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Oscar Araripe fala da salvação pela arte

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Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais em 1968 pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pintor e escritor Oscar Araripe, foi eleito para o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO), e militou na Ação Popular (AP). Foi anistiado pelo Governo brasileiro em 2012 pelas punições sofridas na Ditadura Cívico-militar de 1964-88. Foi jornalista cultural no Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Última Hora. Escreveu China, o Pragmatismo Possível, 1974. Editou, com Augusto Rodrigues, o jornal Arte e Educação. Autor da trilogia literária “Maria, Marta e Eu”, sua obra foi analisada por Antônio Houaiss, Eduardo Portella, José Paulo Moreira da Fonseca e Márcio Souza. Sua obra de pintura e desenho, “Nova, Alegre e Vivaz”, mereceu a atenção crítica de Frederico de Moraes, Milton Ribeiro, Jean Boghici, Sérgio Rouanet, Luiz Galdino, Mário Margutti, Fernando Lemos, Tertuliano dos Passos, Marylka Mendes, Oscar D’Ambrosio, José Roberto Teixeira Leite, Pierre Santos, Wilson Lima e Gustavo Praça. Em 2015 foi agraciado com a Medalha Tiradentes, da Alerj, maior condecoração do Estado do Rio de Janeiro e também com a Medalha da Comenda da Resistência Cidadã, ofertada anualmente por ocasião do Dia Nacional da Liberdade, a 11 de novembro, dia do nascimento de Tiradentes, pela Alumni/Faculdade Nacional de Direito.

Oscar, em uma certa oportunidade, você afirmou que a arte, em si, é social. E o artista brasileiro de modo geral, tem essa mesma consciência, ou seja, de que ele faz parte de um plano social?

Não só a Arte, não só o humano, mas tudo que vive é social, se organiza, interage socialmente. Mesmo o ser solitário está inserido em seu contexto, corrobora o social. Arte viva é, portanto, arte social, sempre. Ou seja, na Arte o que importa é se tem vida ou não. Se tiver vida estamos na Arte e no social. Arte morta é a que pretende ser política antes de ser Arte. A Arte viva começa e termina na arte e tem eficácia política. Ou seja, quanto menos intenção social mais política é a Arte. Na verdade, fora da Arte não há solução, ela que a tudo redime e dá direção. A arte, portanto, é a melhor política, e o pincel a melhor arma. Sonho com a boa arte do tempo da liberdade. Quanto mais Arte mais política. Julgo que o artista deve ser político como cidadão, não como artista. Se assim for, sua arte terá sempre grande valor político, e mais que isso, será sempre revolucionária, subversiva. Ser pintor, por si só, já é um ato político, pois, implica em ser poeta e nada mais político que ser poeta. Hoje, revolução, em Pintura, e mesmo fora dela, é pintar um novo jarro de flores. Nada mais do que isso. O que está ocorrendo, no entanto, é uma utilização do artístico com fins sociais, políticos. Ou seja, perde a Arte e perde a Política. O social resolve-se com investimento, com educação. É claro que o sol nasceu pra todos e que todos devem ter acesso à Arte e à Cultura. Mas esse acesso se faz com a distribuição da riqueza e com a valorização institucional da Cultura. Mais que isso: A Arte, o direito à Arte deve ser um direito fundamental, garantido pela Constituição e pela realidade. A Arte, como a sociedade, tem dois grandes inimigos: o indivíduo, que impede o surgimento da pessoa, na plenitude de sua dignidade, e o capitalismo, hoje em fase suicida e que nos leva a todos ao precipício.

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Você já trabalhou como jornalista cultural em certa fase da sua vida. Como vê o jornalismo cultural que é praticado em nosso país atualmente?

