos e investimentos privados que pudessem iniciar um novo ciclo de crescimento, através do financiamento subsidiado via bancos públicos e outras generosidades fiscais. O resultado acabou sendo deterioração fiscal sem contrapartida de investimentos privados suficientes. Verdade seja dita, porém, que o Governo Dilma apenas acentuou uma trajetória já dada estruturalmente.

Como analisa as fintechs no cenário econômico-financeiro, afinal o senhor é um grande entusiasta das novas tecnologias?

Fintechs oferecem um enorme potencial de redução de custos de intermediação financeira e de aumento na concorrência na oferta de serviços. Ao mesmo tempo, trazem nova gama de riscos e há necessidade de ajuste – com aprendizado – na regulação financeira.

Em algum momento da sua existência, o Brasil deixará de ser um país tão “apegado” ao Estado?

Essa será provavelmente a grande questão no futuro econômico do país. Em que medida será capaz de abandonar um padrão de governança – ou seja, de relação entre setores público e privado – em que a busca de “extração de rendas” predomina sobre a busca de eficiência e da “inclusão” que torne sempre possível a contestação de posições de quem já estiver instalado. Por um lado, a agenda econômica do Governo aponta nessa direção. Por outro, a ausência de “inclusão social” como objetivo paralelo é uma fragilidade.


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