Criptomoedas como moeda diária: será?
Há pouco mais de uma década, falar em criptomoedas era coisa de fórum obscuro, entusiasta de informática e gente que acreditava que o sistema financeiro mundial cairia antes do próximo halving do Bitcoin. Hoje, o tema está nos bancos centrais, nas mesas de investimento e até na conversa de bar — ainda que, no bar, quase ninguém pague a cerveja em satoshis. A pergunta que insiste em reaparecer é simples e traiçoeira: as criptomoedas podem, de fato, se tornar moeda corrente no dia a dia?
Do ponto de vista conceitual, elas nasceram para isso. O Bitcoin foi apresentado como “dinheiro eletrônico peer-to-peer”, um sistema que dispensaria bancos, intermediários e taxas invisíveis. Uma espécie de revanche libertária contra o dinheiro estatal, acusado de inflação crônica, manipulação política e opacidade. A promessa era sedutora: um dinheiro neutro, global e resistente à censura. Na teoria, quase poético. Na prática, menos épico.
“Talvez a pergunta esteja mal formulada. Em vez de “as criptomoedas substituirão o dinheiro?”, o mais honesto seria perguntar “em quais contextos elas já fazem mais sentido?”. A resposta aponta para usos específicos, complementares, e não para uma hegemonia cotidiana. Elas não precisam virar moeda corrente universal para serem relevantes.”
O primeiro obstáculo é o óbvio: volatilidade. Uma moeda que sobe 12% num dia e cai 18% no outro pode ser excelente para especuladores, mas é péssima para quem precisa comprar pão, pagar aluguel ou planejar o mês. O comerciante que aceita criptomoeda hoje pode descobrir amanhã que vendeu barato demais ou caro demais — e nenhuma das duas opções ajuda a fidelizar clientes. Dinheiro, antes de tudo, precisa ser previsível. Emoção é para novela, não para meio de troca.
Há também a questão da experiência cotidiana. Apesar dos avanços, pagar com criptomoedas ainda exige aplicativos, chaves, confirmações de rede e uma atenção que o consumidor médio não quer ter. O cartão aproxima, o Pix resolve em segundos, e o dinheiro físico continua funcionando até quando a internet cai. A tecnologia cripto melhorou muito, mas ainda pede um nível de engajamento que não combina com a pressa do cotidiano urbano.
Entre a utopia monetária e o caixa do mercado
Defensores argumentam que stablecoins resolvem parte do problema, ao atrelar seu valor a moedas fiduciárias. E, de fato, elas avançaram silenciosamente como meio de pagamento em nichos específicos, especialmente em transferências internacionais e economias com moedas frágeis. Mas isso revela uma ironia deliciosa: para funcionar como dinheiro estável, a criptomoeda precisa se ancorar justamente no sistema que prometia substituir. É como um revolucionário que não vive sem o velho manual do inimigo.
Outro ponto pouco romantizado é a regulação. Estados não abrem mão do controle monetário com facilidade. Moeda é poder: define política econômica, arrecadação, sanções e soberania. A tendência observada até aqui não é a adoção irrestrita de criptomoedas descentralizadas, mas a criação de moedas digitais estatais, controladas e rastreáveis. São rápidas, eficientes, mas carregam o DNA do velho dinheiro — com CPF, RG e tudo mais.
Isso não significa que as criptomoedas fracassaram. Ao contrário: elas venceram ao forçar o sistema financeiro a se modernizar, reduzir custos e repensar sua arquitetura. Funcionam como reserva alternativa de valor para alguns, instrumento de proteção para outros e laboratório de inovação para muitos. Mas isso é bem diferente de virar troco de padaria ou pagamento de ônibus.
Há ainda o fator cultural. Dinheiro é confiança coletiva. As pessoas usam uma moeda porque acreditam que outros a aceitarão amanhã. Essa crença não nasce apenas da tecnologia, mas de instituições, costumes e histórias compartilhadas. O real, o dólar ou o euro carregam Estados, exércitos, tribunais e impostos por trás. Criptomoedas carregam código, comunidade e fé — poderosa, mas ainda insuficiente para substituir séculos de construção institucional.
Talvez a pergunta esteja mal formulada. Em vez de “as criptomoedas substituirão o dinheiro?”, o mais honesto seria perguntar “em quais contextos elas já fazem mais sentido?”. A resposta aponta para usos específicos, complementares, e não para uma hegemonia cotidiana. Elas não precisam virar moeda corrente universal para serem relevantes.
Podem continuar sendo aquilo que melhor sabem ser: uma provocação permanente ao sistema, um espelho incômodo para bancos centrais e um lembrete de que o dinheiro, no fundo, é uma invenção humana — e, como toda invenção, passível de revisão, mas não de mágica.

No fim, a criptomoeda como dinheiro diário pode até acontecer em bolsões, crises ou transições. Como regra geral? Ainda parece mais manifesto do que realidade. E manifesto, convenhamos, é ótimo para inspirar — mas nem sempre para pagar o café.
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