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O público negro pela ótica de Carolina Campos

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A publicitária Carolina Campos e a pesquisadora Ana Carla Carneiro lançaram o Estúdio Nina em 2019, que tem o objetivo de entender, decodificar e compartilhar conhecimento sobre o público negro. O propósito é ser a ponte que conecta mais da metade dos consumidores brasileiros às marcas que atuam no Brasil. “Falar de diversidade ou apenas incluir pessoas negras nas campanhas é insuficiente. É necessário estabelecer uma comunicação real e mais efetiva, e isso só é possível ouvindo esse consumidor. O mercado de pesquisa apresenta uma lacuna grave: não olha os negros, não tem dados e não se volta para suas necessidades particulares”, explica Ana Carla. Segundo a agência, mencionando estudos do IBGE, as famílias negras são responsáveis por um percentual muito elevado dos gastos da grande maioria de categorias: 61% de leite em pó, 49% de biscoito, 44% de sabonete, por exemplo. “Fomos um país que sempre garantiu – e sempre fizemos leis e políticas de estado para isso – que os negros estejam nas classes mais baixas. E evidentemente a crise atual impacta mais profundamente aqueles que são das classes mais baixas, ou seja, os negros. Mas veja que isso não se refere apenas à crise atual. Qualquer indicador coloca a população negra em desvantagem no Brasil – não há um único parâmetro que coloque brancos e negros em posições iguais”, afirma a cofundadora Carolina Campos.

Carolina, as marcas têm entendido o público negro?

Definitivamente não. As marcas não ouvem o público negro, não sabem o que este público pensa a respeito de seus produtos, desconhecem suas motivações, suas aspirações. Para se ter uma ideia, as empresas nem ao menos sabem se ao fazer pesquisas de mercado estão ou não falando com negros, pois, não controlam essa variável (cor). As marcas replicam o racismo que estrutura a nossa sociedade: consideram que o branco é a norma, é o padrão.

Quais as principais deficiências dessa comunicação?

Somos um mercado que ignora mais da metade dos brasileiros. Não tenho dúvida em afirmar que a maior deficiência do mercado de comunicação é não conseguir se comunicar com 56% da população do país. Diferentemente de outros países, no Brasil o público negro não é um “nicho” ou uma pequena parcela da sociedade. E segundo um dado do Instituto Locomotiva, 94% dos negros não se sentem representados pela propaganda brasileira. Imagine o quanto as marcas perdem com isso. E o quanto a nossa sociedade perde, já que a propaganda até hoje serve como uma forma de manutenção do racismo no Brasil. Se os negros não estão representados na TV, nas revistas, isso é um reforço a essa naturalização, a essa ideia de que o Brasil é branco e os negros estão sempre à margem.

Que características são fundamentais nesse público e que os diferem dos demais?

A primeira coisa que temos que entender é que a população negra é muito diversa. São milhões de pessoas que são completamente diferentes entre si, que possuem características distintas: existem negros da região Norte e da região Sul, negros de classe A e negros de classe E, negros que não concluíram o primeiro grau e negros que são doutores e são convidados a dar aula em Harvard, negros de esquerda e de direita, negros que tem total consciência da sua identidade negra e outros que não. Assim como seria errado afirmar que “os brancos” possuem determinadas características (como se todos os brancos fossem iguais), é igualmente errado afirmar que os negros têm características fundamentais que os definem. Mas existe um elemento que é comum: todos os negros experenciam, ainda que de formas diferentes, a discriminação e o preconceito.

Essa pergunta faz todo o sentido, pois, ela ajuda a entender como o racismo funciona: o racismo faz com que acreditemos que os brancos são indivíduos e que os negros são um coletivo (ou seja, se eu encontrar um homem branco “raivoso” eu não vou generalizar isso dizendo que todos os homens brancos são raivosos, mas se vejo uma pessoa negra com uma característica específica vou entender isso como sendo algo de todos os negros). O Estúdio Nina existe exatamente para mostrar isso: o quão distintos, complexos são os negros. Mas acima de tudo, existimos para mostrar que ser negro e ser branco no Brasil são experiências completamente distintas – e isso afeta tudo: a maneira que nos vemos, a maneira como enxergamos o mundo, nossas necessidades.

Como esse público tem sido afetado pela crise atual?