Um horror. Não vejo jornalismo cultural. Vejo jornalismo de entretenimento. E mesmo assim apartado, matéria paga ou publicada com tráfico de influência, num cenário de grande inversão de valores. Nenhum jornal brasileiro sequer pensou em ter um editorial cultural, permanente, ao lado do editorial político. Existem casos isolados, como o seu, que está reunindo um grupo notável de entrevistados. Mas, na grande mídia o que se vê é um deslavado entreguismo cultural. Vergonhoso. Sabotagem cultural, pra não dizer outra coisa. Mas digo: é crime de lesa-pátria. Primeiro entra a Arte, depois a Cultura, simultaneamente, e então a Economia domina, pois, o povo já engoliu a ideologia do dominador, já está armadilhado, entretido. O dominador mora ao lado. A rigor, nesta fase suicida do capitalismo, já não existe economia e sim finanças, dinheiro. Pior, dinheiro falso. O mundo está cheio de ouro dos tolos, de pirita. Você sabe, o grande crítico é o crítico do jornal grande. Mas, não existe mais crítico, só jornal grande. O dinheiro, as agências de notícias do dinheiro falso corrompem os jornalistas preguiçosos. De tanto entreterem acabaram entretidos. Falta cultura pessoal, independência, para que possa haver crítica. Em verdade, a crítica não interessa aos donos dos jornais e tevês. Ademais, a notícia artística e cultural internacional vem “de graça”, em sucessivas avalanches por sobre as redações brasileiras. Informação cultural e artística custa dinheiro. O Brasil não produz informação cultural e as redações têm preconceito quanto às poucas que aqui são produzidas. Complexo de vira-latas, em cabeças de dálmatas abobalhados. Importam estética, importam ideias, importam tudo que o pacote internacional dá, aos montes. É só repetir, replicar. Repliquemos, que é o que temos. E o que temos de bom não é nosso. Arrotam-nos uma Manhattan Connection quando o Brasil anseia por uma Conexão de Tiradentes. Até, e principalmente, os governos e as entidades culturais, entregam-se a esse delírio entreguista de replicação. Está certo que a Arte é universal e que o sol nasceu pra todos, repito, mas, o fato é que nossa Arte e nossa Cultura estão na sombra. Mostras e mais mostras são mostradas, do belo Miró [Joan Miró, escultor, gravurista e pintor espanhol, 1893-1983], do belo Picasso (Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol, 1881-1973], do belo Rodin (Auguste Rodin, escultor francês, 1840-1917]… Mas, cadê os nossos belos impressionistas? Onde estão os nossos belos modernos? Onde estão os artistas que não se enquadram em movimento nenhum? Cadê a nossa realidade? Onde está a realidade pessoal do artista? Enfim, impuro tempo esse do desbragado reboquismo cultural. Mas, animem-se, não se desesperem. Este homem não é o Homem. É apenas um dos homens. Novos homens virão, até que as condições para o Homem pessoalizado surja.

Sim. A manipulação política da Arte é total e ilimitada. É a bomba de hidrogênio da globalização. Em seu nome, à simples referência de seu nome, ficamos surdos; isto é, mudos. Como ser contra uma exposição de Picasso? Mas, o morto está dentro do belo caixão e o crime é geral, mesmo que uma boa arte o maquie. Pagamos, e caro, para não termos arte e cultura brasileiras visíveis. E, ainda mais que a Arte nossa, estamos matando a Arte pessoal, o artista. E aqui está o cerne da questão. A falta de crítica, capaz e isenta, nas mídias e nas universidades, está matando a pessoalidade do artista, impedindo que ela nasça e floresça. Tentam nos vender que tudo é Arte. Lembra-me a frase de Champollion [Jean-François Champollion, linguista e egiptólogo francês, 1790-1832], o arqueólogo de Napoleão, que disse que no Egito antigo tudo era Deus, exceto Deus. Parodio: Hoje tudo é arte, exceto a Arte. Enfim, estamos sumindo como pessoa artística e como nação cultural. Nação riquíssima, pessoa maravilhosa, diga-se. Definhamos, sim, sem amor e sem bolero. De quem a culpa? Nossa, vossa, principalmente. Os artistas plásticos, de modo geral, só pensam em seus blá-blá-blás e na sua carreira. Raramente opinam e nem são chamados a opinar. Aceitam serem explorados pelas entidades culturais em troca de uma exposiçãozinha quando muito quinzenal. Os Governos, os empresários, usam a Lei Rouanet para se promoverem e enriquecerem as gráficas e os donos do entretenimento. Usam a Lei Rouanet sem pudor para investirem neles mesmos. O Brasil, os empresários, as universidade são todos avaros, não premiam, não incentivam, não honram os que merecem, enfim, duvido que o Instituto Lula ou o Instituto FHC, ou a Universidade de São João Del Rei estejam pensando em agraciar a cultura brasileira com uma Medalha de Resistência Cultural…

