Categories: Criatividade

Rashid se considera um operário da sua música

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Rashid é, até o presente, autor de 120 músicas próprias, distribuídas em suas mixtapes, singles e álbuns de estúdio, sem contar colaborações que incluem Criolo, Mano Brown, Xênia França, Max de Castro, Izzy Gordon, Emicida, Luccas Carlos, Rael, Fresno, Duda Beat, Drik Barbosa e outros. No primeiro disco de estúdio, “A Coragem da Luz” (2016), destacou-se pelas composições que juntavam o sintético dos beats com o orgânico dos arranjos instrumentais, uma estética musical e visual que, desde então, deixou suas apresentações ao vivo mais dinâmicas com a interação entre MC, DJ e banda. Este formato também foi usado para a divulgação do álbum seguinte, “Crise” (2018). Ainda em 2018, lançou o primeiro livro, “Ideias que rimam mais que palavras” – Vol. 1. Para o trabalho atual, “Tão Real” (2020), reuniu os atributos de toda sua carreira – a vasta lírica, a diversidade musical e as boas estratégias de lançamento – para fazer um disco a longo prazo, lançado como uma trilogia e formatado em temporadas, dentro das quais, além das músicas, apresenta um documentário, podcasts e um forte lado visual, comprovado pelos pôsteres especiais do álbum (que se tornaram itens colecionáveis, com download gratuito no site www.taoreal.com.br), pelas produções dos videoclipes e até roupa, com o lançamento de camisetas referentes ao disco, produzidas pela Foco na Missão, sua produtora e marca de acessórios e roupas.

Rashid, a arte deve ter um papel social em algum sentido?

A arte retrata faces e fases da sociedade, então ela tem um papel social bem estabelecido desde sempre. Seja como registro histórico de uma época, denúncia ou até uma forma de trazer alívio, como temos visto nesse momento de quarentena. Por exemplo, o triste período da ditadura no Brasil reverbera até hoje por causa da arte. Músicas, livros e filmes que não permitem que aquele período caia no esquecimento e que a história de tantas pessoas que lutaram contra aquilo seja esquecida.

Nosso país é um poço de desigualdade, infelizmente, então a arte tem um amplo papel dentro dessa atmosfera. Já quando a gente fala de dever… no caso, se a arte ou o(a) artista deve, eu sinto que pode haver uma confusão. Porque a pessoa que se compromete a fazer arte, deve mesmo é fazer sua arte. Se essa obra reflete algo específico e/ou causa algum impacto aí fora, vai depender muito das aspirações e influências desse(a) artista. Se estabelecermos isso de que os(as) artistas devem desempenhar esse papel, colocaremos todos(as) numa posição mais política do que artística. E embora nossa arte seja política também, antes de tudo ela é arte, é impulso, criatividade. Dei esse discurso todo pra dizer que defendo que a arte seja livre, mas eu mesmo escolhi trazer essas questões para minha música e minha escrita.

Como as observações externas influenciam o seu trabalho?

Uma vez, assistindo a um documentário da Nina Simone, me lembro que, em determinado momento, ela dizia algo como: “É difícil um artista não refletir os acontecimentos de seu tempo”. A frase não era exatamente essa, mas a intenção era. E ela respondeu isso justamente quando foi questionada sobre a força de suas composições, nesse sentido político, social e racial. Desde então, sempre faço das palavras dela as minhas. Com toda humildade, logicamente. Enquanto artista, as minhas antenas estão o tempo todo ligadas, recebendo sinais. Notícias, comentários, conversas, discussões, piadas… Muitas vezes eu acabo captando camadas mais profundas nas coisas que as pessoas dizem ou fazem. Eu sempre fui desse tipo, o observador. Então, quando vou compor, eu gosto de pegar esses detalhes. Um relacionamento amoroso, por exemplo, não precisa servir de inspiração apenas para uma música romântica. Porque tem todo um universo ali. Tem o amor, tem a briga, tem o abraço, a conversa, a amizade, a intimidade, etc. Quando a gente traz isso para a rua então, tudo é elevado a máxima potência.

E as reflexões internas?

Justamente, por ser observador, sempre fui um dos mais quietos. Como todos os quietos, tímidos e/ou introvertidos, passo muito tempo com meus próprios pensamentos. Falando sozinho, inventando coisas e me observando. Desde 2019, quando estava compondo meu último disco (“Tão Real”), eu bati de cara com uma frase que passou a fazer parte da minha experiência de vida: “Para ser um grande artista, primeiro eu tenho que ser uma grande pessoa”.

Vivo em função disso, de melhorar enquanto ser humano e deixar isso influenciar minha arte. Penso muito sobre mim, sobre as pessoas, a minha volta, como lido com elas, como leio elas… se sou inconveniente, se sou necessário naquele momento, etc. Levo tudo isso pra minha escrita da forma mais sincera possível. Porque a música que eu gosto de ouvir é assim… e eu tento fazer a música que eu gosto de ouvir.

Existiu um momento de “chamada” para o seu ofício e que considera ser o ponto de partida de sua carreira musical?

