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“Saturno Devorando um Filho”: ato canibal?

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“Saturno Devorando um Filho”, pintado por Francisco de Goya entre 1819 e 1823, é uma das obras mais chocantes da história da arte ocidental. Parte da série chamada Pinturas Negras, o quadro foi originalmente pintado diretamente nas paredes da casa de Goya, conhecida como a Quinta del Sordo. A pintura retrata Saturno, a divindade romana, em um momento de selvageria: ele devora um de seus filhos. O quadro é envolto em sombras, com uma paleta limitada de cores escuras e tonalidades cruas, quase monocromáticas. O rosto de Saturno, deformado e aterrorizado, parece exprimir uma angústia profunda, mais do que simples prazer canibalístico.

A origem desta obra reside nas experiências pessoais de Goya. Ele havia ficado surdo após uma doença e, nos últimos anos de sua vida, afundou em um estado sombrio, repleto de amargura e desilusão com a condição humana. Goya viveu em uma Espanha dilacerada por guerras, com um governo absolutista opressor e uma sociedade em decadência moral. Essas questões podem ter sido catalisadores para o sentimento sombrio que se reflete em suas Pinturas Negras, das quais Saturno Devorando um Filho é a mais emblemática.

Canibalismo mitológico ou alegoria da mortalidade?

A primeira leitura de “Saturno Devorando um Filho” é, sem dúvida, sua origem mitológica. Saturno, equivalente ao titã grego Cronos, devorava seus filhos para evitar ser destronado por um deles, como havia sido profetizado. O mito em si já é uma história de terror ancestral, que fala sobre poder, medo e a destruição dentro do ciclo familiar. No entanto, a versão de Goya ultrapassa essa narrativa mitológica, indo para um nível de interpretação muito mais pessoal e psicológica.

Na obra, o canibalismo de Saturno não parece ser apenas um ato de poder, mas uma expressão de desespero. Diferente das representações clássicas do mito, onde Saturno é mostrado como um deus imponente e implacável, Goya o retrata como uma figura frágil, desnuda e deformada. Seu gesto de devorar o filho parece mais um reflexo de sua própria angústia do que uma afirmação de poder. Ele está consumindo seu próprio legado, talvez uma metáfora para o destino que todos enfrentam ao serem consumidos pelo tempo e pela mortalidade.

O horror da violência: uma reflexão sobre o tempo e a loucura

A violência explícita na pintura é uma das razões pelas quais “Saturno Devorando um Filho” se destaca entre outras obras de arte de sua época. O corpo do filho é desmembrado e deformado, enquanto o próprio Saturno aparece com uma expressão de loucura. Há algo incontrolável em seus olhos, uma perda total de razão. Isso levanta a questão: será que o verdadeiro tema da obra é o canibalismo ou a dor?

O tempo, representado por Saturno, é o grande devorador. Goya transforma o ato de devorar em uma metáfora para o processo implacável do tempo, que consome tudo, incluindo nossos próprios corpos, nossas conquistas e nossos legados. O ato de Saturno não é meramente físico, mas emocionalmente destrutivo. Ele devora seu próprio futuro e o faz em um estado de agonia. Goya pode estar refletindo sobre o estado de deterioração que a velhice e a passagem do tempo trazem, onde o medo de ser substituído, esquecido ou destruído pela próxima geração é palpável.

Goya e a Espanha pós-napoleônica: um país em ruínas

Ao interpretar essa obra, é impossível separar a experiência pessoal de Goya do contexto sociopolítico em que ele viveu. A Espanha de Goya, no início do século XIX, estava passando por um período tumultuado. A invasão napoleônica, as guerras de independência e o retorno de um regime monárquico conservador deixaram o país em uma situação caótica. Goya, um crítico feroz da opressão e da violência do poder, pode ter encontrado em Saturno uma analogia para o comportamento destrutivo dos governantes e da sociedade.

Saturno, neste sentido, pode ser visto como um reflexo da própria Espanha, que devora seus cidadãos e destrói seu próprio futuro. A brutalidade irracional de Saturno é a brutalidade do poder absoluto e da violência que devora a juventude e o futuro de uma nação. Essa leitura política da obra conecta o horror pessoal de Goya à decadência de um país e a sensação de que a sociedade estava em um estado de autodestruição.

A dor de Saturno: a expressão de angústia e sofrimento

Diferente das representações anteriores de Saturno, que muitas vezes o mostram como um deus implacável, a interpretação de Goya da figura é extremamente humanizada. Saturno não está triunfante, mas sim em estado de agonia. Seus olhos arregalados, sua postura inclinada e sua expressão facial distorcida sugerem um profundo sofrimento. Aqui, o ato de devorar não é prazeroso, mas uma compulsão trágica.

Esse detalhe é crucial para a compreensão de “Saturno Devorando um Filho” como mais do que um simples retrato de canibalismo. A dor de Saturno pode ser vista como uma metáfora para a própria condição humana. A dor de consumir aquilo que amamos, de sermos obrigados a destruir nosso próprio futuro, é um fardo universal. Assim, a figura de Saturno transcende a mitologia e se torna uma representação da tragédia humana, onde o tempo e a morte são inescapáveis e, muitas vezes, cruéis.

A técnica de Goya: a expressividade brutal na pintura negra

A técnica utilizada por Goya para criar essa obra é outro elemento que contribui para seu impacto visceral. As Pinturas Negras foram feitas diretamente nas paredes de sua casa, usando materiais de óleo e pigmentos terrosos. A pincelada de Goya é crua, quase como se a própria criação da obra fosse um ato de violência. As formas não são claramente delineadas, e a sensação de movimento abrupto e confusão aumenta o sentimento de caos.

Essa abordagem estilística faz com que a pintura pareça ainda mais intensa e desesperada. O uso do claro-escuro, uma técnica barroca de contraste dramático entre luz e sombra, é levado ao extremo, criando um ambiente sufocante. Saturno emerge das trevas, quase como um monstro, uma figura que poderia estar à espreita nos cantos mais sombrios da mente humana.

Canibalismo ou dor? A ambiguidade central da obra

A grande questão que a pintura de Goya levanta é se o ato de Saturno é movido por uma necessidade irracional de poder e controle, ou se é uma expressão de dor e desespero. A resposta, talvez, seja que essas duas forças não são mutuamente exclusivas. O canibalismo de Saturno, neste contexto, pode ser interpretado como um reflexo da própria natureza humana, onde o desejo de manter o poder e a angústia diante da inevitabilidade da morte se misturam de maneiras destrutivas.

Goya, em seus últimos anos de vida, estava imerso em reflexões sobre a loucura, a mortalidade e a crueldade do mundo. Em “Saturno Devorando um Filho”, ele nos oferece uma visão perturbadora da alma humana: uma criatura que, por medo de perder, acaba destruindo aquilo que mais preza. É o paradoxo da condição humana, onde o poder pode ser uma forma de fraqueza e onde o medo da morte pode nos levar a atos de destruição.

Ao fim, a obra de Goya permanece envolta em mistério. O que podemos afirmar é que a pintura é uma poderosa meditação sobre os limites da razão e o impacto devastador do tempo sobre o corpo e a mente humanos.


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