Sérgio Túlio Caldas é jornalista, escritor, diretor de TV e roteirista. Viajante contumaz, ora por meio do trabalho, ora por pura curtição, tem pegado estradas das Américas à Ásia para escrever, fazer reportagens e filmar. Trabalhou para importantes veículos de comunicação do país, como o jornal “O Estado de S.Paulo”, revista “Os Caminhos da Terra” e TV Record. Tem roteirizado e dirigido documentários e séries para o canal National Geographic, e para TVs públicas brasileiras. Na África, por onde viajou e morou durante um ano, dirigiu um programa de jornalismo e entretenimento exibido na TV Pública de Angola (TPA). Autor de vários livros, como “Nas Fronteiras do Islã” (Editora Record), Sérgio Túlio Caldas publicou pela Moderna “Terra sob Pressão – A Vida na Era do Aquecimento Global” e “Café/um Grão de História” (Dialeto), finalistas do Prêmio Jabuti. Da experiência no continente africano escreveu “Com os Pés na África” (Moderna). “As imagens de guerrilheiros fanáticos e de fundamentalistas islâmicos, especialmente a partir dos atentados do 11 de setembro nos EUA, obscureceram a riqueza histórica, cultural e ambiental dos países de maioria muçulmana. Na Ásia Central, onde estão as ex-repúblicas soviéticas e o índice de analfabetismo é próximo do zero, há um braço pouco conhecido do Islã – o sufismo – onde Deus pode ser alcançado através da dança e das artes, como acreditam seus fiéis”, afirma o escritor.
Sérgio, como se deu o começo de sua carreira?
O início da minha vida profissional não se deu exatamente com o primeiro emprego no jornalismo. O pontapé inicial foi dado na infância – bem, claro que eu não tinha a menor noção do que desejava fazer, e nem de longe era um garoto prodígio. Nada disso. Sempre gostei de TV, rádio, jornais e revistas – hábito que adquiri dos meus pais, que liam muito, acompanhavam o noticiário. Mas havia um certo fascínio, além de ser um mero espectador ou leitor. Entre os 6, 7, 8 anos de idade, eu gostava de ver os apresentadores na TV, sabia o nome de alguns jornalistas da mídia impressa, costumava ir às gravações de programas infantis da extinta TV Itacolomi, em Belo Horizonte (emissora dos Diários Associados, fundada por Assis Chateaubriand, que funcionou até ter a concessão cassada em 1980). Nos estúdios da Itacolomi, me chamava a atenção a movimentação dos operadores de câmeras, o corre-corre de quem trabalhava nos bastidores. E, claro, amava o refrigerante Grapette, cor de uva, servido com bolo Catita durante os intervalos.
Daquela época, me lembro de estar no carro com a família e ver uns hippies pedindo carona na estrada, no início dos anos 70. A cena não me saia da cabeça, e de alguma forma tornou-se a semente do que eu faria mais tarde: pegar estrada para conhecer lugares e pessoas. Acredito muito nesses insights que experimentamos em nossas vidas (que às vezes nem damos valor), mas depois, de um jeito ou de outro, a gente os materializa. Formei-me em jornalismo na PUC de BH, minha cidade, e resolvi me aventurar em São Paulo, onde os meios de comunicação eram mais dinâmicos e a vida cultural nos anos 80 estava efervescente, com mostras de cinema, o rock nacional levantando voo, as artes, em geral, do movimento underground acontecendo por toda parte. Iniciei a pós-graduação na Universidade Metodista, mas a rua ficou mais estimulante do que a vida acadêmica quando consegui uma vaga como repórter freelancer na “Folha de S.Paulo”. A experiência na redação da Folha não foi longa e, depois de seis meses, acabei contratado pelo Estadão. Aquele sim foi meu primeiro emprego: repórter na editoria de economia, aprendendo a ser jornalista no dia a dia, vivendo a pressão dos fechamentos, assinando matérias, eu estava bem feliz. Mas aí entrou em ação a faísca criada nas lembranças da infância e resolvi botar o pé em estradas mais distantes. Interrompi a carreira no jornal, para surpresa de alguns colegas, e fui morar em Londres, Berlim, depois viajar pela Ásia. No retorno ao Brasil, no início dos anos 90, fui trabalhar na TV Gazeta e na sequência tornei-me editor da revista “Os Caminhos da Terra” (publicação que pertenceu às editoras Azul, Abril e Peixes, entre 1992 e 2008). Trabalhar na Terra era um sonho para quem defendia o Meio-Ambiente, curtia História e Ciência; queria descobrir culturas e desbravar lugares não mapeados pelos roteiros turísticos. A revista foi uma escola para quem passou por sua redação: havia um cuidado extremo e exigente com os textos, com a fotografia e a concepção gráfica. Era uma National Geographic brasileira, digamos, que se tornou referência não só entre os viajantes e fotógrafos, em geral, mas também entre cientistas, pesquisadores e professores. Muitos dos grandes fotógrafos de natureza, que estão hoje no mercado, publicaram seus primeiros trabalhos na Terra. Pena que a Abril não foi tão audaciosa quanto o título e o time de profissionais e colaboradores que a editavam, e praticamente decretou seu fim ao vendê-la para a editora Peixes – um exemplo típico das empresas brasileiras, de todos os ramos, que buscam resultados imediatos, incapazes de enxergar um palmo à frente. Anos antes da revista fechar as portas, eu já tinha saído e me envolvido firmemente com produções audiovisuais.
