No dia 8 de setembro do ano passado, o Comitê Contra a Intolerância e a Discriminação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), promoveu um debate sobre os efeitos da discriminação na área da saúde. Um dos principais debatedores do encontro foi Telmo Kiguel, renomado médico psiquiatra e psicoterapeuta, fundador e diretor do Plantão de Atendimento Psiquiátrico – POA – RS e coordenador do Projeto Discriminação da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Esse projeto tem como objetivo básico a apropriação do estudo pela Psiquiatria da Conduta Discriminatória, cuja origem é basicamente psicológica e produz sofrimento mental e/ou físico no discriminado podendo chegar, em casos extremos, ao suicídio. Para o Panorama Mercantil, Telmo Kiguel afirma: “O início do meu interesse foi incipiente. Penso que decorre de uma antiga definição de doente mental que é aquele que faz mal para si ou para outro(s). Há muito anos me deparava pensando nesta intrigante questão: porque alguém (como descrevo na primeira pergunta) que fazia mal a outro tinha uma denominação tão simples como um discriminador racista, machista, etc… Um outro momento foi quando iniciaram os movimentos para criminalizar os discriminadores. A partir daí ficou claro que seria necessário avançar na definição/diagnóstico de uma conduta que passou a ser aceita como criminosa pela Ciência Jurídica”.
Doutor Telmo, gostaria que o senhor falasse de uma forma sucinta, o que são as chamadas Condutas Discriminatórias (CD).
Vejamos um dos aspectos do funcionamento normal da nossa mente: primeiro sentimos, depois pensamos, após falamos e por último agimos. Costumamos usar a denominação “conduta” para a ação. Quando tratamos das discriminações, a ofensa verbal já é considerada uma CD. Tanto é assim que só ela, em muitos casos, já é criminalizada. Também por isso as CD podem ser sem ou com violência. Para ser considerada CD, a verbalização e/ou a ação deve ser contra alguém que pertence a um grupo discriminado pelo único motivo dele pertencer a este grupo.
Quando surgiu o seu interesse pelo assunto Condutas Discriminatórias?
O início do meu interesse foi incipiente. Penso que decorre de uma antiga definição de doente mental que é aquele que faz mal para si ou para outro(s). Há muitos anos me deparava pensando nesta intrigante questão: porque alguém (como descrevo na primeira pergunta) que fazia mal a outro tinha uma denominação tão simples como um discriminador racista, machista, etc… Um outro momento foi quando iniciaram os movimentos para criminalizar os discriminadores. A partir daí ficou claro que seria necessário avançar na definição/diagnóstico de uma conduta que passou a ser aceita como criminosa pela Ciência Jurídica. Com esse objetivo coordenei o Projeto Discriminação na Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) de 2007 a 2010. Em 2014 passei a divulgar estas questões no blog Saúde Publica(da) ou não. Em 2016 o Projeto Discriminação foi instalado na Associação de Psiquiatria do Rio Grande Sul – APRS.
Como o senhor classificaria o papel da Ciência quando o assunto é referente as Condutas Discriminatórias?
Penso que o futuro desta problemática passa por aí. Alguns avanços importantes que ocorreram até agora tiveram a participação da Ciência. Homossexuais pressionaram a American Psychiatric Association (APA) e conseguiram que a Homossexualidade deixasse de ser considerada doença. Aqui no Brasil a Ciência Jurídica foi acionada para que a Conduta Discriminatória Racista e a Conduta Discriminatória Machista passassem a ser consideradas criminosas. Homossexuais ainda tentam conseguir que a CD contra eles também seja considerada crime. Infelizmente, até o momento, os Grupos Discriminados não se interessaram pela prevenção, mesmo sabendo que o número de ocorrências continua alto e que, eventualmente, dá a impressão de aumentar. O melhor caminho para diminuir as ocorrências é a prevenção. E em Medicina para se prevenir é necessário definir/diagnosticar o agente causador do sofrimento/sintoma/doença que acomete o ser humano. Talvez o maior obstáculo, para que as CD diminuam, seja o desinteresse dos discriminados pela prevenção e como consequência não acionar Ciência Psiquiátrica para isso.
Quais são os exemplos mais notórios de Condutas Discriminatórias?
No Brasil, por uma questão estatística, são as CD Racista, CD Machista e CD contra Homossexuais.
Como prevenir as Condutas Discriminatórias?
