Sérgio Lazzarini é o professor titular da Cátedra Chafi Haddad, cujo objetivo é desenvolver pesquisas e promover debates voltados à ciência da administração, com foco na relação entre o setor público e privado, assim como temas de estratégia empresarial e investimentos de alto impacto social e ambiental. É Ph.D. em Administração (nas áreas de Organização e Estratégia) pela John M. Olin School of Business, Washington University. Professor Titular do Insper, atuou como diretor de pós-graduação stricto sensu de 2013 a 2015 e liderou o Centro de Estudos em Negócios de 2003 a 2006 (na época, Centro de Pesquisas em Estratégia), período em que atuou em projetos desenvolvidos em parceria com empresas de diversos setores. Foi professor visitante na Harvard University em 2010 e em 2012. As duas experiências resultaram em livros: “Capitalismo de Laços”, publicado no Brasil em 2011 pela editora Campus Elsevier, e “Reinventing State Capitalism: Leviathanin Business”, “Brazil and Beyond”, em co-autoria com Aldo Musacchio, lançado nos Estados Unidos no início de 2014 pela Harvard University Press. Além disso, tem publicado regularmente em diversas revistas acadêmicas nacionais e internacionais de destaque, como Strategic Management Journal, Academy of Management Journal, Organization Science e Strategic Entrepreneurship Journal. “Mercado livre mesmo eu não conheço em nenhum lugar do mundo”, afirma.
Professor, os laços estatais são o principal entrave para não termos um livre mercado de fato?
Mercado livre mesmo eu não conheço em nenhum lugar do mundo. Em geral, temos regulação e, até nos países mais liberais, alguma presença do Estado na economia. Em realidade, em muitos países desenvolvidos a presença estatal se reinventou ao longo dos anos, com empresas e fundos públicos mais independentes, bem geridos e com transparência. Isso não ocorreu, entretanto, em países com instituições mais frágeis, como o Brasil. Infelizmente, os laços estatais serviram para fazer intervenções grosseiras na economia (como o controle de preços da Petrobras) e para beneficiar empresários bem conectados (caso dos bancos públicos).
Acredita que a Vale seria o exemplo mais notório desse dilema, afinal tem a Litel (Previ, Petros e Funcef) como uma de suas controladoras?
Além deles, o BNDES. Os Governos Lula e Dilma fizeram intervenções na Vale usando, entre outras coisas, sua influência sobre esses atores. A Vale é um caso típico de uma empresa aparentemente privatizada, mas que ficou com forte participação do Estado.
Em que momento se deu a organização desses laços no Estado brasileiro?
Ocorrem de longa data, desde a formação do país, como bem relatado por Raymundo Faoro na sua obra “Os Donos do Poder”. O Brasil se acostumou com um sistema patrimonialista de confusão entre o público e o privado. Mesmo durante as privatizações, como eu disse antes, o Estado permaneceu com um pé nas empresas. E, nos Governos do PT, esses laços ficaram ainda mais disfuncionais, uma vez que o Governo escolheu intervir mais na economia e apoiar o grande empresariado que se beneficiou de capital público subsidiado sem a contrapartida de mais investimento e produtividade. Abriu-se a temporada de caça para ver quem seria o “eleito” para receber mais benefícios.
O Governo Dilma foi o responsável pelo aumento desses laços?
Já vem de longa data, mas, com suas ações discricionárias e imprevisíveis na economia, o Governo Dilma acabou por aumentar os benefícios de se estabelecer laços com o Estado. O empresariado circulava em Brasília para antecipar qual seria a mais nova intervenção.
É possível “desatar” esses laços?
É possível, mas não há bala de prata. Precisamos de um conjunto de ações complementares. Primeiro, mais isolamento político. A lei das estatais foi um começo, mas precisamos avançar mais, colocando mais limites sobre como o Governo pode intervir nos mercados usando empresas de capital público. Agências reguladoras fortes e independentes seriam algo essencial. Segundo, sempre que foram estabelecidas políticas de subsídio ou isenção tributária, é preciso avaliar o impacto dessas iniciativas e abortar aquelas que não tenham evidências de contribuir para produtividade, inovação ou investimento. Mais transparência sobre os resultados dessas políticas. Terceiro, disciplinar o relacionamento entre empresas e Governo. Isso pode ocorrer voluntariamente, por meio de controles internos para evitar que os gestores estabeleçam laços espúrios com o Governo, ou por meio de pressão externa — continuidade de investigações e punições como o que tem sido feito pela Lava Jato.
Privatizar empresas sem a entrada de grandes fundos de pensão e do BNDES, seria possível no contexto atual?
Sim. Agora temos um mercado de capitais bem mais desenvolvido que na década de 1990, quando aceleramos o processo de privatização. Com um bom marco regulatório e um Governo menos intervencionista, é possível atrair capital interno ou externo para adquirir as empresas.
Esse “modelo” também é visto em outros países do mundo com frequência?
O modelo de capitalismo de laços é muito comum no mundo, especialmente em países emergentes, mas também em países desenvolvidos. Na Itália, por exemplo, a despeito da Operação Mãos Limpas, que inspirou a Lava Jato, ainda existem muitas empresas conectadas politicamente e improdutivas.
O gigantismo estatal na economia nacional é pragmático, ideológico ou conveniente?
Tudo isso junto. Imagine uma concessão de estrada ou aeroporto. Governos passados colocaram capital público à disposição para atrair artificialmente mais interessados nessas concessões e dar a impressão que o leilão foi um sucesso. Mas também é ideológico. Muitos grupos de esquerda acham que o Governo tem que estar presente nas empresas, sem ponderar o custo e as potenciais distorções disso.
Pela sua ótica, o Governo do presidente Jair Bolsonaro, terá condições de ir contra maré dos seus antecessores?
Se a equipe econômica seguir na linha de controle de gastos e subsídios mais criteriosos, sobrará menos dinheiro para o empresariado se apropriar com seus contatos políticos. Mas a pressão empresarial e o lobby no Brasil são muito intensos. Ainda vamos ver o quanto o Governo conseguirá abafar essa pressão.
Como podemos ter um Estado mais eficiente que faça com que o livre mercado floresça de fato?
As ações que listei acima. Mais isolamento político, mais avaliação do impacto das políticas, mais escrutínio nas relações empresa-governo. Mas, como eu disse acima, o livre mercado é uma utopia. Por exemplo, somente com bancos privados, quem poderá financiar habitação de baixa renda? O Chile migrou para um sistema de vouchers, que pessoas de baixa renda poderiam usar para comprar suas casas no mercado privado. Se o voucher não fosse suficiente, poderiam pegar empréstimos dos bancos. Só que os bancos privados não abarcaram segmentos da população mais vulneráveis, de baixa renda. No Chile, esse segmento teve que ser suprido por um banco público. Uma possibilidade seria subsidiar bancos privados para atuar nesse segmento. Mas isso exigiria mecanismos regulatórios para garantir que os empréstimos sejam efetivamente direcionados para quem precisa. Ou seja: aumentar o bem-estar da população exige muito mais esforço de análise e desenho de políticas do que simplesmente clamar por livre mercado.
Os chamados “campeões nacionais da economia” foram um engodo ou em algum momento isso ocorreu?
Ocorreu, especialmente a partir de 2007, com uma ação mais ativa do BNDES para consolidar indústrias com capital público. Sob Dilma, tudo isso começou a pegar mal na opinião pública, mas ainda assim o BNDES seguiu com um aumento desenfreado nos empréstimos para grandes empresas que poderiam se capitalizar no mercado privado. Deu no que deu.
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