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Roberto DaMatta analisa as utopias que enganam

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Graduado e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (1959 e 1962), o niteroiense Roberto DaMatta possui curso de especialização em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1960); mestrado (Master in Arts) e doutorado (PhD) em 1969 e 1971 respectivamente pela Universidade de Harvard. O intelectual também é Professor Emérito da Universidade de Notre Dame dos Estados Unidos, onde ocupou a Cátedra Rev. Edmund Joyce, c.s.c., de Antropologia de 1987 a 2013. Estudioso do Brasil, de seus dilemas e de suas contradições, mas também de seu potencial e de suas soluções, DaMatta não se afasta de seu país mesmo quando desenvolve outros temas. A comparação com o Brasil é inevitável em sua obra. “Em todo grupo humano a corrupção. Além de antiga, é uma possibilidade, que existe ao lado da dimensão transparente, clara e honesta do ser humano. Sobretudo quando ele não é mais governado somente pela religião mas igualmente pelo “estado democrático de direito” como se diz aqui no Brasil e, assim, por normas impessoais, escritas e que devem valer para todos. (…) Lula demonstra que há um longo caminho a percorrer porque o seu Governo, foi o que mais se atuou com mendacidade no Brasil. Ele não é uma fraude, é uma prova concreta de que as utopias enganam”, afirma o antropólogo.

Como anda a qualidade do ensino nas universidades brasileiras se compararmos com as norte-americanas?

Nas universidades norte-americanas nas quais estudei e ensinei (Harvard, Wisconsin-Madison, Califórnia-Berkeley e Notre Dame), a comparação fica um tanto quanto fora de ordem, porque não se pode comparar com devido bom-senso uma Harvard (fundada no século 16 e com um fundo de bilhões de dólares) com uma pequena universidade Federal ou estadual do Brasil. Essas universidades nas quais os professores são funcionários públicos e não há promoção por obra ou mérito, mas por tempo de serviço e idade, numa negação absoluta da boa meritocracia universitária estabelecida na Idade Média, na Europa que produziu um Lutero e um Newton; e nos Estados Unidos, a modernidade tecnológica na qual vivemos bem como os ideais de democracia aplicados na política e na sociedade. Mas mesmo assim, é preciso ressaltar que em certos campos vamos bem, e temos centros que se igualam aos seus irmãos no exterior. Refiro-me especialmente ao campo das Ciências Sociais e da Literatura com os seus devidos descontos.

O senhor disse que a corrupção no Brasil é um mal que tem raízes muito antigas. Então isso quer dizer que a corrupção infelizmente sempre existirá de uma forma ou de outra?

Em todo grupo humano a corrupção. Além de antiga, é uma possibilidade, que existe ao lado da dimensão transparente, clara e honesta do ser humano. Sobretudo quando ele não é mais governado somente pela religião mas igualmente pelo “estado democrático de direito” como se diz aqui no Brasil e, assim, por normas impessoais, escritas e que devem valer para todos. No Brasil a malandragem, a esperteza relativamente aos bens e cargos públicos, vem de longe, e o nosso problema não é saber desse fato, mas não tomar as providências devidas, reagindo a ele de modo proativo. Estou certo que a luta entre o bem e o mal sempre vai existir nos universos humanos. Sem ela não existiria consciência humana que é feita de oposições definidas no combate entre o que sabemos claramente e o que nos é ocultado seja pelo destino, pela história e pelas forças que atuam no nosso inconsciente. As próprias relações sociais promovem o “mal” ou o mal-entendido, mesmo quando queremos que elas sejam boas. Agora, não punir, e aceitar o mal como um valor é uma outra coisa! No nosso caso, precisamos começar tornando todos iguais perante a lei: inclusive e, sobretudo, os governantes.

Muitos dizem que o problema para o Brasil progredir de fato, é ser menos dependente do Estado em suas ações. O senhor concorda com essa afirmação?

Eu diria que a resposta passa pelo papel do Estado. Temos atualmente um Estado que não administra. Ele gerencia os seus aliados e aristocratiza seus agentes ou funcionários. A rigor não é um Estado republicano, mas monárquico-escravocrata como, aliás, não poderia deixar de ser já que a monarquia dos Bragança, foi o seu modelo e sua inspiração cultural e social. Os escravos não existem mais formalmente mas os funcionários públicos, dependendo do seu segmento, são nobres. Entram no Estado e dele jamais saem como ocorrem com as grandes famílias patriarcais descritas por Gilberto Freyre. É uma vergonha, como se dizia. Agora dizer isso não significa liquidar o Estado. De modo algum. O Estado precisa, isso sim, cumprir o seu papel de gerenciar oportunidades e de criar igualdade de modo perene, dirimindo injustiças antigas e modernas. Em suma, é preciso democratizar também o Estado.

Alguns políticos que entrevistamos recentemente, nos disseram que Lula foi uma fraude. O senhor também acredita que ele foi uma fraude?

Eu acho que ele foi a mais importante experiência do sistema político brasileiro precisamente, porque ajudou a liquidar com a teoria que ligava o Estado a mudança social e a um ideal de justiça e honestidade. Lula demonstra que há um longo caminho a percorrer porque o seu Governo, foi o que mais se atuou com mendacidade no Brasil. Ele não é uma fraude, é uma prova concreta de que as utopias enganam.

