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Debatendo literatura negra com Ketty Valêncio

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Ketty Valêncio é formada em Biblioteconomia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e fundou a livraria afim de promover a representatividade negra na Literatura, que se mostrava ausente tanto na grade de seu curso de graduação quanto em outros locais. Para colaborar com o combate a uma representatividade mais abrangente da raça negra na literatura, a bibliotecária fundou a Livraria Africanidades. Nela tem de tudo um pouco: com livros sobre feminismo negro, quadrinhos, poesia e religião, todos têm como autores mulheres e homens negros. Ao todo, são mais de 60 exemplares. “O papel da pessoa negra na sociedade é de extrema importância. Somos a maioria da população brasileira, além de sermos os povos originários desta nação, com os indígenas. A nossa história a partir deste território, América e Brasil, inicia-se fundada pela violência, por sangue e muito suor e ainda nos tempos atuais a saga continua, porém, de uma forma sofisticada e perversa. (…) A diferença entre mim e uma livraria comum está na localização dessas obras no acervo das livrarias, se por acaso tiverem na loja física da livraria comum, pois, normalmente essas obras sempre estão com status de encomenda. Também tem outro ponto importante, para facilitar a localização desses livros, a pessoa tem que saber os dados corretos, ou seja, a pessoa tem que já ser um apreciador dessas obras”, afirma.

Ketty, antes de mais nada, gostaria que falasse um pouco sobre a sua carreira até chegarmos aos dias atuais.

A minha trajetória profissional foi muito versátil, pois, antes de possuir o diploma de graduação, atuei em diversos segmentos de emprego, como vendedora, caixa, contínuo e carteiro. Já ralei muito, porém, percebo como foi importante executar tudo isso para a minha formação pessoal e profissional. Depois que conclui a graduação, tive a oportunidade de atuar na área de Biblioteconomia e entrei no universo das bibliotecas. Assim tive experiências em alguns tipos de bibliotecas, como a universitária, jurídica, pública e a escolar.

Qual a sua visão sobre o papel do negro em nossa sociedade?

O papel da pessoa negra na sociedade é de extrema importância. Somos a maioria da população brasileira, além de sermos os povos originários desta nação, com os indígenas. A nossa história a partir deste território, América e Brasil, inicia-se fundada pela violência, por sangue e muito suor e ainda nos tempos atuais a saga continua, porém, de uma forma sofisticada e perversa. Fizeram a população preta acreditar em diversas mentiras, como a construção do imaginário popular, através da invenção do que é ser negro(a), transmitida pelo olhar do(a) opressor(a).

Como e quando você acredita que o negro terá uma maior representatividade na sociedade brasileira?

Quando pararmos de nos matar, não somente na forma de violência física, mas sim psicologicamente, materialmente e de todas as outras formas de não existência negra. Quando também o apagamento histórico e a invisibilidade de corpos negros(as) não forem naturalizados. O genocídio da população negra é uma realidade. Porém, reivindico a representatividade qualitativa e não quantitativa, estamos cansados(as) de estarmos designados(as) sempre em lugares da subalternidade, da marginalidade e ostracismo. Você já notou quantas pessoas negras trabalham com você e na sua empresa? Se você é um empregador(a), contrata mais pessoas negras ou brancas? Temos que iniciar este processo através de nossas ações, pois, somos seres políticos. Mas realmente você se importa?

Fale um pouco sobre o seu trabalho como pesquisadora.

Sempre fui muito curiosa e determinada, assim fui levada para o mundo da pesquisa. Desvendar histórias, montar um grande quebra cabeça de memórias, isso me estimula a seguir na profissão. Sinceramente, acho tudo isso bem poderoso e tenho a ciência da importância da capacidade da profissão de ser uma ferramenta política. Meu trabalho é uma tentativa de recuperar vozes que durante muito tempo foram silenciadas. Outro trabalho que tenho muito orgulho em ter participado, com a Fernanda Allucci, Renata Allucci, Ricardo Dutra e Samuel Malbon, foi a publicação “Mulheres de Palavra: um retrato das mulheres no rap de SP”, por meio do PROAC editais, realizado em 2016. O projeto consiste pelas narrativas de 12 mulheres Mc´s, mulheres inspiradoras que quebraram paradigmas e romperam o silêncio com sua arma mais preciosa: a palavra, matéria-prima para a transformação da sua vida e do seu redor.