Você é escritor, jornalista, diretor de TV e roteirista. Como você conseguiu colocar sua visão profissional única em diferentes áreas que no final se complementam de certa forma?
O alicerce, o que une essas áreas onde atuo, é o texto, a escrita. Longe de dizer que sei escrever, que domino técnicas de linguagem. Ainda busco me aprimorar – o que não é fácil. Cada roteiro, cada livro, ou mesmo um artigo que escrevo, é sempre algo novo a se encarar, a se fazer com atenção, reescrever e reescrever. O trabalho de escrever – acredito que para boa parte de quem o faz profissionalmente – é mais suor e esforço do que inspiração. Tem uma frase muito boa que resume isso: “minha inspiração depende do deadline do meu editor”. Foi na imprensa escrita, onde os prazos de entrega são sempre “para ontem” e os textos precisam ser razoavelmente bons, bem apurados e claros, que veio minha formação para saltar para a mídia eletrônica. Ser jornalista me ajuda muito a ser roteirista, pois, o cuidado com a informação, a investigação, é essencial nessa atividade. E escrever livros me libera a dar leveza aos textos, o que não se vê muito na mídia impressa. Já escrever roteiros de programas de TV ou documentários ajuda muito quando se está na posição de diretor. Dessa forma, enxerga-se melhor o que vai funcionar, o que pode dar errado, e como uma dificuldade de produção pode ser solucionada para a gravação ser a melhor possível.
Quando um roteiro se torna bem-sucedido em sua visão?
Um bom roteiro, acredito, é aquele que tem boa dose de criatividade e, ao mesmo tempo, seja viável de produzir. Se o roteirista faz sua viagem particular e não pensa nas dificuldades, ou até mesmo nas impossibilidades da produção, está fadado a não dar certo. Por outro lado, o roteirista não pode sentar-se na frente do computador com autocensura. Ele precisa sim deixar a imaginação fluir, ir o mais longe que puder. Mas tem que ter a sensatez de cortar o que não poderá ser produzido – seja por limitação financeira ou pela impossibilidade técnica da produção.
Gostaria que falasse um pouco sobre os documentários roteirizados e dirigidos em especial para a National Geographic.
Trabalhei na primeira série que a National Geographic produziu no Brasil. Escrevi os 10 episódios da série “Nos Caminhos de Che”, produzido pelo Canal Azul, de São Paulo, em 2007. Havia uma equipe formada por brasileiros e pessoas de outros países da América do Sul. A aprovação dos roteiros e da edição final se dava com os chefões do QG da National Geographic, em Washington – como é a prática normal do canal. Assim, trabalhávamos com roteiros nas versões em português, espanhol e inglês. Cada episódio a ser aprovado também era legendado nas três línguas. O que era uma loucura no corre-corre da produção. A série documental, com uma pitada de reality, acompanha dois jovens latinos refazendo os caminhos percorridos por Che Guevara [guerrilheiro, político, jornalista, escritor e médico argentino-cubano, 1928 – 1967] e seu parceiro Alberto Granado [fundador da Escola de Medicina de Santiago de Cuba e escritor, 1922 – 2011] pela América do Sul, em 1952. Na época, foi um grande desafio desenvolver os roteiros porque o Walter Salles tinha lançado pouco antes o filme “Diários de Motocicleta”, com grande sucesso internacional.
