As empresas B e o consumo ético
O capitalismo, cansado de apanhar na imagem, decidiu passar um hidratante de consciência. E, de repente, surgiram as “empresas B”, essas criaturas supostamente híbridas que combinam lucro e propósito, eficiência e benevolência, performance e ética — ou, nos termos mais sedutores, “negócios que equilibram resultado econômico com impacto social e ambiental”. Na teoria, uma espécie de renascimento moral corporativo; na prática, uma tentativa bastante sofisticada de conciliar ambição financeira com um verniz de virtude. Porque, sejamos francos, ninguém vira santo no CNPJ sem esperar retorno no balanço.
O discurso do “consumo ético” alimenta esse universo. O consumidor, exausto de ser cúmplice do desastre climático e da exploração trabalhista, quer dormir com a sensação de que comprou algo que salva o planeta, protege crianças e dá abraço em árvore. As empresas B garantem ser essa ponte: você compra a camisa, a granola, o software, e automaticamente participa da mudança do mundo. É o marketing da redenção. E funciona. Afinal, a culpa contemporânea tem poder de compra. O dinheiro não compra felicidade, mas pode comprar senso de responsabilidade social — embalado em papel reciclável e com selo de auditoria.
“Empresas B, com seus defeitos e contradições, são talvez a primeira tentativa sistêmica de inserir ética no núcleo de um modelo de negócios, e não apenas no rodapé do relatório de marketing. Podem ser limitadas, elitistas, performáticas, mas movem a fronteira do possível.”
A certificação B opera como um ritual de batismo, com métricas, avaliações e relatórios. O negócio precisa provar que paga salários decentes, se preocupa com diversidade, recicla resíduos e tem governança transparente. É um manual ESG mais austero, um catecismo do capitalismo regenerativo. O problema é que, na vida real, o sistema depende muito mais de storytelling do que de transformação estrutural. “Fazemos bem ao mundo” virou slogan, KPI e isca para influenciadores. A revolução, quando muito, aparece em post patrocinado cheio de gente sorridente plantando mudas.
Por isso, as empresas B vivem o paradoxo: precisam ser “éticas o suficiente” para seduzir o consumidor progressista, mas “rentáveis o bastante” para não assustar o investidor. A balança moral tem limite de peso. Propósito dá ibope, mas quem paga a conta continua sendo o velho lucro. Não existe almoço grátis, muito menos almoço regenerativo. A ética, quando entra no Excel, precisa justificar seu ROI com a mesma frieza de um CFO treinado em meritocracia.
O capitalismo acredita em ética até o custo superar o benefício
Seria injusto, porém, tratar todo o movimento como um delírio coletivo. Há empresas que realmente mudam práticas, reformam cadeias produtivas, tratam trabalhadores como seres humanos e não apenas como linhas de custo. A certificação, ainda que imperfeita, força perguntas desconfortáveis, cria pressão pública e estabelece padrões mais ambiciosos do que “não usar trabalho escravo na ilegalidade”. A escala pode ser limitada, mas a relevância não é nula. A arte é diferenciar o que é transformação e o que é encenação.
O consumidor, por sua vez, tornou-se um personagem curioso: quer consumir sem culpa, mas não quer consumir menos. Quer marcas que salvem o planeta, mas não quer abrir mão do conforto. Quer pagar mais por ética, mas também quer cashback. O consumo ético tornou-se uma forma de penitência premium. O luxo contemporâneo é ter moral no carrinho de compras. Só que ética de varejo tem prazo de validade: se a inflação aperta, o discurso sustentável vira supérfluo. Virtude custa caro; carne moída, não.
E há o risco mais óbvio — o de transformar causas profundas em slogans descartáveis. Questões ambientais, raciais, trabalhistas viram “conteúdo”. O mundo real continua queimando, mas a gestão de marca está impecável. A moda não é salvar o planeta; é parecer interessante enquanto ele desaba. Empresas B, em alguns casos, funcionam como um “powerpoint de consciência”, onde métricas e indicadores ocultam a permanência de contradições básicas: extração, desigualdade, desperdício, exploração.
É tentador imaginar que o capitalismo pode se autossalvar com certificação e marketing. Mas ética sem conflito é neutra demais para ser revolucionária. Governança sem redistribuição é elegante, mas não subversiva. E, enquanto isso, o mercado trata o “propósito” como vantagem competitiva. A virtude virou estratégia de posicionamento, nicho, estética. Não por acaso, a “empresa boa” raramente é a que atende necessidades básicas; normalmente, é a que vende bem-estar, saúde, lifestyle — o novo opium do povo com cartão de crédito.
Nada disso, contudo, invalida a importância de construir modelos alternativos. Empresas B, com seus defeitos e contradições, são talvez a primeira tentativa sistêmica de inserir ética no núcleo de um modelo de negócios, e não apenas no rodapé do relatório de marketing. Podem ser limitadas, elitistas, performáticas, mas movem a fronteira do possível. Se o capitalismo tem cura — o que é discutível — talvez comece por mecanismos assim: pequenos, imperfeitos, mas com capacidade de contágio.

Até lá, seguimos nessa comédia trágica: CEOs prometendo salvar o mundo, consumidores acreditando, consultores faturando, acionistas calculando, ambientalistas abortando crises nervosas e o planeta torcendo para que a moda dure mais do que duas coleções. Porque, no fundo, ética nunca foi sobre consumo, mas sobre renúncia. E renúncia, em tempos de Black Friday perpétua, é o produto mais raro do mercado.
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