Dr. Fantástico: insanidade do ontem e hoje
Lançado em 1964, Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), de Stanley Kubrick, permanece como um dos filmes mais audaciosos e perturbadores da história do cinema. Uma sátira feroz da Guerra Fria, o longa transforma o medo existencial da aniquilação nuclear em comédia de humor negro, algo que parecia impensável à época — e, de certo modo, ainda hoje.
Baseado livremente no romance de Peter George, Red Alert, o filme acompanha a cadeia absurda de eventos desencadeada por um general americano paranoico que decide iniciar um ataque nuclear contra a União Soviética, acreditando que os russos estão contaminando “os preciosos fluidos corporais” dos americanos. A premissa é cômica por fora, mas revela um núcleo aterrador: um mundo à beira da destruição, movido por ideologia, incompetência e automatismos tecnológicos. Kubrick, como de costume, enxergou além do escândalo superficial e mergulhou no absurdo da lógica militar-industrial. A insanidade não está apenas nos personagens: ela está institucionalizada.
“O filme de Kubrick, ao exagerar esse traço, acaba se tornando um documento histórico não apenas do que foi o século XX, mas do que ainda somos no século XXI.”
O que impressiona ao rever Dr. Fantástico é sua persistente atualidade. Se o contexto da Guerra Fria terminou oficialmente em 1991, seus resíduos psicológicos e estruturais permanecem. A linguagem nuclear voltou a ganhar destaque com os conflitos envolvendo Rússia, China, Irã e, mais recentemente, as tensões cada vez mais acirradas entre Índia e Paquistão. Mesmo os Estados Unidos, sob governos polarizados, flertam novamente com a retórica bélica. O botão vermelho — símbolo máximo da disfunção burocrática em Dr. Fantástico — ainda existe, apenas envolto em protocolos mais sofisticados (e, talvez, mais opacos).
Kubrick opta por expor o absurdo da guerra com ferramentas do riso, não da tragédia. Peter Sellers, em performance tripla, é o centro desse artifício: interpreta o capitão Mandrake, o presidente Muffley e o próprio Dr. Strangelove — um ex-nazista que personifica o grotesco vínculo entre ciência, poder e ideologia. O personagem é uma caricatura e, ao mesmo tempo, um espelho. Seu braço mecânico que insiste em fazer a saudação nazista é cômico, sim, mas também profundamente perturbador. Representa um corpo (e um sistema) que não consegue mais controlar seus impulsos destrutivos.
A comédia como ferramenta de diagnóstico
O humor, no entanto, não é anestésico. É diagnóstico. O riso em Dr. Fantástico é o riso do desespero. A risada amarga diante do que se entende ser real demais para ser ignorado. O final icônico — a sequência de bombas nucleares caindo ao som de We’ll Meet Again, de Vera Lynn — ainda hoje congela o espectador. Não há redenção, não há solução: só um ciclo de destruição autoinfligida, disfarçado de decisão racional.
Hoje, vivemos em um mundo onde tecnologias de destruição são ainda mais avançadas, e onde o controle de narrativas geopolíticas se dá em tempo real, com Inteligência Artificial, fake news e guerras de informação. A lógica de Dr. Fantástico evoluiu, mas não desapareceu. O que antes era a caricatura do general insano que agia por paranoia, hoje pode muito bem ser um sistema algorítmico que toma decisões militares com base em dados enviesados. A substituição do humano pelo autômato, presente já em 1964 na famosa Doomsday Machine, apenas ganhou novos contornos.
No campo político, a ideia de que figuras no poder possam agir por impulso, vaidade ou delírio estratégico já não parece absurda — ao contrário, é quase banal. O filme de Kubrick, ao exagerar esse traço, acaba se tornando um documento histórico não apenas do que foi o século XX, mas do que ainda somos no século XXI.

Num tempo em que a ameaça nuclear não desapareceu, apenas mudou de formato — com armas hipersônicas, sabotagens cibernéticas e tensão entre potências renovadas —, Dr. Fantástico permanece insubstituível. Não apenas como obra cinematográfica brilhante, mas como alerta. Sua principal lição, irônica e brutal, é que o verdadeiro inimigo talvez não esteja fora, mas dentro: na estrutura das decisões, na linguagem do poder, na confiança cega nas máquinas, e, sobretudo, na recusa coletiva em encarar o ridículo trágico da nossa condição moderna.
Talvez essa seja a razão pela qual, mais de 60 anos após seu lançamento, Dr. Fantástico ainda nos faz rir. Mas rimos menos da loucura dos outros — e mais da nossa própria incapacidade de aprender com ela.
Última atualização da matéria foi há 3 semanas
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