A cidade de Porto Alegre terá a avant première do filme sobre um dos nomes mais célebres da cultura do Rio Grande do Sul e do Brasil. “Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor”, com direção de Alfredo Manevy e realizado numa coprodução Plural Filmes e Canal Curta!, será apresentado para convidados no dia 15 de dezembro,às 19h, na Cinemateca Capitólio (rua Demétrio Ribeiro, 1085). O documentário, que é o primeiro longa do diretor, resgata o legado musical e evidencia a contribuição artística e o contexto histórico/social do grande compositor, cujas músicas de sucesso ultrapassam gerações e foram interpretadas por alguns dos maiores nomes da Música Popular Brasileira. Lupi teve influências do Samba e do Tango, mas, versátil, passeou por diversos outros estilos em suas composições.
Neste mês, o longa arrematou dois dos prêmios principais da 17º edição do Fest Aruanda 2002, em João Pessoa, na Paraíba: Melhor Edição, para Isabel Castro, e Melhor Trilha Sonora. O filme também recebeu Menção Honrosa. “‘Por sua força narrativa ao resgatar e ressaltar a importância de um dos maiores compositores da música popular brasileira, e pela riqueza de sua pesquisa, o júri decidiu conceder menção honrosa a “Lupicínio Rodrigues – Confissões De Um Sofredor”, de Alfredo Manevy’’’, informa a organização do festival. Em Setembro, o filme também foi um dos grandes destaques da 46ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo.
Em 92 minutos, o longa exibe vasto material de arquivos de jornais, entrevistas em programas de TV do próprio Lupicínio, além de personalidades e artistas que falam sobre a sua obra. Ícones da Tropicália (importante movimento cultural, na década de 60), Caetano Veloso e Gilberto Gil eram fãs de Lupicínio e estão nas imagens históricas do filme, que registra encontro entre os três em Porto Alegre. Também Tropicalista, Gal Costa, falecida recentemente, protagoniza momento emocionante no doc. Tocando violão e flor no cabelo, numa imagem de 1973 (ainda na era da TV preto e branco), ela interpreta “Volta”, do autor gaúcho.
Ainda sobre divas, outra presença marcante no documentário é a de Elza Soares, que gravou ”Se Acaso Você Chegasse” – a canção havia sido gravada inicialmente por Ciro Monteiro e foi o primeiro grande sucesso de Lupicínio. A composição chegou a ser trilha de “Dançarina Loura”, musical de Hollywood, e indicada ao Oscar em 1945. Porém, além de não ter sido consultado sobre a utilização da sua música, ele também não recebeu direitos autorais. Os versos de Lupicínio atravessaram fronteiras também na voz de Linda Batista, que gravou “Vingança” e, por conta desse sucesso, realizou turnê internacional. Aí, sim, vieram os direitos autorais e, com parte do dinheiro, Lupicínio comprou um belo carro que, segundo ele, era o mais bonito de Porto Alegre. Tudo isso tem no filme!
Com linguagem ágil e precisa – e a narração na voz inconfundível do ator Paulo César Pereio -, “Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor”, faz uma linha do tempo da vida do compositor, nascido em 16 de setembro bairro Ilhota, em Porto Alegre, numa família de 25 filhos – ele faleceu com 59 anos, em agosto de 1974. Boêmio, namorador, apaixonado pelo Grêmio Futebol Clube – é dele a autoria do hino oficial do time-, Lupicínio lançou mão do enorme talento como letrista e reescreveu o destino de homem preto, nascido na periferia, tornando-se o poeta que cantou o amor. Suas composições ficaram conhecidas como as canções das dores-de-cotovelo, já que a maioria delas eram verdadeiras crônicas sobre paixões, desencontros e corações partidos.
Para contar a história de Lupicínio no cinema, o diretor Alfredo Manevy traz para o filme os depoimentos de personagens como Zuza Homem de Mello, Elza Soares, Gilberto Gil, Jards Macalé, Arthur de Faria, Valéria Barcellos, Marcelo Campos, Linda Batista e Mutinho. Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho, também está entre as personagens, além de ter sido consultor sobre o acervo pessoal do pai, para o filme.
“Alfredo Manevy e sua equipe são – como Verissimo, outro gaúcho de quatro costados (torcedor colorado e não gremista como Lupi, autor do Hino tricolor) – devotos de Nossa Senhora do Contexto. O filme situa Lupicínio em seu tempo histórico e na geografia que o acolheu. Por isto, não vai ao anacronismo de ler seus versos, machistas aos olhos contemporâneos, com as lentes do agora”. Essa análise é de Maria do Rosário Caetano, publicado em Outubro, na Revista do Cinema, sob o título ‘“Confissões de um Sofredor” desenha potente retrato de Lupicínio Rodrigues.’”
