Marco Aurélio Nogueira é graduado em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1972), doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983), pós-doutor pela Universidade de Roma (1985) e livre-docente (1997) pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Desde 2007, é professor titular de Teoria Política na UNESP. Trabalhou como Diretor Técnico de Projetos e pesquisador sênior da Fundação de Desenvolvimento Administrativo- FUNDAP (1991-2000). Foi Coordenador Executivo (2011-2015) do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais – IPPRI, da UNESP, onde atua como professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas”. Atualmente, é coordenador científico do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais – NEAI, vinculado ao Instituto. Entre seus principais livros estão “O encontro de Joaquim Nabuco com a política” (Paz e Terra, 2010), “Em defesa da política” (Senac, 2001), “Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática” (Cortez, 3ª ed., 2011) e “As ruas e a democracia” (Contraponto/FAP, 2013). Juntamente com Geraldo Di Giovanni, organizou e editou o “Dicionário de Políticas Públicas” (Editora UNESP, 3ª ed., 2018). É colunista de O Estado de S. Paulo, em cuja plataforma digital mantém o blog “Política e sociedade em tempos de turbulência”.
A polarização que temos no país se estancará em algum momento?
Difícil imaginar a política sem polarizações. O problema é que muitas vezes o sistema político não consegue processar adequadamente os conflitos e as diferenças, com o que o quadro fique engessado e passe a girar em torno da polarização entre dois partidos, ou blocos partidários. Foi o que aconteceu no Brasil nos últimos 20 anos, quando PT e PSDB se converteram na expressão das virtudes e dos defeitos do sistema político, disseminando pela sociedade suas visões. Como essas visões não eram tão distintas assim, o conflito se converteu em luta pura pelo poder e obteve traduções radicalizadas, tornando-se mais artificial do que substantivo. Com esse formato, a polarização se estabilizou mas ao mesmo tempo não teve como se atualizar. Tende assim ao esgotamento.
Quem o senhor acredita ser o responsável pela radicalização que polarizou a nossa sociedade?
Os dois partidos mais ativos e que assumiram o Governo Federal nas últimas décadas, PT e PSDB. Sua cultura, seus interesses, seu linguajar e sua ambição pelo poder encontraram ressonância nas redes sociais, que terminaram por sancionar a radicalização, dada a simplicidade argumentativa que as caracteriza. Intelectuais e ativistas deram sua contribuição, ao atuarem como correias de transmissão da radicalização, com o que o debate ficou ainda mais empobrecido. O sistema de blogs fechou o círculo, ajudando a mergulhar a opinião pública num universo de fake news e provocações hostis ao pluralismo e ao debate democrático.
As eleições em outubro podem ser um ponto central de convergência do país?
Há alguns esforços para viabilizar isso, de que o melhor exemplo é o manifesto “Por um Polo Democrático e Reformista”, lançado em junho. Mas o desinteresse da população pela política realmente existente, a ojeriza social aos hábitos dos políticos, a fraqueza dos partidos e a falta de proposições consistentes em termos de programas não facilitam qualquer convergência. Além disso, convergências são atos complexos, que precisam de muita “construção”. O Brasil é um país que valorizou a arte da negociação e da busca de convergências, fazendo disso uma das principais marcas de sua história. Nas últimas décadas, porém, com a crise política e as fortes mudanças socioculturais que atingiram em cheio a sociedade, essa tradição negocial ficou rarefeita e foi de certo modo abandonada, trocada pelos excessos da polarização. Isso é que faz com que as próximas eleições não possam ser vistas como uma virada de página. Algo pode ser conquistado, mas ainda não é possível saber em que sentido.
O establishment ainda está forte ou ele pode ser surpreendido por outros candidatos que não orbitam em torno deste poder?
O establishment é expressão da política que realmente existe, aquela que se pratica e prevalece. Apesar de o país ter mudado muito nos mais diversos planos (economia, cultura, sociedade, trabalho, vida familiar, estratificação), a política mudou muito pouco. Ainda é feita predominantemente de modo tradicional, com muito “jeitinho”, muito toma lá, da cá, muito fisiologismo, muita demagogia e populismo. Isso dá força ao establishment e o ajuda a edificar uma verdadeira muralha de proteção, difícil de ser derrubada. É o que faz, por exemplo, com que todos os candidatos presidenciais busquem o “centrão” e as igrejas para se viabilizarem eleitoralmente. É o que faz com que o grito de “renovação” ecoe mas não consiga se traduzir politicamente.
