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Sérgio Guerra e sua fotografia humanizada

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O publicitário, fotógrafo e produtor cultural recifense Sérgio Guerra, demonstra um talento exuberante nas três esferas de sua intensa atividade. Após 10 anos trabalhando em diversas agências de propaganda baianas, em 1991, fundou a Link Comunicação e Propaganda, da qual foi sócio-diretor por 13 anos, dedicando-se, em especial, à comunicação governamental e ao marketing político. Em 1997, começou uma mudança gradual para Angola, a convite do governo angolano, para desenvolver um programa de comunicação para o país. Em suas constantes viagens pelo país africano, tornou-se o único fotógrafo estrangeiro a registrar todas as províncias angolanas ainda em tempos de guerra. Autor de um acervo de aproximadamente 120 mil fotos espalhadas mundo afora, entre painéis e publicações de outros autores, Sérgio Guerra já publicou sete livros que retratam o povo e as belezas de Angola e realizou exposições fotográficas no Brasil, África e Europa. “O Golpe Militar deixou grandes marcas em suas vítimas e conosco não foi diferente. Perdemos amigos, perdemos referências. Mas, embora isso tenha me marcado profundamente, o que ficou, ainda bem, foram as causas que nos levaram a sermos perseguidos: o acreditar numa sociedade mais justa e solidária. Cresci num ambiente de pessoas identificadas com o socialismo e com a forte influência católica progressista e cristã”, afirma o produtor. 

Você nasceu em Recife e saiu de lá como mesmo diz, arrancado de casa e obrigado a fugir para São Paulo em 64 em pleno Regime Militar. Alguma coisa daquela época, já refletiu ou ainda reflete em seu trabalho?

O Golpe Militar deixou grandes marcas em suas vítimas e conosco não foi diferente. Perdemos amigos, perdemos referências. Mas, embora isso tenha me marcado profundamente, o que ficou, ainda bem, foram as causas que nos levaram a sermos perseguidos: o acreditar numa sociedade mais justa e solidária. Cresci num ambiente de pessoas identificadas com o socialismo e com a forte influência católica progressista e cristã. Desde Dom Hélder Câmara aos dominicanos, em São Paulo, e a tudo o que representaram. Esse é o pensamento que ainda prevalece em mim e no meu trabalho. Gosto de pensar que sempre podemos orientar o nosso trabalho para tentar ajudar, de alguma forma, outras pessoas.

A arte deve ter um papel social?

Não, eu penso que arte tem que ser livre de obrigações, compromissos e fronteiras. O fato do meu trabalho artístico ter essa preocupação é uma questão pessoal, não tenho nenhuma vocação para polícia. Apesar disso, penso que a arte sempre acaba por contribuir com a nossa existência, e de alguma forma sempre é uma referência de um tempo e de uma sociedade, então ela acabará por ter um papel social no sentido amplo da palavra.

Como enxerga a publicidade no Brasil, com a entrada cada vez mais intensa dos grandes grupos internacionais no mercado?

A questão da globalização se impôs em todo o mundo e não seria diferente na publicidade. No Brasil, a partir dos anos 90, as empresas e indústrias abriram seus capitais, e muitas delas foram incorporadas às grandes redes internacionais. Por um lado, a publicidade, principalmente no Nordeste, se ressentiu, pois, as grandes campanhas e clientes estão no Sul do país, mesmo aqueles que mantêm fábricas no Nordeste – como é o caso da Ford – são atendidos por agências que estão no Sul e são associadas a algum grupo internacional que detém a conta na origem. Esse alinhamento, na maior parte dos casos, exclui as empresas regionais. Por outro lado, também se impôs a necessidade de enfrentarmos e disputarmos o mercado internacional. Cresci na publicidade, na Bahia, uma terra sem produtos, só com serviços e a comunicação de governo, por isso desenvolvemos uma referência em marketing político, o que nos leva hoje a estarmos presentes em vários países.

Como a África, mais precisamente a Angola, entrou na sua vida?

Eu tive o primeiro convite para vir a Angola em 1992, através do publicitário Geraldo Walter com quem trabalhei por muitos anos. Na época, acabei não aceitando, pois, estava a começar a minha própria empresa. Depois, em 1997, por uma série de coincidências, acabei sendo convidado a ir a Angola para tocar uma campanha para o INAPEM, um instituto que estimula as pequenas e médias empresas. A partir de 1998, veio o desafio de montarmos um planejamento que coincidisse com a retomada da ofensiva das Forças Armadas Angolanas perante os rebeldes. Desde o começo de 1999, passei a estar mais tempo em Angola do que no Brasil. Angola me trouxe uma outra perspectiva do marketing, a perspectiva de uma guerra. Eu já trabalhava há muito tempo em campanhas eleitorais no Brasil, mas uma guerra é algo totalmente diferente, como a guerra civil angolana, que causou muitas mortes e desestruturou o país. Do ponto de vista pessoal, também foi uma grande revolução na minha vida e hoje sou extremamente grato ao país que me recebeu como a um filho.