Força da ancestralidade negra
Entre as histórias da vida de Lupicínio, retratadas no filme, está a discriminação racial, que sofreu em Porto Alegre. Foi num bar, vazio, onde o compositor estava com um amigo e deixou de ser atendido por causa da cor de sua pele.
Mas, para além desse episódio, o filme se propõe a levantar questões de fundo relacionadas com o racismo. Para esse propósito, a equipe de Manevy contou com o Grupo de Estudos sobre o Pós-Abolição (GEPA), da Universidade Federal de Santa Maria UFSM). O grupo atuou na assessoria histórica do filme com uma equipe de nove pesquisadores/historiadores gaúchos que possuem uma abordagem crítica sobre a história da escravidão e liberdade no Estado.
‘“Quem assistir “Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor” será impactado pela força da ancestralidade negra em lutas pela liberdade que ficam evidentes na experiências de homens e mulheres negros e negras que assim se definiram para além da escravidão contrariando imagens hegemônicas”. O depoimento está em um texto escrito pela Professora Mestranda em História, Taiane Anhanha Lima, e pela Professora Doutoranda em História, Franciele Rocha de Oliveira. Ambas são historiadoras e membros do GEPA UFSM.
Elas revelam que ‘“a produção do filme chegou até o grupo devido à importância da passagem do Lupícinio por Santa Maria, local que ele se referia como a “cidade que despertou o seu coração” e que proporcionou experiências nos clubes sociais negros onde conheceu o seu primeiro grande amor e Inah Pereira Soares, mulher negra, de quem foi noivo, mas também por quem foi preterido arrebatando o seu coração e tornando-se tema de várias canções.’”
Ainda segundo o relato das historiadoras, a pesquisa evoluiu “ para um trabalho de campo e fôlego documental reunindo fontes diversas que tornaram possível reconstituir a genealogia familiar de Lupicínio, muito além do que tradicionais biografias apontam e até mesmo importantes estudos acadêmicos sobre sua vida e obra.” No texto sobre o filme e a personagem do compositor, as professoras declaram:
O filme “Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor” traz, pela primeira vez, as origens mais remotas de Lupi apontando sua ancestralidade africana a partir dos casais de seus pentavós, Antônio Benguela e Rosa Rebolo, e Pedro Benguela e Josefa Benguela, africanos nascidos no século XVIII traficados para o Brasil e escravizados por José Carneiro Geraldes, na cidade de Mostardas litoral Negro do Rio grande do Sul. Território de concentração quilombola objeto de estudo da historiadora Cláudia Daiane Mollet (premiado pela CAPES, 2019). Lupi é descendente de africanos que tornaram-se livres desde a primeira década do século 19, a partir da morte de um senhor que não deixou herdeiros. Sua vida é parte das tradições diaspóricas e transatlânticas que atravessam o oceano e o tempo e ajudam a pensar a produção e as existências negras afro gaúchas do século XVIII até o extenso passado-presente pós Abolição.
Alfredo Manevy:
Nascido em Campinas, em 1977, hoje vive em Florianópolis. Formado em Cinema pela Universidade de São Paulo, Manevy trabalhou em políticas de inclusão e formação de público para cinema, quando presidiu a Spcine e foi Secretário Executivo no Ministério da Cultura. Atualmente, é professor de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor” é sua estreia na direção de longas metragens.
Marcia Paraíso:
É realizadora audiovisual, trabalhando com temáticas relacionadas à cultura e arte popular, populações tradicionais e questão agrária. Dirigiu e roteirizou as séries “Invenções da Alma” e “Visceral Brasil, as veias abertas da música”, os longas documentários “Sobre sonhos e liberdade”, “Terra Cabocla” e “A maravilha do século”. Em ficção, dirigiu “Lua em Sagitário”e a série “Submersos” e “Alegria do Amor”, ainda não lançado.
Paulo César Pereio:
Nascido em Alegrete (RS), já atuou em mais de 60 filmes e inúmeras peças teatrais. Foi dirigido no cinema por nomes como Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Hugo Carvana, Ruy Guerra e Hector Babenco. É considerado um dos melhores narradores do país, e uma das vozes marcantes no meio publicitário brasileiro.
*Com participação da jornalista Paula Ramagem.
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