Quais as semelhanças e diferenças desta campanha com a de 1989?
Há muito mais diferenças que semelhanças. Ficamos impressionados com a fragmentação e a concorrência entre candidatos com um perfil próximo, algo que tipificou as eleições de 1989. Mas a semelhança se reduz a isso, e mesmo assim de modo contido. A sociedade é totalmente diferente, o momento histórico é distinto, os eleitores são em número muito maior e têm preocupações que não estão a ser consideradas pela política. Lá atrás, realizavam-se as primeiras eleições diretas depois de 25 anos, e o tom era de superação da ditadura e do autoritarismo, de valorização da Constituição. Os candidatos eram em sua grande maioria herdeiros e protagonistas da luta pela democratização.
Hoje, o quadro é outro. Não há mais uma ditadura a ser combatida, a crise política é mais grave, o “desencanto” tomou conta da sociedade, as mensagens partidárias e dos candidatos são vazias e não sugerem nenhum futuro. Os próprios candidatos são frágeis, não carregam consigo nenhum passado “heroico” e os melhores deles nem sequer têm um partido ou um movimento expressivo para lhes dar sustentação. E, por fim, diferentemente de 1989, hoje as eleições contam com ao menos uma candidatura claramente comprometida com o retrocesso, com a regressão moral, com o autoritarismo – sinal de que a sociedade mudou muito sua configuração ideológica, de valores.
Como o senhor sente a “temperatura” das ruas nos últimos meses?
Muito ruim. O desinteresse é enorme, como se as eleições representassem algo indesejável, que somente diz respeito aos políticos e aos candidatos. A disposição de não votar ou de anular o voto está posta com força, e precisará ser desconstruída durante a campanha. Se isso será feito e dará certo, teremos de ver.
Existe uma notável crise de lideranças. Como encontrar essas lideranças no Brasil atual?
Apostando no tempo, em processos de debate democrático que ponham em circulação uma “pedagogia” que seja capaz de impulsionar o surgimento de novas lideranças. Líderes não nascem prontos, resultam de muitas interações. A recuperação do sistema educacional e a valorização da escola e da cultura podem ajudar muito a fazer com que a política se requalifique e entre novamente no DNA da sociedade. Sem isso, o processo de produção de lideranças ficará travado.
Como o senhor avalia o papel dos partidos neste cenário?
Os partidos devem ser acima de tudo “escolas de quadros”, mecanismos de seleção e preparação de lideranças, estruturas dedicadas a formular visões do mundo e programas de Governo. No Brasil, já tivemos partidos assim, mas eles foram se dissolvendo com o passar do tempo. Hoje o quadro é melancólico, a ponto mesmo de não se conseguir notar a presença dos partidos nas disputas políticas. Eles estão como que neutralizados pelas facções que dominam a vida partidária, pelas lideranças carismáticas que se impõem às organizações, pela obsessão em chegar ao poder, pelo abandono da perspectiva pedagógica, formativa, pelo predomínio do cálculo meramente eleitoral.
Políticos influentes como os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso, também são culpados por esse panorama?
É complicado atribuir “culpas” aos governantes. Eles atuam em circunstâncias determinadas, nas quais são obrigados a modelar suas decisões. As lideranças mais expressivas, como Fernando Henrique e Lula, pelo peso que têm e pela influência que detêm no imaginário nacional, podem jogar um papel importante na recuperação política e democrática do país. Não acho que sejam responsáveis pela decadência que vivenciamos, ainda que possam ter sido incapazes de interferir no rumo das coisas. São duas personalidades políticas bem distintas, que teriam de ser assim vistas, para que possamos compreender a contribuição (positiva ou negativa) que deram ao país.
Existe algum teste que a jovem economia brasileira ainda terá que passar?
São muitas as “provas” que a economia terá de contornar para adquirir sustentabilidade e enveredar por uma estrada que combine produção de bens e serviços com generosidade social. Produção mais racional, menos amadorística, maior disposição a aceitar a regulação estatal, maior abertura ao mundo e disposição para encarar os desafios da indústria 4.0 e a inserção nas “cadeias globais”, espírito inovador e consciência das funções sociais da propriedade.
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