O desafio então era fazer algo diferente do filme do Waltinho [no caso Walter Moreira Salles Jr., diretor de cinema e um dos herdeiros do Unibanco, 1956 – ], sem se inspirar na obra dele. Li o livro de Guevara (“De moto pela América do Sul / Diário de Viagem”) e o “Traveling with Che Guevara: The Making of a Revolutionary”, de autoria de Granado – que eu achei melhor do que as anotações de Che. Entrevistei também o próprio Granado, que então morava em Havana, mas estava debilitado e tinha dificuldade em falar (ele viria a falecer em 2011, aos 88 anos). A série foi ao ar no Brasil, em outros países da América Latina, Ásia e África. Depois, trabalhei em outras produções do NatGeo, como nos roteiros da primeira temporada do Tabu/Brasil (série internacional do NatGeo), e na série de cinco episódios de “A Verdade de Cada Um”, produzida pelo Fernando Meirelles e dirigida pelo Marcelo Machado (diretor de “Tropicália”). Entre os trabalhos marcantes para o canal, gostei muito de dirigir a série de 10 episódios de “Parques de São Paulo”. A produção tornou-se uma oportunidade incrível em adentrar reservas florestais de Mata Atlântica ainda preservadas, e conhecer pesquisas científicas de ponta para a conservação da vida selvagem em pleno estado mais populoso do país.
O que lhe surpreendeu de uma forma inesperada no Islamismo em si, quando fazia a pesquisa de campo para o livro “Nas Fronteiras do Islã”?
As imagens de guerrilheiros fanáticos e de fundamentalistas islâmicos, especialmente a partir dos atentados do 11 de setembro nos EUA, obscureceram a riqueza histórica, cultural e ambiental dos países de maioria muçulmana. Na Ásia Central, onde estão as ex-repúblicas soviéticas e o índice de analfabetismo é próximo do zero, há um braço pouco conhecido do Islã – o sufismo – onde Deus pode ser alcançado através da dança e das artes, como acreditam seus fiéis. E ali você encontra mulheres muçulmanas que usam vestidos na altura dos joelhos, trabalham e bebem vodka no final do dia em praça pública, como em qualquer lugar do mundo. Outra grande surpresa foi conhecer a região de Xinjiang, território no noroeste da China, habitado por mais de 22 milhões de pessoas de maioria muçulmana, incluindo sobretudo os uigures – a principal etnia separatista. A sensação é que Xinjiang, região ainda ignorada pela mídia, é um barril de pólvora prestes a explodir.
Como tem enxergado o jornalismo praticado em nosso país sobretudo nos assuntos internacionais que moldaram três dos seus mais notórios livros?
Quando acompanho o noticiário internacional na TV me sinto desconfortável, com aquela sensação de que nós telespectadores estamos sendo mal-informados. Há uma distância muito grande com a notícia, uma incrível falta de “temperatura” real, quando um correspondente baseado na frieza dos estúdios ou das ruas de Nova York e de Londres, por exemplo, surge no ar para falar de conflitos que ocorrem na África ou no Oriente Médio. A cobertura, nesses casos, não passa de um stand-up sem calor algum, fundamentado em informações e imagens geradas pelas agências internacionais – as mesmas que chegam às redações dos jornais e das TV de Porto Alegre a Manaus. Correspondentes internacionais no nosso noticiário também não se investigam limitam a produzir reportagens especiais para os programas dominicais, que por sua vez se pautam pelo entretenimento mediano. O livro “Nas Fronteiras do Islã” nasceu desse desconforto, da falta de informação real.
Após os atentados de 2001, em Nova York e Washington, as emissoras de TV, em geral, passaram a reproduzir o que a americana CNN considerava necessário destacar (ou omitir) no noticiário. Aquela era uma guerra dos EUA, e não nossa. Mas “compramos” o olhar da CNN sobre o mundo muçulmano, carregado de preconceito e desconhecimento. Em 2004, participei da primeira cobertura internacional ao vivo da TV Record, durante a tragédia do Tsunami na Ásia, em pleno final de ano. Formávamos uma equipe bastante reduzida, de apenas três profissionais, baseados no Sri Lanka, e entendemos que a melhor forma de trabalhar, com agilidade, seria contar as histórias que considerássemos relevantes sem consultar a redação em São Paulo. Não havia tempo para isso, era uma situação de tragédia e urgência. É possível, sim, trabalhar sem amarras, sem a preocupação constante com o Ibope, sem buscar os dramas e as lágrimas que os editores chegam a impor. E, até de certa forma, é possível trabalhar com independência nas emissoras comerciais. Para isso, é preciso não ter autocensura.
