Francisco Brennand e a sua trajetória legendária
O pernambucano Francisco de Paula de Almeida Brennand, é mais conhecido pelo seu trabalho como ceramista. É também um talentoso escultor e artista plástico que desenvolve seu trabalho em diversos suportes. Brennand acreditava ser a cerâmica uma arte utilitária menor, por isso dedicou-se sobretudo à pintura a óleo. Em 1948 na França, deparou-se com uma exposição de cerâmicas do gênio espanhol Pablo Picasso, descobrindo que artistas da Escola de Paris haviam passado pela cerâmica. Na década de 1970, Brennand participou do Movimento Armorial, com seu velho amigo, o escritor Ariano Suassuna. No seu ateliê, instalado nas terras do antigo Engenho (depois Cerâmica) no Recife, estão expostas muitas de suas obras, parte delas a céu aberto em um grande jardim central. “Fui introduzido ao mundo da literatura ao mesmo tempo em que comecei a desenhar e a pintar. Mantenho um diário desde a minha primeira viagem à Paris (fevereiro de 1949) e só depois da sua publicação é que as pessoas poderão auferir a enorme influência da literatura sobre todas as minhas atividades, quer fossem artísticas ou simplesmente no próprio ato corriqueiro de viver. Eu emprenho pelos ouvidos. (…) Todos os homens carregam em si a forma inteira da humana condição. Talvez o artista, sendo um pouco mais inquieto, possa revelar a parte mais obscura da natureza. Aquilo que a todos interessa”, afirma o ceramista.
Como é ser considerado o maior artista vivo do Brasil pela maior parte dos críticos?
Suponho que não existe o maior artista vivo do Brasil. Nem vivo, nem morto. Todos somos herdeiros das cavernas. Desse estranho impulso que levou os homens, ou os iniciados, a desenharem os animais e a sua própria figura sobre a pedra. Uma inquirição que até hoje nos persegue. Artistas e não artistas, qual seja, desvendar o grande Enigma da existência.
Acredita que o artista tem algo de diferente que não é encontrado em outras profissões?
Todos os homens carregam em si a forma inteira da humana condição. Talvez o artista, sendo um pouco mais inquieto, possa revelar a parte mais obscura da natureza. Aquilo que a todos interessa. Essa revelação é feita em função dos outros e não para uso próprio. O argentino Borges [o escritor argentino Jorge Luís Borges 1899-1986] dizia que “O leitor é o autor duplicado”.
Suas esculturas mexem com os desejos mais íntimos das pessoas. O senhor também tem essa percepção?
A sexualidade é um sinal particular de toda e qualquer realidade viva. Minhas esculturas carregam uma pesada carga sexual. Não propriamente erótica (o que pressupõe fascínio e aproximação) e sim uma sexualidade inquieta que vai à procura das “matrizes”, isto é, dos elementos primordiais da reprodução. As coisas são eternas porque se reproduzem. O Universo também se reproduz. As estrelas nascem, vivem e morrem. Eis o grande Enigma.
O senhor tem um grande apreço pelas palavras. De onde vem esse carinho pelas letras?
Fui introduzido ao mundo da literatura ao mesmo tempo em que comecei a desenhar e a pintar. Mantenho um diário desde a minha primeira viagem à Paris (fevereiro de 1949) e só depois da sua publicação é que as pessoas poderão auferir a enorme influência da literatura sobre todas as minhas atividades, quer fossem artísticas ou simplesmente no próprio ato corriqueiro de viver. Eu emprenho pelos ouvidos. “Por tuas palavras serás salvo, por tuas palavras serás condenado.”
Em algum momento de sua trajetória, o seu lado artístico se chocou com o seu lado comercial?
Jamais o mundo comercial se mostrou antagônico ao meu trabalho de artista. O fato da Cerâmica Brennand ter produzido pisos e revestimentos cerâmicos está ligado à própria dinâmica de uma estrutura fabril. Essa estrutura não poderia ser acionada sem que produzisse alguma coisa em escala industrial. Simplesmente eu ficaria tolhido em não aproveitar os fornos túneis de alta temperatura, as prensas automáticas, os secadores, os misturadores, as máquinas de vidração em esteira, etc. Uma vez essa estrutura em movimento produzindo ladrilhos cerâmicos (os mesmos em que pintava os meus murais), encontrei os espaços vazios necessários para realizar meu trabalho de pintor e de escultor. Essa é a história real da Oficina Cerâmica Francisco Brennand. Se há um artista que não está somente na casa dos ricos, sou eu. A maior parte dos murais cerâmicos estão nos edifícios públicos, nas praças, nas ruas… Cito o mural do edifício da Bacardi Export, em Miami, que representa o revestimento total de um edifício (700m2); o mural da Batalha dos Guararapes, localizado no muro externo de um banco, no Recife; o mural “Pastoral”, localizado no Aeroporto Internacional dos Guararapes e o grande Parque de Esculturas, no Cais do Porto.
A arte deve ter um papel social?