A sociedade brasileira é mais racista ou mais classista em sua visão?

Os dois fatores são quase a mesma coisa e isso se torna uma grande armadilha. Pois a maioria da população formada pela classe C, D e E é negra.

Em países como os EUA, vemos um nicho grande de empresas voltadas para os negros. Isso ainda será possível em uma escala maior em nosso país?

Sim, poucas empresas brasileiras seguem este modelo. Porém, isso tem a ver com privilégios, racismo, capitalismo e compromisso ético de desconstrução para a formação de uma sociedade antirracista.

De certo modo a Livraria Africanidades veio cumprir esse papel?

Sim, a Livraria Africanidades tem a intenção de demonstrar que qualquer pessoa negra e também as mulheres têm o direito de ser o que elas(es) quiserem, porém, com ressalvas, porque sabemos as barreiras que somos empregadas a enfrentar diariamente, principalmente quando vamos para o afronte.

Quando e como surgiu a ideia da livraria?

A ideia surgiu depois que encontrei em minha vida a literatura afro-brasileira ou negra. Através da literatura pude perceber, que o controle do protagonismo de pessoas negras eram somente através de algumas facetas, como, por exemplo, objetificação do corpo, como [pessoas] feiticeiras, subalternas, vagabundas, sem inteligência, estagnadas e como algozes, entre outras características negativas. Mas, felizmente, me deparei com uma outra literatura que me aceitava do jeito que eu era e me acolhia. Assim pude conhecer um outro Brasil, com histórias e fatos que faziam parte do meu cotidiano, de um passado realizado pelos nossos ancestrais, histórias que vinham de longe na África – que para mim, parecia que era a história dos meus avós. Assim, me visualizei como sujeita da história. Porém, infelizmente nesta época ainda era um pouco inacessível e não popular a literatura negra e afro-brasileira, daí eu pensei “por que não criar pontes de acessos?, pois todo mundo tem que conhecê-la, apenas não sabia como fazer. Na época estava em um curso na graduação em Biblioteconomia e era perceptível que eles não se importavam com este tipo de conteúdo. Daí tive o privilégio em fazer uma MBA, que me possibilitou em criar um plano de negócio sobre a Livraria Africanidades. Depois em 2014 nasce o empreendimento no formato virtual, pelo site e no fim de 2017, a loja física.

Qual o diferencial da livraria além da óbvia identidade com a história escrita pelos negros?

O acervo é enegrecido, a abordagem de atendimento e o seu espaço físico. A diferença entre mim e uma livraria comum está na localização dessas obras no acervo das livrarias, se por acaso tiverem na loja física da livraria comum, pois normalmente essas obras sempre estão com status de encomenda. Também tem outro ponto importante, para facilitar a localização desses livros, a pessoa tem que saber os dados corretos, ou seja, a pessoa tem que já ser um apreciador dessas obras ou ter tido alguma indicação para consumi-las. A literatura negra ou afro-brasileira é devorada pelo acervo eurocentrista dessas livrarias.

Como enxerga a discussão do racismo no meio editorial e midiático?

Eu julgo que é bem artificial, ainda precisa cair muitas máscaras. Dessa forma sabemos que algumas das matérias-primas que alimentam a indústria, continuam sendo o racismo e o machismo. Por isso a importância de discutir cada vez mais sobre estas temáticas.

Quais livros da Livraria Africanidades você considera serem essenciais para entender um pouco mais sobre os negros do nosso país?

Na realidade todos os livros que compõem o acervo da Livraria Africanidades são importantes para entender sobre este assunto. Apesar de os livros serem de autoria de maioria de pessoas negras, que partem de uma história pessoal (do Brasil) com quase o mesmo início, no entanto, cada um(a) possui a sua pluralidade, com visões de mundo diferentes, ou seja, são memórias fragmentadas, que se transformam em uma grande colcha de retalhos.


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