Os Golpes de Estado no Brasil
Há uma tradição no Brasil que não cabe em museus, nem em livros de história didáticos demais: a arte de tentar um golpe. O país que exporta samba, soja e escândalos também é exportador de conspirações palacianas, quarteladas mal ensaiadas e rupturas constitucionais travestidas de “salvação nacional”. Desde a República da Espada até os arranjos mais recentes — que misturam fake news, pastores do apocalipse e generais aposentados com saudade da farda —, o Brasil cultiva o golpismo como quem rega uma planta tóxica no quintal e ainda acha que ela dá flores patrióticas.
Os golpes brasileiros têm um DNA peculiar: nunca se assumem como tal. O de 1889 foi vendido como “Proclamação da República”, embora tenha sido uma derrubada militar improvisada contra um imperador adoentado e distraído. O de 1930 foi uma “Revolução”, não uma quartelada para tirar o poder das oligarquias paulistas. O de 1964 foi “movimento democrático”, uma ironia que até os livros de história têm vergonha de sustentar. E o de 2016, a “nova era moralizante”, mostrou que no Brasil nem é preciso tanque nas ruas para mudar o regime — basta um PowerPoint e uma sessão televisionada no Congresso com deputados citando Deus e a família enquanto apunhalam a democracia pelas costas.
“Talvez o verdadeiro golpe de Estado no Brasil seja contra a memória. Esquecemos rápido demais. O autoritarismo vira folclore, o ditador ganha documentário, o torturador é promovido a herói de rede social.”
Golpe no Brasil é performance, não doutrina. É espetáculo encenado com civismo de opereta. Os militares surgem de uniforme engomado, os civis de terno patriótico, e todos juram amor à Constituição minutos antes de rasgá-la. Em 2023, até tentaram repaginar o roteiro, com manifestantes fantasiados de patriotas invadindo prédios públicos e tirando selfies no trono do Supremo. Não deu certo — faltou timing, coordenação e talvez um roteirista mais inspirado. O Brasil é o país onde até o golpe sofre de amadorismo tropical.
Por outro lado, não se pode negar a inventividade: em nenhuma outra nação o golpismo consegue se reinventar com tanta cara de legalidade. O “impeachment” travestido de limpeza ética, o “intervenha, mas dentro da lei”, o “nós só queremos ordem” — tudo soa institucional, até que o caos se instala. O Brasil é especialista em golpes com verniz democrático, aqueles em que as elites dizem que é “para o bem do povo”, mas o povo só descobre o estrago quando a conta chega: censura, repressão, inflação e um longo silêncio institucional.
Golpe como método, hábito e tradição
Há quem diga que o Brasil sofre de um trauma de autoridade. E talvez haja algo de psicanalítico nisso: o país repete o gesto de derrubar quem manda para, logo em seguida, entregar o poder a outro que promete ser “diferente”, mas é igual. O ciclo é quase religioso: deposição, arrependimento, nostalgia e novo salvador. A democracia vira uma espécie de relação abusiva com o poder — o povo apanha, perdoa e volta a acreditar.
Os militares, por sua vez, nunca se afastaram completamente da cena. Desde 1889, estão ali, nas sombras, prontos para “salvar a pátria” sempre que a política civil desagrada. Ora comandam de farda, ora de terno e gravata, ora como “consultores estratégicos”. No fundo, o Brasil nunca resolveu a tensão entre quartel e urna. Vive com um pé na caserna e outro na praça pública — tropeçando nas próprias instituições.
O curioso é que os golpes brasileiros não são apenas militares ou políticos; são também morais, culturais, até midiáticos. O poder se rearranja por dentro das instituições, com narrativas fabricadas e discursos de “redenção nacional”. As redes sociais amplificaram o fenômeno: hoje, o golpe se organiza em grupos de mensagens, não em quartéis. Os conspiradores usam emojis e citações bíblicas em vez de baionetas. E o inimigo é sempre o mesmo — o “sistema”, que ninguém sabe exatamente o que é, mas todo mundo quer destruir.
Mesmo assim, há algo de tragicômico em nossa vocação para o autoritarismo. O país que mais fala em “liberdade” é o que mais flerta com a censura. O povo que mais desconfia do governo é o que mais clama por um líder “forte”. O mesmo brasileiro que grita contra a corrupção é capaz de eleger um corrupto confesso, desde que ele fale grosso contra “os comunistas”. A ironia é que o Brasil sonha com ordem, mas só consegue confusão.
Talvez o verdadeiro golpe de Estado no Brasil seja contra a memória. Esquecemos rápido demais. O autoritarismo vira folclore, o ditador ganha documentário, o torturador é promovido a herói de rede social. E assim seguimos, rindo das próprias feridas, achando que política é apenas novela das oito com generais no elenco de apoio.
No fim das contas, os golpes brasileiros são menos sobre tanques e mais sobre cultura política — ou a falta dela. São o espelho de um país que ainda não decidiu se quer ser república, império, condomínio fechado ou reality show. E talvez seja justamente isso que os torna tão nossos: o golpe, no Brasil, é sempre uma confusão entre tragédia e comédia. A democracia, por aqui, sobrevive não por força, mas por teimosia — como aquele personagem que apanha no último ato e ainda volta para o palco, dizendo: “Agora vai.”

Mas, claro, no Brasil, “agora vai” é sempre o prelúdio de mais um golpe disfarçado de recomeço.
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