O simples fato de um artista revelar a beleza já o credita a uma função social. Além disso, para uma obra de arte, seja pintura ou escultura, demonstrar as dores do mundo não se faz necessário abordar o tema social propriamente dito. A música é uma arte abstrata, no entanto, Frederico Nietzsche [Friedrich Wilhelm Nietzsche, filósofo alemão, 1844-1900] dizia que: “se não houvesse música, a vida humana seria um exílio”.
Algumas obras de alguns artistas contemporâneos são avaliadas em milhões de dólares, como uma caveira cravejada com diamantes do britânico Damien Hirst. Por que o senhor acredita que o mercado de arte hoje seja tão valorizado a esse ponto?
“O mundo moderno sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada.” Esta é uma frase de Oscar Wilde [escritor irlandês 1854-1900] que pecava por sempre ter razão. O valor desta caveira cravejada com diamantes e que alcançou 100 milhões de dólares, poderia valer dez vezes mais e a ainda era pouco. A arte sempre representou os supremos valores do espírito, portanto, não tem preço.
Por que já considerou a cerâmica uma arte utilitária menor?
Não existem só erros individuais. Existem também erros coletivos. O século XIX foi especialista em criar conceitos equivocados como, por exemplo, o progresso, a justiça social, a erradicação das doenças, a ausência das guerras, entre outros. Um desses conceitos a propósito da arte, mencionava uma estranha nomenclatura: artes maiores e artes menores; arte decorativa e arte aplicada. Enfim, tudo que não era pintura a óleo sobre tela ou escultura cortada em mármore de Carrara, era considerado arte menor. Ou seja, se você pintava um quadro sobre madeira, era considerado um retábulo, só admitido na Idade Média; uma escultura em granito ou em outra pedra que não fosse mármore seria algo primitivo; escultura em madeira, nem pensar. Desta forma, toda a arte era rotulada com diferentes graus de nobreza. Uma xilogravura jamais poderia competir com uma pintura a óleo. Uma escultura em marfim ou osso seria uma curiosidade, nunca um objeto de arte-maior. Esses conceitos foram herdados do século XIX por qualquer estudante de arte. Como muito outros, fui presa desse lamentável equívoco. E apesar de ter nascido dentro de um universo cerâmico, viajei a Europa sem nunca ter feito qualquer experimento neste setor. Portanto, qual não foi a minha surpresa quando me deparei em Paris com uma exposição de mais de trezentas cerâmicas de Picasso [Pablo Picasso, pintor, escultor e desenhista espanhol 1881-1973], realizadas entre 1946 e 1949, no sul da França, na cidade de Vallauris.
Em seguida, descobri que todos os grandes pintores da Escola de Paris haviam, de uma maneira ou outra, incursionado pela cerâmica. Inclusive, Gauguin [Eugène-Henri-Paul Gauguin, pintor frâncês 1848-1903], o grande mestre, também fez cerâmica e igualmente esculturas em madeira e xilogravuras.
Uma matéria publicada recentemente, dizia que o senhor se ressentia sobre o desconhecimento da sua obra em pintura e desenho. Fale um pouco mais sobre isso.
Não é propriamente um ressentimento, mas, sim, perplexidade relacionada a minha trajetória de artista mal interpretada.
Qual foi o principal legado que o Movimento Armorial deixou para a geração atual?
O Movimento Armorial é criação do meu amigo Ariano Suassuna. Nos ligava uma grande amizade. Em várias exposições armoriais participei delas com entusiasmo e de livre e espontânea vontade. Contudo, jamais fui um adepto da arte armorial e não posso absolutamente determinar qual o principal legado deste movimento. O pintor Edgar Degas, um mestre da pintura francesa de todos os tempos, participou de várias exposições dos pintores impressionistas, mas, jamais foi um deles. Ele detestava pintar ao ar livre. Sou um artista ligado a tragédia existencial aonde a sexualidade é determinante para o nosso destino. Estou mais ligado a Camille Paglia [Camille Anna Paglia ensaísta e escritora norte-americana], de “Personas Sexuais” do que a Ariano Suassuna.
O documentário “Francisco Brennand” fez um retrato intimista sobre sua trajetória. Como se viu na tela?
Muito bem. Quem não gosta de se olhar no espelho? E o documentário é excelente. Bem dirigido nos seus propósitos e com fotografia de altíssimo nível.
O que ainda não falaram sobre a sua obra e que gostaria que fosse falado um dia?
Seria uma grande presunção pensar que alguém poderia ainda descobrir alguma coisa sobre a minha obra que já não tivesse sido descoberta. No entanto, posso dizer que falta tudo a descobrir.
Qual o maior equívoco que as pessoas dizem quando falam sobre a vida e a obra de Francisco Brennand?
Disse o poeta Carlos Pena Filho [1929-1960] que “A vida me seria contraditória” e, de fato, foi. Quase tudo que foi dito, não passa de um grosseiro equívoco. De outro lado, tudo o que se diz a respeito de um homem, do santo ao canalha, pode e deve ser verdade.
Última atualização da matéria foi há 3 anos
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