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A filosofia de vida da rapper Preta-Rara

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Nascida em Santos, no litoral paulista, Joyce da Silva Fernandes (mais conhecida como Preta-Rara) é uma ex-empregada doméstica que virou professora de história, modelo plus size e encontrou na música inspiração para educar e manifestar sua arte. Também é turbanista, influenciadora digital e ativista. Iniciou sua carreira no rap em 2006, no extinto grupo de rap feminino Tarja-Preta, no qual permaneceu por 7 anos. Abriu vários shows de grupos de rap ao nível nacional e ganhou diversos prêmios em São Paulo. O grupo encerrou suas atividades em outubro de 2013. Em março de 2015, lançou o seu primeiro disco solo, intitulado “Audácia” feito em forma de rimas e poesias, contando a trajetória de vida da cantora e toda sua militância nos movimentos sociais, e no qual contou com participações especiais de GOG, Ieda Hills, DJ. Caíque e DjDanDan. Também foi indicada pela deputada Federal Ana Perugini à Medalha Mietta Santiago 2018. A honraria é entregue anualmente. “Eu me tornei ativista graças ao Movimento Hip hop. Graças ao Movimento Hip hop eu conheci o Movimento Negro e entendi quais são os meus direitos, o que é ser uma mulher preta, retinta e gorda dentro dessa sociedade veio através do Hip hop. Quando eu descobri o Hip hop, abriu uma série de caminhos do qual eu nem sabia o nome e nem conhecia e que me fizeram chegar onde cheguei”, afirma a cantora e ativista.

Em que momento a Joyce Fernandes tornou-se a Preta-Rara?

Eu me tornei a Preta-Rara em 2005, quando eu comecei a cantar rap lá na minha cidade que é Santos (eu sou do litoral de São Paulo da periferia de Santos). Quando comecei a cantar rap eu me tornei a Preta-Rara. Esse apelido quem me deu foi minha mãe, já que quando era criança gostava de coisas ditas por ela como diferenciadas de meninas, pois, enquanto as crianças estavam brincando eu queria ler e estudar… Aí ela me chamava de pretinha rara e aí ficou Preta-Rara. Então desde 2005 quando se iniciou a minha carreira artística, eu lembrei desse apelido dado pela minha mãe e aí resolvi assumir esse apelido como nome artístico que hoje em dia tem outro significado que é: que todas as pretas são raras por resistir há tantas coisas!

Foi também nesse momento que a música entrou em sua vida?

A música entrou na minha vida segundo meu pai antes mesmo de eu nascer. Meu pai tinha o hábito de colocar o fone de ouvido na barriga da minha mãe e aí ele falava que eu me mexia toda [Risos]. A minha vivência foi através da música desde muito cedo. Meu pai era um colecionador de discos e me apresentou diversos ritmos. Minha mãe amava dançar e limpava a casa dançando com o meu pai. Então por esses motivos a música chegou muito presente em minha vida. Desde muito cedo a minha família toda é meio que “musicada”. Venho de família evangélica e cantei por muitos anos na igreja também. Na igreja eu fiz aulas de piano e de teclado. Pude ter esse contato a, mas também de como se produzir músicas.

Quais caminhos lhe levaram para o rap e para o Hip hop?

Eu percebi que quando eu escutava as músicas de rap, você podia falar o que você sente saca? Pra mim o rap é uma revista falada da periferia. Eu percebia que as letras de rap tinham uma abertura a mais que outros ritmos e aí eu tinha muitas coisas a falar. Eu sempre gostei dessa questão da linha da informação sabe? Eu sempre gostei de passar informação para as pessoas. Me lembro que quando eu era criança, lia várias matérias de jornais para ficar discutindo com os meus avós e com os meus pais, trazendo essa informação para eles. Nesse momento eu vi que poderia fazer isso muito bem dentro da cultura Hip hop. Conheci o Hip hop em meados de 1997 início de 1998 através das rádios comunitárias que existiam lá na minha cidade. Antes eu gostava mais do funk, mas daí eu comecei a ouvir os programas das rádios comunitárias que tinha programação de rap… foi lá que veio a formação do que é o Movimento Hip hop.

A música deve ter alguma obrigação social?

Na realidade a música é livre e as pessoas são livres para utilizar a música da forma que elas queiram. A única parte que eu me incluo nessa questão são os limites. Existem várias músicas com conotações pejorativas para as mulheres, como também para as mulheres negras como: “nega do cabelo duro, que não gosta de pentear…”; essa música, por exemplo, é mega pejorativa para as mulheres pretas. Ou músicas falando: “desce e sobe, faz isso, faz aquilo…”, saca? Acho que tudo tem o seu limite, mas não vejo que a música tem que ter uma obrigação social, pois, depende das pessoas que estão produzindo as músicas. Acho que o artista sim deve ter uma obrigação social e não a música que ele produz. Conheço vários artistas que não trazem uma temática de militância como eu trago nas minhas músicas, mas que tem uma obrigação social. Eles se preocupam com questões de como está o Governo, como está a situação política… É o que a Nina Simone fala, ou seja, que não dá para viver neste mundo sem questionar o mundo que você vive. Só pelo simples fato de você ser artista, você não pode achar que pode sair em pune de não ter que questionar. Nós artistas somos pessoas públicas e temos o poder de juntar pessoas. Então nada mais que dar uma ideia ou poder trocar uma ideia com essas pessoas, seja através da música ou através do discurso também. Mas repito, não acho que a música deva ter um papel social, pois, acho que quem tem obrigação social é que produz músicas, ou seja, os artistas.