Essa chamada foi na minha adolescência, quando passei a sonhar em fazer, viver de e para o Rap. Porque, a partir daquele momento, tudo que eu fazia parecia me direcionar para o Rap e o Hip-Hop. Eu sempre fui obcecado por isso. Então eu dava um jeito de transformar minhas apresentações de trabalho escolar em momentos para eu rimar ou desenvolver meus desenhos, que eram meus graffitis. Depois, aos 17 anos, já comecei a frequentar os eventos de Rap. Nesses eventos, havia um momento de microfone aberto, em que qualquer um(a) poderia. Chegar ali e mostrar seu talento. Eu fui metendo a cara com meus amigos. Quanto mais eu escrevia rimas, mais eu queria escrever. Essa cultura me puxou.

O que ainda está nas suas composições atuais e que são oriundas dos seus primeiros versos?

Fome. Aquela fome da época das batalhas. De querer ser o melhor no que faz e não ter medo de demonstrar isso. Não se trata de desafiar os outros, se trata de se desafiar a cada verso novo. Pra onde você vai? Vai falar isso de novo? Já usou muito essa palavra hein… Essa fome aí. (Risos)

Em algum momento o prosador Rashid entrou em conflito com o homem de negócios Rashid?

Nunca me peguei nesse conflito, mas às vezes tenho medo. Porque são coisas diferentes, distantes até, por mais que o cerne do negócio seja a música.

Mas a estratégia de lançamento, o desenvolvimento dos projetos, das roupas, as reuniões e tudo mais… Isso exige muito de todos nós. Então às vezes eu tenho medo de fazer essa curva muito fechada pro business e depois na hora de voltar ficar perdido. Mas isso penso que vem da mesma fome que falei acima. Parece mais uma neurose do que uma possibilidade real. O fato é, eu tenho as mesmas 24 horas para tudo. Logo, se eu tiro meu dia para a estratégia, a música vai ter que esperar até o dia seguinte. Isso me deixa com o coração apertado, mas eu gosto de estar por dentro das burocracias.

“Crise” seria a reflexão desses dois eus?

Total! Parte das minhas músicas mais passionais estão nesse disco. Em paralelo, foi talvez a nossa melhor estratégia de lançamento até aqui. Mas nesse lado, eu tenho uma pessoa genial ao meu lado, a Dani Rodrigues. Ela é muito boa em ler o mercado e bolar esses planos. Sou iluminado por ter uma pessoa assim comigo.

Quais os resquícios de trabalhos anteriores que está em “Crise” e que poucos perceberam?

Acredito que não tem nenhum resquício específico, que não se trate da evolução, da busca. Em 2013, na mixtape “Confundindo Sábios”, eu me aproximei muito do estilo de rimar e interpretar que mais me agradava, para minha voz e meu tipo de composição. A partir dali, tudo que fiz foi em volta de desenvolver isso. Quando cheguei no “Crise”, já tinha estabelecido esse estilo para mim mesmo. “Esse é o jeitão do Rashid.”

“Tão Real” pode ser considerado o seu álbum mais visceral?

Com certeza. As feridas que comecei a expor no “Crise”, eu escancarei no “Tão Real”. Esse é um álbum sobre humanização, sobre buscar ser a grande pessoa que vai refletir no grande artista. Existem muitas coisas bem pessoais ali, músicas bem passionais, reflexões bem profundas e particulares.

Você é um artista que tem uma visão muita assertiva sobre as várias mídias. Como você encontra o seu espaço num mundo cheio de opções e dispersões?

Hoje eu tenho um público bem fiel, que me entende e interage comigo da forma que sou. Pra construir isso foi um pouco duro, porque é difícil prender a atenção das pessoas nessa era. Todo mundo tem uma vida boa pra mostrar nas redes. Eu sou um operário da música, o que eu tenho pra mostrar é trabalho. Viajo, encontro grandes artistas, vou à TV, dou entrevistas, etc. Tudo isso é fruto dessa disciplina do dia a dia, então não tenho como desgrudar disso para oferecer algo que não sou. Isso gradualmente afastou muita gente mas também trouxe muitas outras mais. Nesse momento eu acredito que quem me segue pelas redes, já entendeu como eu sou e como me porto por ali. Graças a essa compreensão mútua, agora a gente tem uma baita ponte pra se comunicar com esses(as) fãs.

Hoje vivemos num mundo de experiências. Quais serão os grandes diferenciais desse projeto “Tão Real” para quem quiser mergulhar fundo em suas emoções?

“Tão Real” já é diferente porque foi planejado e lançado como uma série em três temporadas, cada temporada com início, meio e fim. Trailers ao invés de teasers. O documentário se transformou numa série visual também. Esse é o diferencial pelo lado da estratégia. Pelo lado musical, penso que essa profundidade é um diferencial. Não sou o primeiro a fazer isso, mas nesse momento com certeza não temos tantos artistas assim se abrindo como um livro. Ou como uma série, no nosso caso.


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