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David Cronenberg e o horror corporal

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A história do cinema de horror tem muitos nomes icônicos. Mas poucos provocam tanto desconforto e fascínio quanto David Cronenberg. Com quase seis décadas de carreira, o cineasta canadense mantém intacto o status de referência definitiva quando o assunto é o “horror corporal” — um subgênero que ele moldou praticamente com suas próprias mãos, expurgando nele obsessões biológicas, existenciais e tecnológicas. Aos 81 anos, Cronenberg continua a inquietar plateias e a expandir fronteiras artísticas, ainda que sua abordagem nem sempre seja bem compreendida ou aclamada em larga escala. Afinal, não é fácil digerir uma filmografia marcada por mutações físicas grotescas, máquinas que se fundem com carne, e protagonistas em constante desintegração física e psíquica.

Nascido em Toronto, em 1943, Cronenberg começou sua trajetória nos anos 1970, no Canadá, realizando filmes independentes de orçamento modesto, como Shivers (1975) e Rabid (1977). Ali já estavam os germes de uma visão muito peculiar do medo — não algo vindo de forças sobrenaturais ou assassinos mascarados, mas da biologia humana em colapso. Sua premissa era clara: o corpo é instável, falho e sujeito a mudanças involuntárias e invasivas. Com Scanners (1981) e, sobretudo, com Videodrome (1983), Cronenberg aprofundou sua estética da carne em choque com o mundo digital e midiático, antecipando debates que se tornariam centrais décadas depois, na era da hiperconectividade e da vigilância.

“Apesar de ser constantemente celebrado por críticos e acadêmicos, Cronenberg nunca foi exatamente um cineasta popular. Sua obra exige do espectador uma disposição para enfrentar o incômodo, o feio, o que escapa à lógica narrativa tradicional.”

Talvez nenhuma obra de Cronenberg represente tão bem sua filosofia artística quanto A Mosca (1986), seu maior sucesso comercial. Um remake do filme de 1958, A Mosca se tornou um clássico cult ao transformar o experimento científico fracassado do protagonista em um estudo devastador sobre decadência física, isolamento e autodestruição. A performance de Jeff Goldblum como o cientista Seth Brundle — que aos poucos se transforma em um híbrido de homem e inseto — é brutal em sua sinceridade, assim como a direção de Cronenberg, que evita a caricatura e investe em uma tensão emocional e corporal cada vez mais insuportável.

Mutação como metáfora

A mutação, para Cronenberg, nunca é gratuita. Ela é sempre sintoma de algo maior: um reflexo das ansiedades da época, um espelho da fragilidade humana frente à tecnologia, à sexualidade, à medicina e ao próprio tempo. Seu cinema é uma provocação à ideia de que o corpo é um espaço sagrado e imutável. Ao contrário, ele o trata como um território em disputa — muitas vezes, perdido para forças externas e internas que não compreendemos totalmente.

Ao longo dos anos 1990 e 2000, o cineasta começou a abandonar aos poucos os efeitos visuais explícitos e investiu em uma abordagem mais psicológica do horror. Filmes como Crash (1996), adaptado da obra de J.G. Ballard, e Spider (2002) mantêm a mesma obsessão pelo anormal e pela desordem, mas agora com um estilo mais contido e introspectivo. Crash, aliás, gerou polêmica e admiração ao abordar o fetiche sexual por acidentes automobilísticos, valendo a Cronenberg o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes.

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É curioso que, com o passar do tempo, Cronenberg tenha conseguido renovar sua linguagem sem perder a essência. Em Senhores do Crime (2007) e Um Método Perigoso (2011), ele migra para o drama criminal e o thriller histórico com a mesma elegância com que antes invadia corpos e circuitos. Mas seu retorno ao horror visceral, com Crimes of the Future (2022), mostra que o fascínio pela carne — e pela política da carne — nunca o abandonou. Neste último filme, o corpo é mais uma vez um palco de experimentações, dor e transformação, agora inserido num mundo onde a cirurgia se tornou uma nova forma de arte.

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David Cronenberg dirige o astro Robert Pattinson em Cosmópolis (Foto: Divulgação)
David Cronenberg dirige o astro Robert Pattinson em Cosmópolis (Foto: Divulgação)

Apesar de ser constantemente celebrado por críticos e acadêmicos, Cronenberg nunca foi exatamente um cineasta popular. Sua obra exige do espectador uma disposição para enfrentar o incômodo, o feio, o que escapa à lógica narrativa tradicional. Por isso, em tempos de blockbusters higienizados e fórmulas repetitivas, sua permanência como voz autoral no cinema é mais do que relevante — é necessária. Há rumores de que ele esteja desenvolvendo uma nova produção, novamente com temas relacionados à biotecnologia, Inteligência Artificial e corpo humano. Nada mais coerente com seu legado.

Ao fim, é possível dizer que David Cronenberg nos ensinou que o verdadeiro terror não vem de fora, mas de dentro. Ele não usa monstros para nos assustar — somos nós os monstros, com nossas doenças, medos e desejos incontroláveis. Em um mundo cada vez mais obcecado com a perfeição estética e a ilusão de controle, sua obra nos lembra da verdade incômoda: o corpo é um campo de batalha. E ele, Cronenberg, é seu mais cruel e lúcido cartógrafo.


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