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Leila Diniz: a desbocada que chacoalhou tudo

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Em tempos de hashtags e influenciadoras digitais, pensar que uma atriz de 27 anos tenha conseguido, nos anos 60, abalar as estruturas de um Brasil autoritário, machista e moralista é quase um exercício de ficção. Mas não se trata de ficção. Leila Diniz foi real. Intensamente real. E, mesmo mais de meio século após sua morte trágica, continua sendo uma presença viva no imaginário nacional — uma mulher que falou demais, no melhor e mais revolucionário sentido da expressão.

Leila foi um furacão. Atriz de cinema, teatro e televisão, ganhou notoriedade não só pelo talento, mas por uma postura que confrontava as convenções de uma sociedade patriarcal e conservadora. Nascida em Niterói, em 1945, e criada num lar de professores marxistas, desde cedo teve contato com ideias libertárias. Mas o que a tornaria um mito do Brasil moderno não seria apenas sua formação — e sim sua coragem. Leila falava o que pensava, amava quem queria, ria de si mesma e não pedia licença. Se os anos 60 foram um caldeirão de transformações culturais, Leila foi o ingrediente que fez a água ferver.

Sua entrevista ao jornal O Pasquim, em 1969, foi um marco inegável. À época, o Brasil vivia sob a repressão do AI-5, e Leila apareceu falando de sexo, liberdade, maternidade e prazer com uma naturalidade inédita — e explosiva. Foram tantas palavras “proibidas” numa época em que tudo era censurado, que a entrevista virou escândalo. Disse que era possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, que o corpo feminino não era propriedade de ninguém e que mulher também tinha desejo. Não havia precedente. Não havia freio. E isso custou caro. Leila foi afastada da TV Globo, atacada pela imprensa conservadora e perseguida pelo regime militar. Seu nome virou sinônimo de “mau exemplo” nos corredores da moral de plantão.

Mas o que a torna eterna não é apenas a rebeldia. Leila Diniz viveu antes do tempo. Enquanto as feministas brasileiras ainda tateavam espaço nas universidades e nas rodas políticas, Leila encarnava, com a espontaneidade dos que não seguem cartilha, o que viria a ser o feminismo comportamental. Grávida, foi à praia de biquíni — um gesto simbólico que hoje parece banal, mas que em 1971 escandalizou uma nação inteira. Ela não apenas reivindicava o direito à liberdade sexual, como também humanizava a mulher: mostrava que mães, atrizes, jovens e amantes podiam ser tudo isso ao mesmo tempo, sem se desculpar por nada.

A mulher que riu antes de todas

É claro que há limites para o mito. Leila não era engajada nos moldes tradicionais. Não militava por leis, não fundava organizações, não escrevia manifestos. Sua revolução era íntima, pessoal e pública ao mesmo tempo. Isso fez com que muitas correntes feministas tivessem dificuldade em enquadrá-la — um problema que diz mais sobre os moldes do que sobre ela. A verdade é que Leila Diniz abriu caminho com o próprio corpo e com as palavras. Sua linguagem era o escárnio de quem se recusa a ser domesticada.

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A tragédia veio cedo demais. Em 14 de junho de 1972, num voo da Japan Airlines que explodiu ao tentar pousar em Nova Déli, Leila foi uma das 82 vítimas. Voltava da Austrália, onde havia acompanhado o então marido, o cineasta Ruy Guerra , em um festival. Sua morte precoce, aos 27 anos — a mesma idade do mitológico “Clube dos 27” que vitimou Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison — interrompeu uma trajetória que, ainda assim, já havia deixado marcas profundas.

O Brasil perdia uma artista promissora e uma figura pública singular, que não aceitava as amarras impostas à mulher em qualquer instância: afetiva, política ou artística.

Famosa capa da entrevista de Leila Diniz ao anárquico O Pasquim (Foto: Arquivo)
Famosa capa da entrevista de Leila Diniz ao anárquico O Pasquim (Foto: Arquivo)

Mas Leila não morreu, não de verdade. Seu riso debochado ainda ecoa cada vez que uma mulher decide não se calar. Sua imagem grávida de biquíni reaparece toda vez que uma nova mãe se recusa a ser invisibilizada. Seu nome, estampado em centros culturais, escolas e filmes, é um lembrete incômodo — para os que preferem a ordem e o silêncio — de que há sempre alguém pronto a desobedecer com graça.

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Em um Brasil que ainda luta contra retrocessos em questões de gênero, memória e liberdade, lembrar de Leila Diniz é mais do que um tributo: é um exercício de reconhecimento histórico. Ela foi desbocada, sim. E, em um país que se calava por medo, ser desbocada era o mais nobre dos atos políticos.


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