“O Inquilino”: de Polanski via Topor
Em 1976, Roman Polanski levou às telas uma adaptação sombria e inquietante do romance Le Locataire Chimérique, de Roland Topor, resultando em O Inquilino (The Tenant). Quase cinquenta anos depois, a obra permanece como um dos mais perturbadores retratos cinematográficos da alienação urbana e da paranoia individual. Não é um filme para todos os públicos — e talvez nem queira ser. É uma peça desconfortável, claustrofóbica, que gradualmente afasta o espectador da lógica convencional, mergulhando-o em um espiral psicológico próximo ao pesadelo. Revisitar esse filme hoje, em 2025, revela como ele ainda fala com força a um mundo cada vez mais atravessado por ansiedade e deslocamento.
Na trama, Polanski não só dirige, mas interpreta o protagonista Trelkovsky, um homem reservado que aluga um pequeno apartamento em Paris. Logo descobre que a antiga inquilina, Simone Choule, havia tentado suicídio pulando da janela. O apartamento, as paredes, os vizinhos — tudo começa a conspirar contra sua sanidade. À medida que Trelkovsky mergulha em desconfiança crescente, o espectador acompanha o esfacelamento de sua identidade, conduzido por um roteiro que se equilibra entre o real e o imaginado.
“É importante lembrar que Roland Topor, o autor do livro, era também conhecido por seu humor ácido e surreal. Embora o filme mantenha o tom sombrio, há momentos breves onde a absurdidade quase cômica emerge.”
O romance original de Topor já carregava essa atmosfera de despersonalização kafkiana, mas Polanski, através de seu domínio da linguagem visual, eleva o material a um patamar quase opressivo. Poucos cineastas conseguiram retratar tão bem o poder corrosivo da solidão em um ambiente urbano. O prédio onde Trelkovsky mora é um personagem em si: opressivo, decadente, tomado por figuras que variam entre o grotesco e o meramente indiferente. O horror não vem de monstros sobrenaturais, mas do simples fato de habitar um espaço hostil onde cada olhar é um julgamento silencioso.
O que torna O Inquilino relevante até hoje é sua capacidade de capturar uma sensação universal: a perda progressiva do sentido de pertencimento. Ao longo do filme, o protagonista começa a incorporar, aos poucos, características da antiga moradora, até questionar sua própria identidade. Seria ele vítima de uma conspiração dos vizinhos? Ou estaria enlouquecendo lentamente sob o peso de sua solidão?
Paranoia, identidade e a cidade como inimiga
Essa ambiguidade é o motor do filme. Polanski não oferece respostas fáceis. Ele propõe uma narrativa circular, marcada por repetições e por cenas oníricas que deixam o espectador tão desorientado quanto Trelkovsky. O horror aqui não é o susto — é o desconforto contínuo, a sensação de que a própria identidade pode ser um terreno frágil.
Não à toa, muitos críticos associam o filme ao conceito de Kafka, especialmente em O Processo, onde a opressão institucional e social é tão impessoal quanto sufocante. Mas há também ecos de Repulsa ao Sexo e O Bebê de Rosemary, duas obras anteriores de Polanski que exploram o terror psicológico com protagonistas em ruínas. Em O Inquilino, essa lógica atinge um ápice desconcertante, com Polanski colocando a si na pele da vítima.
É importante lembrar que Roland Topor, o autor do livro, era também conhecido por seu humor ácido e surreal. Embora o filme mantenha o tom sombrio, há momentos breves onde a absurdidade quase cômica emerge — principalmente nos encontros sociais embaraçosos ou na maneira como pequenos gestos ganham proporções ameaçadoras. Polanski, porém, opta por suprimir grande parte desse humor, deixando o espectador preso em uma experiência sufocante e sem alívio.
Em termos técnicos, a fotografia de Sven Nykvist, colaborador habitual de Ingmar Bergman, acrescenta um toque elegante à decadência do cenário. Cada enquadramento é meticulosamente composto para ressaltar o isolamento de Trelkovsky, e o design sonoro amplifica os ruídos cotidianos transformando-os em ameaças sutis.

No contexto de hoje, O Inquilino ecoa de maneira ainda mais estranha, especialmente após anos de pandemia e isolamento urbano. O sentimento de desconexão social, de ser um estranho na própria vizinhança, não é mais exclusivo de personagens perturbados em ficções europeias dos anos 1970 — tornou-se um traço comum em muitas grandes cidades contemporâneas.
O Inquilino pode não ser o trabalho mais conhecido de Polanski, mas talvez seja seu filme mais radical em termos de angústia existencial. Um filme que exige paciência, entrega e que, ao final, não oferece catarse — apenas o silêncio incômodo de quem percebe que sua identidade pode ser tragada pelo ambiente ao redor. Um clássico menor, mas um clássico necessário.
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