Estar em Angola, muitas vezes, não é fácil pelo nível dos problemas que ainda são muitos a exemplo da carência de serviços básicos, como água e energia elétrica. Ninguém passa incólume por esses problemas, mas tem o lado humano que é de uma riqueza extraordinária e que compensa qualquer problema.

Você deixa muito claro que não vale fazer qualquer coisa por dinheiro. Quando o dinheiro pode prejudicar a arte?

Quando ele instrumentaliza a arte. A arte não pode servir para nenhum fim a não ser o propósito de ser arte. Não importa se financeiro, político ou social. Ela só será transformadora enquanto ela mesma.

Muitos fotógrafos dizem que para se obter uma boa imagem, é preciso ter a confiança do fotografado. Em algum momento você queria fazer um trabalho fotográfico que achava especial naquele momento, mas que o fotografado estava arredio para se conectar com a sua confiança?

Fazendo o trabalho com os Hereros, povos ancestrais do sul de Angola, fiquei um tempo com eles em 2009. Depois disso, voltei algumas vezes à região, mas só em 2010 reencontrei o meu amigo Soba Mutile (Soba é uma autoridade tradicional). Naquele ano levei o livro com fotografias que havia feito sobre eles, e quando o Soba acabou de olhar o livro, me olhou e disse: “Agora sim sabemos que é verdade”. Acho que isso representa bem as dificuldades de relação que podemos ter.

O normal é sempre sermos confundidos com fotógrafos ou turistas de safári, que fazem uma viagem e saem fotografando isso e aquilo sem nenhuma vivência, e depois não deixam nada. Infelizmente, essa ainda é a forma usual de alguns fotógrafos. É preciso entender isso, e saber que é necessário algum tempo e diálogo, para tentar desfazer as impressões e estabelecer uma relação que nos permita fotografar de maneira mais natural.

No mês passado, estive na região do Namibe com um grupo de mukubais, e fomos logo no primeiro dia a um sambo (espécie de aldeia) onde tinha acabado de falecer uma pessoa. Aquilo me despertou curiosidade, pois, nunca tinha assistido a um funeral deles. Já tinha acompanhado até alguns óbitos, mas nunca um funeral. Eu puxei a câmera e pedi para fotografar o corpo que acabara de ser enrolado nos panos com que eles são enterrados. O responsável que estava no local no momento do óbito se assustou e disse que não. Automaticamente guardei a câmera. No outro dia passamos pelo cemitério na hora que estava a ser preparada a cova e os preparativos da despedida e do enterro propriamente dito, mas aí o Soba encontrou o responsável de fato, que era outra pessoa e que já conhecia o meu trabalho, e liberou todas as fotos. É mesmo assim, se fosse eu também não facilitaria para alguém que aparecesse do nada a querer me fotografar. Trata-se, sobretudo, do respeito que devemos ter em relação ao outro.

Concorda que a fotografia vem ganhando um aspecto cada vez maior de efemeridade?

Acho que sim e que não. Hoje nós temos uma certa banalização da fotografia com as milhões de câmeras espalhadas nos celulares. Mas ninguém deixa de contemplar as belas fotos. Penso que a atração por essas imagens continuará. Acho que as pessoas têm discernimento suficiente para separar uma foto que vale só o instante, daquelas que são para serem lembradas por toda vida.

O que representa para você como cidadão o seu famoso documentário “Hereros Angola?”.

O documentário é apenas uma peça desse trabalho, juntamente com o livro e as exposições que têm andado bastante. No dia 3 de julho a exposição chegará a Florença, na Itália, onde ficará na Galleria delle Carrozze do Palazzo Medici Riccardi. A segunda edição do livro, a exposição e o filme aconteceram em sua maior parte há três anos, e às vezes olho para elas com um olhar meio nostálgico e muito acostumado, mas a relação com eles me surpreende cada vez mais.

