“True”: foi parar na propaganda do Itaú
O capitalismo tem dessas ironias poéticas. Um hino romântico dos anos 1980, embalado por ternos de linho bege e penteados de spray, reaparece quatro décadas depois travestido de jingle bancário. “True”, a canção do Spandau Ballet que embalou corações e casais nas pistas de dança de 1983, agora é trilha sonora da nova campanha do Itaú — aquele mesmo que adora vender sonhos com luz alaranjada e sorrisos de gente que nunca esquece a senha do aplicativo. A música, que um dia soou como confissão de amor, agora pulsa entre QR Codes, celulares e promessas de facilidade financeira.
Gary Kemp, o guitarrista e compositor do Spandau Ballet, talvez não imaginasse que sua balada sobre a pureza e a verdade do sentimento amoroso seria licenciada, em pleno 2025, para uma campanha chamada “Pix com I de Itaú”. Mas o capitalismo tudo recicla: o vintage virou fetiche e o fetiche virou negócio. Se antes “True” era trilha de casamentos e jantares à luz de velas, agora serve para embalar transferências instantâneas. Amor e dinheiro, afinal, sempre tiveram uma química perigosa.
“Há, claro, algo de engenhoso nisso tudo. A publicidade moderna entendeu que nostalgia vende. O público quer se sentir confortável, reconhecido, reconectado com um tempo em que tudo parecia mais simples. A trilha sonora é o atalho mais eficiente para esse tipo de afeto. “True” não precisa explicar nada; bastam os primeiros segundos e o cérebro já aciona o modo saudosista.”
A peça, criada pela agência Africa e produzida pela Associados.TV, é tecnicamente impecável — como tudo que o Itaú faz. O banco domina a arte de vender emoção com verniz publicitário. O comercial começa suave, com acordes que qualquer quarentão reconhece no primeiro compasso. Logo vêm as imagens mentais de famílias, casais, amigos, todos unidos pela mágica do “Pix com I de Itaú”. A trilha, melosa e elegante, funciona como um gatilho nostálgico: um lembrete inconsciente de que o passado era mais simples, mesmo que seja mentira.
O resultado é bonito, emotivo, estratégico — e um tanto cínico. “True” virou o sussurro romântico de um banco, um lembrete de que até a memória afetiva tem valor de mercado. O Itaú não quer apenas vender o Pix; quer vender pertencimento, confiança, um simulacro de afeto bancário. A música não foi escolhida por acaso: “True” é universal, reconhecível e — ironicamente — verdadeira. Ou melhor, dizendo, soa verdadeira, o que em publicidade já basta.
Da balada de amor ao balanço de marketing
Nos anos 1980, “True” foi a trilha de uma geração que acreditava na sinceridade como virtude estética. Gary Kemp compôs a canção inspirado pela soul music americana e pela própria melancolia da era Thatcher — aquela mistura de romantismo com escapismo. Quando tocava nas rádios ou em novelas como Guerra dos Sexos, era o símbolo de um tempo em que o amor ainda cabia em três minutos e meio. O refrão, “I know this much is true”, resumia a busca por algo genuíno num mundo que já flertava com a superficialidade.
Quarenta e dois anos depois, esse mesmo refrão toca durante um intervalo da novela das nove da Globo — entre o remake de Vale Tudo e a nova Três Graças —, mas agora serve de pano de fundo para um outro tipo de relação: a do cliente com o banco. O romantismo migrou do coração para o app. O toque de piano virou push notification. A promessa de eternidade deu lugar à transferência instantânea. “True” virou trilha de um amor bancário líquido, prático, digital — e com cashback.
Há, claro, algo de engenhoso nisso tudo. A publicidade moderna entendeu que nostalgia vende. O público quer se sentir confortável, reconhecido, reconectado com um tempo em que tudo parecia mais simples. A trilha sonora é o atalho mais eficiente para esse tipo de afeto. “True” não precisa explicar nada; bastam os primeiros segundos e o cérebro já aciona o modo saudosista. É marketing com trilha emocional — e com pedigree musical.
Mas há também algo de desconcertante. O que significa quando uma canção que falava de amor puro é usada para vender eficiência bancária? Talvez seja apenas o destino natural de uma sociedade que transforma sentimento em dado e memória em mercadoria. A melodia continua linda, mas seu novo contexto revela a contradição do nosso tempo: emoção simulada, verdade licenciada, autenticidade com contrato assinado em cartório.
Ainda assim, o Itaú acertou. O comercial funciona. A música gruda. A lembrança fica. “True”, mais uma vez, cumpre seu papel — agora não como declaração de amor, mas como lembrete de que, no fim, tudo pode ser reciclado, embalado e vendido de novo. Inclusive a própria verdade.

No fundo, talvez Gary Kemp tenha previsto isso quando escreveu “I bought a ticket to the world”. O bilhete do mundo, hoje, passa por um QR Code alaranjado. E a trilha sonora continua a mesma — suave, irresistível, e, de algum modo, ainda true.
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