No Brasil, sabemos que raça e classe andam juntas. Ou seja, fomos um país que sempre garantiu – e sempre fizemos leis e políticas de estado para isso – que os negros estejam nas classes mais baixas. E evidentemente a crise atual impacta mais profundamente aqueles que são das classes mais baixas, ou seja, os negros. Mas veja que isso não se refere apenas à crise atual. Qualquer indicador coloca a população negra em desvantagem no Brasil – não há um único parâmetro que coloque brancos e negros em posições iguais. Ou seja, os negros ganham menos, têm menos acesso à educação e à saúde, morrem mais cedo, pagam mais impostos… Nossa sociedade é desenhada para que isso ocorra.

Acredita que essa parcela da sociedade estará em uma situação melhor no pós-Covid 19?

De maneira nenhuma. Pelo contrário, serão os que terão maior dificuldade para sair da crise. Mas, ao mesmo tempo, o que temos observado é que suas vozes são cada vez mais potentes, e demandam da sociedade o reconhecimento do racismo, chamando a atenção para ações racistas que corroboram e reforçam estereótipos negativos.

Em que momento surge o Estúdio Nina nesse contexto?

O Estúdio Nina surgiu no início de 2019. Não é uma resposta nem a crise, nem a esse momento onde todos têm colocado hashtags afirmando que vidas negras importam. Mas parece que, em virtude disso tudo, tornou-se inevitável que as marcas passem a olhar para os negros agora.

Quais os principais pilares do estúdio?

Um pilar fundamental para nossa ação é não falarmos pelos negros. O Estúdio Nina é acima de tudo uma empresa de pesquisa, escutamos o que a população negra pensa e sente, e fazemos a ponte com as marcas. Não somos uma consultoria, não se trata nunca de nossas opiniões pessoais. Existimos para ouvir os negros. Pode parecer fácil, mas não é, pois, isso requer um conhecimento teórico prévio e profundo do que é o racismo e de como ele age na sociedade brasileira.

Como o estúdio aproximará consumidores negros e marcas?

Através de informação. O Estúdio Nina é uma empresa de pesquisa focada no entendimento do público negro. Nascemos para ouvir, entender e compartilhar conhecimento sobre os negros.

O que não pode falhar nessa aproximação?

Nessa aproximação das marcas com o público negro o que não pode falhar é o propósito e a firme determinação em abrir mão de nossas certezas prévias. Me explico: se aproximar do público negro é olhar para o racismo, e se engajar numa mudança estrutural na sociedade brasileira; é uma atitude séria, que não pode ser tomada com medo ou sem informação. Não pode ser feita por oportunismo, ou sem reflexão. Precisa ser encarada como uma diretriz ética e estratégica das marcas. E fazê-lo significa também abrir mão de ver a parcela branca da sociedade como o grande referencial para as tomadas de decisão, abrir mão do protagonismo branco.

As campanhas publicitárias realizadas atualmente, estão falando com esse público do modo correto?

De forma generalizada, diria que as campanhas hoje não falam com o público negro. Mas vale mostrar que existem coisas diferentes acontecendo. Em primeiro lugar, não podemos esquecer que temos o tempo todo campanhas racistas indo pro ar: são campanhas que exploram estereótipos, que colocam negros como caricaturas. São exemplos absurdos e inacreditáveis, mas estão aí. Depois, temos um grupo grande de anunciantes que simplesmente ignoram o fato dos negros existirem. Só para se ter uma ideia, um estudo realizado este ano pela UERJ aponta que os brancos são 78% das pessoas representadas em anúncios. Temos um terceiro grupo que acha que falar com o público negro é falar de “diversidade” – ou seja, todas essas campanhas que você vê com pessoas ruivas, loiras, orientais, negras, etc. E por fim, existem algumas marcas que já vem fazendo um trabalho mais consistente – geralmente marcas de beleza que possuem produtos específicos para pele ou cabelo de pessoas negras em seu portfólio. São exceções, mas já perceberam a importância de ouvir e de se conectar com esse público.

O que deveria ser feito de diferente para essas peças serem ainda mais assertivas?

A solução definitiva: ter metade dos profissionais negros dentro das agências e das áreas de marketing das empresas – e em posições de liderança. Enquanto isso não ocorre, ter informação, ou seja: conhecer este público, considerá-lo ao elaborar um briefing e durante todo o processo criativo (e não apenas na reunião de casting), testar campanhas para avaliar se são ou não racistas.


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