A enigmática Serra da Cantareira
A Serra da Cantareira continua pairando sobre São Paulo como um fantasma verde — ao mesmo tempo, majestosa, ancestral e, não raro, fatal. Para quem vive na metrópole, ela é um pulmão ecológico, reservatório de água, área de lazer; mas para a geografia, a geologia e o acaso, ela é uma mistura de morro traiçoeiro, neblina — e armadilha aérea. A Cantareira não é “apenas floresta”, mas palco de dramas ruidosos, acidentes aéreos e lições duras sobre arrogância humana. Vale revisitar esses episódios com a devida reverência e ironia.
Originalmente, “Cantareira” referia-se às “cantaréias” — suportes onde se colocavam cântaros de água para abastecer o nascente núcleo urbano de São Paulo no século XVIII. Com o tempo, a serra passou a carregar o papel de abastecer a cidade em escala industrial: reservatórios, mananciais, nascentes. Geologicamente, a Serra está assentada sobre rochas antigas, relevo acidentado, vegetação remanescente da Mata Atlântica — uma cápsula natural preservada por milênios e agora apertada pelas bordas da expansão urbana. Ironicamente, essa selva quase mítica se tornou cortada por estradas sinuosas, loteamentos, trilhas improvisadas — como se a modernidade tentasse domar algo que resiste desde bem antes de sermos “civilizados”.
“Para quem gosta de romantismo com pitadas de realismo bruto, a Serra da Cantareira permanece um monumento vivo: bela, resistente, contraditória, mortal. Não porque queira, mas porque é parte da natureza — e da história — de São Paulo.”
Imaginem a cena: neblina grossa, curvas fechadas, precipícios disfarçados pelo verde — e, de repente, um avião rasgando o silêncio do bosque rumo à tragédia. Em 2 de março de 1996, um Learjet 25D colidiu contra a Serra da Cantareira no meio da noite. A neblina cooperou com a tragédia: visibilidade quase nula, voo sobre morro — resultado: nove mortos, incluindo toda a banda Mamonas Assassinas, ícone pop da década de 1990.
Outra tragédia marcante ocorreu em 2 de dezembro de 2019: um Beechcraft King Air C90GT caiu nas proximidades da Estrada da Roseira com a Estrada da Santa Inês, em mata fechada, exigindo operação de resgate complexa. O piloto morreu; o acidente expôs novamente a combinação explosiva entre relevo traiçoeiro, mau tempo e pressão operacional.
E, ainda antes desses episódios, a Cantareira já havia marcado a história do esporte brasileiro com requintes trágicos. Em 18 de março de 1977, o piloto de Fórmula 1 José Carlos Pace — um dos nomes mais promissores do automobilismo nacional, vencedor do GP do Brasil de 1975 e parceiro de pista de Emerson Fittipaldi — morreu quando o monomotor em que estava caiu sobre a serra, próximo a Mairiporã. A morte abrupta, ainda jovem, reforçou tanto o mito do piloto “atrapalhado pelo destino” quanto o imaginário sombrio da Cantareira como entidade geográfica que cobra tributos. O autódromo de Interlagos, rebatizado com seu nome, tornou-se homenagem e epitáfio — mas a serra ficou com a história.
Esses acidentes não são meras estatísticas; são capítulos de horror anunciados por uma geografia que sempre avisou: “aqui não é planície”. A combinação de relevo acidentado, mau tempo, neblina, ventos imprevisíveis e descuido humano (imprudência, sobrecarga, erros de navegação) transforma a Cantareira em armadilha invisível. E, ironicamente, quanto mais o progresso insiste em usar o espaço aéreo — helicópteros, táxis aéreos, aviões particulares — mais se reforça o caráter mítico-macabro da serra.
Entre o mito e o apelo — o realismo trágico da Cantareira
Além dos desastres aéreos, a Cantareira guarda curiosidades que mesclam lenda, ciência e memória popular. Por exemplo: representa uma das maiores áreas contínuas de Mata Atlântica remanescente dentro de uma megalópole — algo quase implausível. A vegetação densa protege nascentes, regula microclimas, abriga fauna ameaçada — e resiste ao cinza urbano. Quem caminha por ali muitas vezes fala de “energia diferente”, névoas que descem das colinas como fantasmas, solo úmido e cheiro de terra e folhas — sensações que lembram aos mais místicos que há algo ancestral e teimoso sendo preservado.
Porém, o encanto convive com o descaso: invasões, lixo, trilhas improvisadas, queimadas, poda clandestina, especulação imobiliária nas bordas. Ao mesmo tempo que a serra aparece em campanhas de “consciência ecológica” ou “turismo verde”, ela é ameaçada — e mostrada, ao mesmo tempo, como espaço de lazer e lucro. A ambivalência expressa a contradição paulistana: querer natureza sem sair do concreto.
A mesma serra que acolhe o canto dos pássaros também viu o rugido dos motores e o estrondo do metal contra o morro. Cada acidente aéreo é uma ferida aberta, galvanizada pela névoa, pelo relevo, pela pressa humana. Tragédias como a do Learjet de 1996, a do King Air de 2019 e a do monomotor que matou José Carlos Pace em 1977 são lembretes de que nem o glamour de um jato, nem a urgência de um piloto de elite, nem a pressa de voltar pra casa afastam as leis da geografia — ou da fatalidade.

Para quem gosta de romantismo com pitadas de realismo bruto, a Serra da Cantareira permanece um monumento vivo: bela, resistente, contraditória, mortal. Não porque queira, mas porque é parte da natureza — e da história — de São Paulo. Quem sobe suas trilhas, quem sobrevoa seu ar, quem bebe sua água, devia olhar para ela com reverência: a Cantareira, afinal, não é um parque para selfies — é um relicário de sobrevivência, sombra e memória. E, convenhamos, essas coisas raramente saem baratas.
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