Em Medicina quando se quer fazer Prevenção, a primeira providência é definir/diagnosticar o agente causador. No caso seria a Psiquiatria definir a CD e o(s) Discriminador(es). Para o Direito a CD é criminosa e o Discriminador é um criminoso. Ocorre que o Discriminador não se reconhece como agente causador de sofrimento mental e/ou físico ao outro. E só vai ser obrigado a aceitar que sua Conduta é problemática quando for indiciado ou condenado pela Justiça. Até isto ocorrer, certamente, ele pode já ter causado muito sofrimento humano. Até então ele não foi informado/alertado por quem deveria – a Psiquiatria – que a sua Conduta seria, por exemplo, um Sintoma e/ou Doença. Até agora sabemos que a educação formal e criminalização não previnem discriminação. Há um outro caminho, muito mais longo, e que não está ao nosso alcance, que também previne as discriminações, e que está descrito em pesquisas em países menos religiosos e com mais liberdades laicas ocorrem menos discriminações.
O mundo vem se tornando mais fundamentalista com o tempo ou ele sempre foi em sua visão?
Não conheço estatísticas a respeito. Pelo descrito no final da pergunta anterior, talvez (?) possamos encontrar menos fundamentalistas em países menos discriminadores.
O senhor disse que a Bíblia não é mais adequada para se tornar um guia de comportamento. Por quê?
É uma questão que merece muitos debates, complexa, multifacetada e, por isso, com vários ângulos de abordagens. Escolho o “dos espaços”. Se uma pessoa religiosa, no seu espaço íntimo/privado, quiser seguir uma determinada orientação da Bíblia, ela tem este direito e merece ser respeitada. Se ela consultar um médico sobre o mesmo assunto, provavelmente receberá uma prescrição mais atualizada do ponto de vista da Ciência Médica. Em Medicina a atualização do conhecimento é um dever ético fundamental para uma boa prática. Se o assunto for algum comportamento no espaço público entraremos no debate onde os crentes, os não crentes e a laicidade devem ser respeitados.
Como uma personalidade anti-social pode se tornar alguém com Conduta Discriminatória?
Como não há uma definição pela Psiquiatria da CD e nem do Discriminador não há estudos sobre esta questão de evolução de uma doença prévia para a condição de discriminador. Mas temos exemplos de discriminadores que tem também um diagnóstico psiquiátrico. Ver aqui e aqui.
Por que o senhor é favorável que discuta questões de gênero na escola?
A escola tem muitos objetivos. Genericamente podemos dizer que é completar/complementar a educação dada pelos pais em casa. Como há a necessidade/iniciação de um convívio social com colegas com educação/origem/formação diversas do que cada um tem em sua casa, há necessidade de discutir que há pessoas e pensamentos diferentes dos que eles encontram em suas famílias e educá-los para a aceitação/tolerância dos outros/diferentes. Este processo estimula o amadurecimento e como decorrência ajuda na prevenção das Discriminações. As consequências da não prevenção da Discriminação contra as mulheres é tão grave que no Uruguai estão criando uma lei que tipifica o feminicídio como homicídio especialmente agravado.
Falando ainda sobre questões de gênero na escola, o senhor já entrou em contato com lados mais conservadores da sociedade para que essa questão seja discutida com maturidade e com menos paixão?
A pergunta já inclui qual é a melhor estratégia para avançar no debate da questão: procurar pessoas mais amadurecidas emocionalmente para discutir e tentar conseguir mais simpatizantes/aliados o que ampliaria o número de apoiadores. E assim multiplicando os espaços de discussão e apoio. Os “lados mais conservadores da sociedade” são de acesso muito difícil para um debate aberto visando esses avanços. Agora respondendo objetivamente: ainda não entrei em contato. E eles também não.
Mudando um pouco de assunto, o senhor considera ser possível um jornal como francês “Charlie Hebdo” ser publicado no Brasil ou isso é impossível em nossa sociedade atual?
Não sei. Nunca tinha pensado nesta possibilidade apesar do debate que fiz com o Flavio Aguiar. O que não impede de pensar e ir escrevendo sobre. A França é um dos países com maior ativismo pela laicidade do Estado. O Charlie é também um ativista, mas também com características de antiteísta. Aqui no Brasil o ativismo pela laicidade e antiteísmo são fracos. Sugestão possível: fazer uma pesquisa de opinião com lideranças políticas ou não, blogueiros, ativistas da laicidade, do ateísmo, do antiteísmo, das discriminações, em geral, e das Discriminações Religiosas, em especial.
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