Você já disse que o rap é a sua filosofia de vida. Fale um pouco mais sobre isso.

O rap é minha filosofia de vida porque ele norteia todo o meu crescimento intelectual. Foi através das músicas de rap que percebi que eu queria cursar história, mas precisamente através da música “Falsa Abolição” no qual eu tive que pesquisar a verdadeira história dos afrodescendentes, dos negros, dos pretos que aqui vieram à força e que aqui resistiram e que existem até hoje. Eu tenho o rap como uma filosofia de vida, como um estilo de vida saca? A galera que é do Movimento Hip hop é uma galera que pesquisa, que quer inteirar sobre o que está acontecendo no seu país e que pra mim já virou um estilo de vida. Tem um rap do grupo Face da Morte que eles falam: “deixou de ser música virou religião/aqui seguidor fiel de calça larga e blusão/aqui Face da Morte quem ouve jamais esquece, come rap, bebe rap e respiro rap…”; Eu escrevo e escuto rap todos os dias como escuto outros ritmos também. Na realidade quando estou no meu momento de compor, eu não escuto tanto rap… na real eu não escuto nenhum rap porque quando eu vou escrever à música parece que a letra não é minha entendeu? Eu fico com essa preocupação de não ficar escutando rap, pois, de repente alguma frase que gostei vai ficar gravada na minha mente e quando eu for escrever eu vou reproduzir a frase de outra pessoa. Tirando isso, o rap me trouxe várias coisas, principalmente na questão da pretitude, ou seja, de entender que usar turbante é bonito como diz as músicas dos Racionais. Que o meu cabelo é bonito, que o meu nariz é bonito. O rap me fez aceitar realmente quem eu sou!

Como essa filosofia foi lhe moldando como artista e cidadã?

Foi através das informações que eu fui recebendo. Entender qual é o meu lugar dentro dessa sociedade, dentro dessa cultura. O Movimento Hip hop é um movimento de compromisso, de respeito… coisas que eu não vejo em outros movimentos. O Movimento Hip hop prega muito a questão do respeito aos ancestrais… Aqueles que chegaram antes da gente, que a galera chama de velha escola e nova escola. Velha escola no caso foi quem começou, que está mais tempo dentro da cultura e nova escola é quem está há pouco tempo, no caso quem está chegando. É muito parecida com a cultura africana. No caso a velha escola seria os griôs, seriam as “bibliotecas ambulantes”. Seriam as pessoas que detêm maior conhecimento por estar mais tempo dentro dessa cultura. Isso que me permeia ser assim na minha vida artística e na minha construção como cidadã nessa questão do respeito e de reverenciar quem veio antes de você.

O que não cabe nessa filosofia em sua visão?

O que não cabe nessa filosofia é o que está acontecendo atualmente. Vários rappers brancos, racistas, sexistas, machistas, recheados e recheadas de preconceitos discriminatórios. As pessoas não negras têm que entender que é uma cultura que foi criada pelos pretos, pelos negros… então é inadmissível você apropriar de uma cultura criada pelos negros para poder reproduzir o seu racismo, a sua xenofobia, o seu sexismo, enfim, todas as opressões que as pessoas estão utilizando nas letras de rap para poder falar sobre isso. Falar não, criminalizar para poder tornar crime isso. Um monte de rappers e mc´s que não conhecem e não sabem da vivência do Hip hop e que acham que o rap é somente um ritmo musical. Na realidade ele [rap] não é um ritmo musical e sim uma filosofia de vida. É uma cultura em movimento. Dentro dessa filosofia não cabe nenhum tipo de opressão.

A consciência ativista tem origem dessa filosofia?

Sim. Eu me tornei ativista graças ao Movimento Hip hop. Graças ao Movimento Hip hop eu conheci o Movimento Negro e entendi quais são os meus direitos, o que é ser uma mulher preta, retinta e gorda dentro dessa sociedade veio através do Hip hop. Quando eu descobri o Hip hop, abriu uma série de caminhos do qual eu nem sabia o nome e nem conhecia e que me fizeram chegar onde cheguei.

Como a música e o ativismo podem ser vias de mão dupla?