Você também é autor do livro “Terra Sob Pressão – A Vida na Era do Aquecimento Global”. Quais são as grandes falácias ditas e repetidas na imprensa sobre o aquecimento global?
O aquecimento global é realidade inegável. Em geral, a imprensa faz uma cobertura justa – apesar do assunto não ter o espaço e a atenção devida. Apesar de sermos os guardiões da maior biodiversidade e da maior reserva de água doce do planeta, o Meio Ambiente não está na pauta da política, da educação, do dia a dia. No meio desta falta de atenção com temas ligados ao Meio Ambiente, a defesa de ideias de que a variabilidade climática não é causada pelo homem pode se tornar uma séria ameaça ao planeta. Embora existam muitos argumentos contra a teoria do aquecimento global – como aquela que diz que as emissões de CO2 (gás carbônico) geradas pelo ser humano não controlam o clima – é preciso não perder o foco de que a conservação ambiental é imprescindível para a sobrevivência de inúmeras espécies da flora e da fauna, incluindo a humanidade, esteja a Terra aquecendo ou esfriando.
E quais são as grandes verdades?
É certo que nosso planeta, ao longo do tempo, já passou por ciclos de aquecimento e de resfriamento não causados pelo CO2 e ou pela ação humana. É certo também que a intensificação da atividade industrial nos últimos 100 anos (baseada na queima de combustíveis fósseis com petróleo e carvão) aumentou a concentração do gás carbônico na atmosfera. E é esse gás um dos causadores do efeito-estufa, que eleva a temperatura da superfície da Terra.
Além do pavor, qual foi o outro sentimento que você sentiu, quando o homem de farda militar surrada, descrito no começo de seu livro “Com os Pés na África”, olhou para você com olhar daqueles que apavoram?
Ninguém gosta de ter problemas com a polícia – seja a polícia da sua cidade ou do seu bairro. Imagine então com a polícia de outro país, com suas leis e códigos que desconhecemos. Para um viajante, longe de casa, arrumar confusão com policiais pode significar o fim da viagem, e o início de muitos problemas. Mas me safei para narrar a história descrita no livro. O inesperado, mesmo quando assustador, é que torna as viagens inesquecíveis.
Qual história do livro, te fez ter um olhar diferente sobre a humanidade em algum sentido?
Existe uma diferença enorme entre “visitar” e “experimentar” um país estrangeiro. A experiência, quando você se permite sair do conforto e da segurança do turista, é alcançada quando vivenciamos a realidade da gente local – seja dividindo um alimento ou o mesmo teto por um período; fazendo um trabalho em conjunto, trocando conhecimentos na convivência do dia a dia. Qualquer viagem, quando nos é dada a possibilidade de experimentar, ela passa a ter um poder transformador, capaz de ampliar nossa compreensão sobre a humanidade, com suas dificuldades e seus méritos. Angola, embora esteja longe de ser uma das grandes vítimas das articulações políticas e econômicas das potências internacionais na África, é um retrato contemporâneo do quanto a colonização é capaz de destruir uma cultura e deixar cicatrizes profundas na sua gente. A guerra pela independência, seguida por conflitos armados internos, mesmo que tenham terminado e agora o país viva em paz, continua presente como um fantasma na vida diária das pessoas – mesmo que neguem isso a elas mesmas. As guerras deixam as pessoas sem esperança, letárgicas, mesmo que não se deem conta disso.
Alguns críticos, jornalistas e intelectuais, afirmam que a África é o continente esquecido pelo resto do globo. Você que presenciou essa rica cultura de perto, teve a mesma sensação?
Não há dúvidas de que a África está esquecida. Infelizmente, a miséria, os conflitos intertribais, as guerras que assolam o continente continuam sendo o foco central do interesse jornalístico. Ao mesmo tempo, é curioso que esse “esquecimento” ocorra de acordo com as convenções, as necessidades do momento. Basta observar: a riqueza das histórias e dos conhecimentos africanos sempre inspirou, e continua inspirando, a produção literária, a música, o cinema e as mais diferentes formas de arte. Porém, os africanos não são reconhecidos como deveriam ser por este vasto repertório cultural. Costumo dizer que a África não é só safári, miséria e animais selvagens. É também, claro. Mas a África, o berço da humanidade, está muito, além disso, e perdemos todos nós pelo desconhecimento que temos desse imenso continente.
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