Essa é a parte visível do que extraí deles, mas tem um outro componente do trabalho que é uma espécie de contrapartida. Temos conseguido coisas para eles, ajudando-os a saírem do isolamento: doamos três jipes e um caminhão. A localidade em que mais me fixei foi o Erora, onde estabeleci uma relação muito próxima com o Soba Mutile NBendula. Hoje é uma região importante e já temos uma escola do Estado e também estão a acabar a obra de um centro de saúde. Mas de qualquer forma o documentário ficará com o testemunho dessas populações, que teimam em viver sob essa tradição secular, embora se fosse feito hoje seria diferente. Por exemplo, nessa minha última ida à região contactei com um “tchingailume”, uma denominação para um homem que assume a feminilidade desde criança e passa a se vestir e executar as funções de uma mulher. Isso também se dá com as mulheres que assumem um papel masculino na comunidade, sendo que para as mulheres se dá o nome de “mucaidil”. Esse conhecimento foi uma enorme surpresa, pois, não encontrei nenhuma referência à questão da sexualidade em nenhuma literatura. Ou seja, quando pensei que já os conhecia bem, me aparece essa novidade que não tem nada de novo para eles. Contrariando as teses de que a homossexualidade veio com a modernidade e a influência ocidental, o “tchingailume” sofre discriminação pela maior parte dos jovens, mas são protegidos pelos mais velhos e pela família, que conhecem o fato através dos seus antepassados e aceitam essa situação com normalidade.

O diretor do Museu Afro Brasil, Emanuel Araújo, diz que você consegue ter em suas fotos, uma cumplicidade comovente com os seus fotografados sobretudo na exposição “Negro Amor” do ano passado. Você também sente essa cumplicidade? E de onde acredita que ela vem?

Acredito que a cumplicidade se dá na identificação que sinto com as pessoas. Não me coloco fora do ambiente, quando estou a abordar pessoas ou lugares, me sinto fazendo parte daquilo. Procuro entrar nos problemas e, automaticamente, pensar em como podemos agregar algo positivo na abordagem. Quando as pessoas sentem essa preocupação mudam-se os parâmetros da relação.

Fale um pouco para nós da Fundação Salvador Negro Amor que foi idealizada por você.

A Fundação Negro Amor surgiu em 2007, no conjunto de ações que fizemos com a exposição fotográfica “Salvador Negro Amor”. A ideia inicial era que a Fundação tocasse três grandes projetos: o primeiro seria um projeto de um museu sobre o sagrado africano, mas estamos há anos envolvidos com uma super-burocracia do IPHAN para liberar o projeto. Enquanto isso, paradoxalmente, a casa que compramos para abrigar o museu, que é tombada pelo próprio IPHAN e está situada ao pé da colina da Igreja do Bonfim, vai se degradando. O segundo projeto era a Rádio Negro Amor, um espaço diferenciado para tratar da cultura e dos interesses afrodescendentes. O terceiro era a proposta de um fórum permanente sobre África e os afrodescentes em Salvador, para tentar fazer da cidade a grande vitrine de África fora da África. Os três projetos ficaram parados por todos esses anos por falta de apoio político.

Nos últimos quatro anos, percebemos que deveríamos mudar um pouco o foco do nosso trabalho e passamos a fazer alguns convênios com outras ONGs, associações de moradores e instituições afins. Foi a partir dessa decisão que hoje apoiamos três escolas, duas comandadas por Mães de Santo, uma escola da Associação dos Moradores do bairro do Calabar. Também mantemos o apoio a uma ONG que trabalha com mulheres vítimas de violência. Ainda em Salvador, trabalhávamos com uma associação de moradores da Mata Escura, mas, infelizmente, a associação perdeu o espaço para os traficantes, com a crescente violência que se registra na cidade.

Aqui em Angola, mantemos um convênio com o Centro de Estudos do Deserto que trabalha com populações tradicionais no Sul do país, e também mantemos, junto aos Hereros, dois professores que lecionam para as crianças e adultos na área do Erora. Lá também estamos a apoiar a montagem de uma loja em sistema de cooperativa para poder garantir a sustentabilidade da população e da escola.

Você diz que é um homem em busca da sua coerência. É essa coerência que faz você sempre buscar o melhor em seu trabalho?

O dinheiro e o poder são capazes de estabelecer, de uma forma geral, uma miopia gradativa e degenerativa nas pessoas. É muito fácil justificar atos anteriormente impensáveis através de um pragmatismo político ou econômico. É contra isso que eu luto, para reafirmar as minhas percepções de adolescente. Jovem, pensava muito no porquê de grandes músicos e escritores que conseguiam ganhar dinheiro não fazerem nada de diferente para ajudar os novos autores e mesmo os mais velhos que não conseguiam entrar no filão de mercado.

Quando comecei a ter alguma independência financeira, automaticamente me voltei para a música, para produzir coisas com qualidade. Produzimos mais de trinta discos, de diversos autores e continuamos a produzir projetos diferenciados que, na quase totalidade dos casos, não contaram com nenhum apoio ou subvenção.

Também na área social vou fazendo coisas que me resgatam o compromisso com as ideias de uma sociedade melhor, que tanto idealizava quando adolescente. A minha busca é a reafirmação dessas ideias e não a acomodação a um mundo corrompido pela sociedade de consumo.


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