Eu acho que é bem mais fácil eu chegar num palco e falar sobre essas opressões e reinvindicar as coisas através da música, do que eu pegar um microfone e ir para um palanque e começar a falar. As pessoas veem mais através do ritmo, da música pela qual elas começam a dançar e analisar do que eu pegar o microfone e somente falar. Por isso eu utilizo a música e o ativismo lado a lado para poder passar as informações que eu tanto necessito.

“A Carne” é uma das músicas mais fortes de Elza Soares. Em qual de suas canções você acredita que teve um impacto parecido assim que finalizou a sua composição?

Uma música que tanto eu quanto as pessoas falam muito e que foi o carro-chefe da minha carreira é “Falsa Abolição”. Teve um impacto para quem escuta. Teve um impacto muito grande porque na música eu estou falando sobre a população preta, escravizada antes da Abolição e depois da Abolição. Depois da Abolição o que aconteceu com os negros? E aí nessa música falamos a situação dos pretos e das pretas atualmente. Nessa música eu tive que debruçar-me através dos livros. Eu ainda não era historiadora e foi a partir dessa música que realmente foi o carimbo para eu querer ser historiadora e para conhecer a minha origem e a minha história. Essa música teve um impacto, porque nela eu falo da Lei dos Sexagenários, sobre a Lei do Ventre Livre… coisas que a gente não aprende na escola.

Falo várias frases muito pesadas e fortes que ficam ecoando na cabeça das pessoas. Uma das frases é: “ainda somos escravos mesmo não querendo…”; na música eu falo o nome inteiro da Princesa Isabel, onde eu digo: “Isabel Cristina Leolpoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança/que se fez de boazinha aquela cretina/assinou a Abolição, sem nos dar esperança…”; e várias outras questões que várias pessoas quando escutam essa música falam: “nossa meu, caramba! Foi dessa forma. Como você conseguiu colocar tudo em uma música?”; A música tem 5 minutos [Risos]. É uma música fora dos padrões comerciais, mas que eu tinha necessidade de colocar essas informações para ter esse impacto… a cada frase um impacto!

O que ainda falta para o negro ser inserido de fato na sociedade do nosso país?

Para nós pretos não falta nada! Somos excelentes profissionais em qualquer área que as pessoas quiserem pesquisar. Em todas as áreas existem homens pretos e mulheres pretas capazes de desenvolver qualquer coisa. O que dificulta a nossa ascensão econômica e social é exclusivamente o racismo. O racismo não é um problema de nós pretos e pretas. O racismo é um problema de quem não é preto e de quem não é preta dentro dessa sociedade, nesse país de desordem e regresso chamado Brasil. O que falta de fato para a gente poder ascender economicamente, socialmente e culturalmente? (apesar que a cultura desse país é preta). As pessoas se apropriam de algo que foi construído por nós e dá outros nomes. O que falta é as pessoas entenderem que esse país é sim racista e que a gente tem que lutar para acabar com isso, mesmo de uma forma utópica. Nós negros já demos todos os caminhos, além de existirem todas as estatísticas. Na área que eu pesquiso, por exemplo, sobre o trabalho doméstico (já que fui empregada doméstica) 78,8% são de mulheres pretas. Esses dados são mega importantes de um trabalho que é tido como resquício de uma abolição não conclusa.

De fato para o negro ser inserido, quem não é preto e quem não é preta, tem que entender que quando a gente fala dessa questão de racismo não é mimimi (como as pessoas gostam de falar essa nova nomenclatura). Na realidade não é mimimi. Na realidade é que a cor da pele nesse país chega na frente de várias questões. Quando me chamam para falar em diversos seminários ou simpósios de história, as pessoas sempre me apresentam como a rapper negra, a historiadora negra… Uma coisa sou eu falar a historiadora negra como uma autoafirmação, para falar que eu existo. Outra coisa são as pessoas me apresentarem dessa forma, como eu não vejo as pessoas apresentarem outras como a rapper branca que lançou o disco ou a historiadora branca que recentemente lançou um livro, enfim… As pessoas precisam entender que esse país é racista e precisam desenvolver políticas públicas para que a população preta possa chegar em lugares nivelados. Nós não queremos ocupar os espaços dos brancos.

Nós queremos disputar narrativas. Nós queremos estar no mesmo patamar e isso é igualdade. O que a gente procura é igualdade, soberania. A gente quer igualdade de direitos e que de fato a gente chegue num ponto em que a nossa cor de pele será só uma diferença e não que a minha cor de pele seja inferior a dela, num país racista onde a maioria das pessoas são negras. Estamos falando de uma país onde 54% da população é preta, mas não conseguimos ver esses pretos em lugares de poder o que é diferente de outros países. Quando se fala dos EUA, por exemplo, a população preta é de 16,4%. Aqui no Brasil é mais gritante porque nós somos mais que maioria e mesmo assim nós somos chamados de minoria também. Realmente o que a gente busca é a tal da tão sonhada e quase utópica igualdade racial dentro desse país onde não somos a minoria. As estatísticas estão aí e os dados mostram que não somos uma minoria!

Última atualização da matéria foi há 2 anos


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