Ibrahim Traoré: o maior líder africano?
Em um continente onde a liderança política costuma alternar entre o autoritarismo disfarçado e a instabilidade crônica, Ibrahim Traoré, presidente de transição de Burkina Faso desde setembro de 2022, desponta como uma figura singular. Jovem, carismático e profundamente enraizado na retórica de soberania nacional, ele vem conquistando admiradores dentro e fora da África, especialmente entre os que rejeitam o modelo de democracia liberal imposto pelas antigas potências coloniais. Mas será que Traoré é de fato o maior líder africano da atualidade — ou apenas mais um militar com vocação messiânica e prazo de validade incerto?
Traoré chegou ao poder aos 34 anos, após liderar um golpe de Estado que depôs o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, também ele fruto de outro golpe, ocorrido apenas oito meses antes. A justificativa foi a mesma de sempre: a incapacidade do governo anterior de conter o avanço do jihadismo que assola o Sahel. De lá para cá, o capitão Traoré tem apostado em uma agenda fortemente nacionalista, com forte apelo popular. Expulsou as tropas francesas do país, denunciou acordos militares com a antiga metrópole e intensificou a retórica contra a ingerência estrangeira — não apenas da França, mas também das Nações Unidas e, em menor escala, dos Estados Unidos.
Essa guinada é acompanhada por medidas simbólicas e práticas. O governo burquinense tem incentivado o recrutamento de civis para grupos de autodefesa e procurado fontes alternativas de cooperação, principalmente com a Rússia. A presença do grupo paramilitar Wagner, embora nunca oficialmente admitida por Ouagadougou, é cada vez mais evidente, alimentando receios sobre o caminho que o país vem trilhando. Em nome da luta contra o terrorismo, os direitos humanos têm sido relativizados, com ONGs sendo expulsas e jornalistas enfrentando crescentes restrições. Ainda assim, uma parcela considerável da população parece confiar no jovem capitão — ou, ao menos, enxergar nele uma alternativa concreta ao caos que marcou as gestões anteriores.
O sucesso de Traoré em consolidar sua imagem como símbolo de uma nova África não deve ser subestimado. Ele dialoga diretamente com sentimentos profundos no imaginário coletivo do continente: a rejeição ao neocolonialismo, a frustração com elites locais corruptas e a busca por autonomia real. É nesse ponto que sua liderança se destaca de outras figuras militares recentes, como Assimi Goïta no Mali ou Mamady Doumbouya na Guiné. Traoré parece mais articulado, mais ambicioso e, ao menos por enquanto, mais eficaz em galvanizar apoio popular e regional.
Entre o símbolo e o pragmatismo
A criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES), formada por Burkina Faso, Mali e Níger, é um exemplo dessa articulação. O bloco, informalmente apelidado de “Eixo do Sahel”, rompeu com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) após esta impor sanções aos regimes militares. Em janeiro de 2024, os três países anunciaram formalmente sua saída da CEDEAO, alegando que a organização servia aos interesses do Ocidente. Traoré, com seu discurso cortante e sua juventude, tornou-se o rosto mais reconhecível desse novo agrupamento geopolítico.
Mas o carisma não basta para sustentar um país sitiado por grupos armados e imerso em uma crise humanitária silenciosa. O número de deslocados internos em Burkina Faso já ultrapassa 2 milhões de pessoas, segundo dados do Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários (OCHA). A insegurança alimentar é endêmica e a economia, frágil, depende largamente da mineração e da ajuda internacional — esta última, cada vez mais escassa. O governo de transição, que inicialmente prometia organizar eleições até julho de 2024, adiou indefinidamente o retorno à ordem constitucional, alegando que “não se pode votar sob ameaças de bombas”.
A tentativa de projetar um novo modelo africano de liderança — soberano, patriótico, sem o verniz liberal — enfrenta contradições profundas. O afastamento das instituições internacionais não garante, por si só, soluções duradouras para os problemas estruturais de Burkina Faso. E, por mais que a presença russa ofereça algum alívio militar imediato, ela não substitui os investimentos em infraestrutura, educação ou saúde. O risco é que o país caminhe para uma espécie de “autoritarismo securitário”, no qual a força do Estado se expressa apenas por meio das armas — e o apoio popular, por mais genuíno que seja, seja insuficiente para sustentar essa arquitetura no longo prazo.

No plano simbólico, Ibrahim Traoré pode, sim, ser visto como uma das figuras políticas mais impactantes do continente africano. Mas no plano prático, o que define um grande líder é sua capacidade de transformar símbolos em políticas, discursos em melhorias concretas, e poder em estabilidade. O tempo — e não apenas os slogans revolucionários — dirá se ele será lembrado como libertador ou apenas como mais um militar que confundiu autoridade com liderança.
Até lá, a pergunta permanece aberta.
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