Esquerda e direita ainda existem no Brasil?

Existem. A “esquerda” diz respeito a quem quer mudar sem medir consequências e imaginando que a sociedade não exerce nenhum papel no processo de transformação. Basta um decreto ou uma lei e tudo muda. A “direita” sabe do volume e do peso das forças sociais em jogo e das suas reações. Falar em mudança é mais fácil do que efetivá-las sem despotismos ou força. Hoje, felizmente, há um enorme ponto de encontro entre esses lados e todos têm consciência do problema e do ideal que é juntar o lado positivo da esquerda, com o da direita. Ademais, pode-se ser de direita para certas coisas (por exemplo, para prender, fuzilar e exilar os inimigos da democracia) e ser de esquerda para outras (por exemplo: fornecer escolas impecáveis para todos).

O PT ainda pode ser considerado um partido de esquerda, ou isso se esfacela quando a legenda se junta com figuras como José Sarney e Paulo Maluf?

Não conheço bem o PT, conheço e quero bem a muitos petistas. Penso que devemos diferenciar o PT do lulismo. Mas, por outro lado, o lulismo é o petismo na sua prática não antevista pelos seus fundadores: o exercício do poder Federal. Nessa prática cujo lema sempre é deter o poder e ampliá-lo, as alianças são um ponto-chave. E se os meios justificam os fins que jamais chegam e não são ditos claramente, o rei está sempre certo e ele faz as alianças com quem quer, inclusive com o Diabo (que tem mais caráter do que muitos políticos brasileiros) o que desmancha, adia ou destrói as propostas mais sérias ou ideológico-religiosas do partido. E aí voltamos ao ponto de partida: o PT passa a ser um partido normal com bons e maus momentos como todos os outros.

O senhor disse uma certa vez, que nós de uma forma geral, temos uma verdadeira alergia ao igualitarismo, segundo o qual todos dão a largada do mesmo ponto e cada um chega a um determinado lugar dependendo do seu esforço. Brasileiros não gostam de uma palavrinha mágica chamada meritocracia?

Temos uma formação histórica aristocrática e burocrática no sentido de garantir desigualdades. Toda a nossa história até 1889, foi monárquica e os padrões de conduta e relacionamento de nossas elites e do sistema em geral era hierarquizado como tenho dito na minha obra. Mas não ficamos somente nisso. Adotamos a igualdade republicana e a levamos a sério em muitos momentos. Temos então um movimento de modernização semelhante ao de outros sistemas: um diálogo quase sempre tenso e conflituoso entre um ideal do cada coisa em seu lugar e o ideal da igualdade de todos perante leis universais. Reconheço que a fórmula é simples demais, mas a caricatura ajuda a definir o caráter. E o nosso cerne contem isso que chamei de dilema brasileiro em “Carnavais, malandros e heróis” que é um livro de 1979 e portanto velho. Todos os estudos sobre meritocracia dizem o seguinte: de boca, todos a desejam, na prática todos a consideram um veneno porque ela estimula a competição. Agora, por quê a competição é tida como negativa no Brasil? Porque, digo eu, separamos recursos públicos (da rua) e íntimos (casa) de modo radical. Não temos uma tradição de participação política local. Nossa tendência é entregar tudo ao Estado ou ao Governo. Não conseguimos, exceto no esporte, compreender como a meritocracia é uma fonte positiva de inovação e de igualdade.

Por gentileza, nos explique o porquê de no Brasil ainda termos a infeliz frase: “você sabe com quem está falando?”.

Leia o meu livro “Carnavais, Malandros e Heróis”, onde eu explico a expressão como um rito autoritário, usado em situações igualitárias e radicais, para revelar dentro do aparente cidadão comum, o nobre (filho de Sicrano ou marido de Fulana, etc…). Trata-se do dilema entre ser igual ou distinguir-se para cima.

O senhor fez uma pesquisa sobre o comportamento do brasileiro no trânsito, onde diz que a igualdade poderia solucionar os problemas nesse setor. Como conseguir essa igualdade?

Por meio de debates, entrevistas, seminários e campanhas. O Brasil precisa de uma campanha para a igualdade. Ele precisa livrar-se de uma carga aristocrática que permeia o fundo do nosso sistema social.

Acredita que a religião é o ópio do povo como disse Karl Marx?

Sem ópio não haveria humanidade. Marx acreditava que a razão levava a uma vida livres de outras crenças, inclusive as religiosas e não tinha paciência com desvios ou semi-soluções para os problemas da sociedade, centrados na luta de classes. Eu penso que Marx era tão religioso quanto os religiosos que ele criticava. Penso que hoje, temos o uso da razão tanto quanto tememos sistemas de crenças absolutas.

A descriminalização das drogas é uma saída benéfica para o país?

Sem dúvida. A questão é como realizar isso num país continental, com a Polícia e com as demais autoridades brasileiras.

“Brasil, o país do futuro.” Essa frase está com os dias contados?

A frase não tem mais sentido num mundo que não se vê mais com um futuro. E com um Brasil cansado de promessas.


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