Por que o mundo da pintura é preconceituoso em sua visão?

Quanto mais rico mais preconceituoso. Lá fora, no mundo dos ricos, só podemos fazer “arte menor”. Arte maior é com eles. Somos culturalmente colonizados. Ou melhor, nós não, a mídia poderizada e o mundo acadêmico. Chega a ser ridículo, o pintor prefere ser chamado de “artista plástico” a ser confundido com o pintor de parede. Sempre que sou lembrado ao nível oficial surge um “artista plástico” me qualificando depois do nome. A verdade é que no capitalismo, nas religiões, todo mundo discrimina todo mundo. A razão? Se você admite um acima, admite um abaixo. Para romper com isso é preciso um mundo novo, um Homem novo. No que diz respeito especificamente à Pintura é preciso reduzir os cursos de História da Arte e aumentar, ou melhor, criar, pois, nem existem, os cursos de Filosofia da Arte. Ou seja, precisamos dar voz ao artista, ao criador. Hoje, todos sabem a cor da cueca do Van Gogh, mas não sabem o pensamento do Portinari, por exemplo. Os cursos de História da Arte estão utilizando livros de cem anos atrás, como se fosse grande novidade -, e o artista brasileiro, principalmente, não publica, não é chamado para entrevistas, não tem voz, enfim. Estes cursos fazem o jogo da dominação estética. A Arte, repito, é universal, mas, na prática, o que existe é tão-somente a difusão da arte e da cultura do mundo dos poderosos, a arte da aristocracia financeira, arte acomodada, comportada, novidadeira, de falsa vanguarda. O entretenimento serve para isso: distrair os pobres coitados, atolados nas dívidas, na desesperança, na falta do que fazer depois do trabalho, quando têm trabalho. A luta, hoje, é contra o Dinheiro, contra o trabalho pago com pirita. Liberdade é participação, e o povo não é chamado à participação. O urinol do Duchamp [Marcel Duchamp, pintor, poeta e escultor francês, 1887-1968] tem mais de 100 anos, mas é vendido como se a urina ainda borbulhasse. Mas, atentem: é um problema econômico, de dominação financeira. As minas do Rei Salomão não ficam na África, ficam aqui, em Minas Gerais, na Amazônia. Não é porque não tem dinheiro que o Brasil não investe em Arte. Mas sim porque é um país colonizado, de fora pra dentro, de cima pra baixo, com os de dentro sorrindo pros de fora. Como se dissessem: vejam, ainda temos dentes.

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O preconceito na Pintura, pouco ou nada difere do preconceito geral. Pintura, no Brasil, ainda é coisa de bem-nascidos e deve ser produzidas para os ricos. É um país que não compra arte, não forma acervo público. Só compra computador, carro, câmaras de segurança. É claro que a Pintura, em si, vale muito, até porque é o verdadeiro dinheiro. Mas o preconceito existe porque a Arte e a Cultura que estamos vendo e vivendo na mídia e nas academias não são nossas. Sofremos com o ditame financeiro internacional, avassalador, arrasador, e que é nacional também. Enfim, luto por uma Arte pessoal, antes de lutar por uma Arte nacional, mas, uma não vem sem a outra. Só uma Arte pessoal nos livra dos preconceitos. Agora, favor não confundir Arte com Democracia. Na Arte o que vale é o melhor, e o melhor é o mais inovador, o mais belo, o mais libertário, o mais social, o mais pessoal… Já a democracia é uma dessas esperanças que não há quem não explique e ninguém que não a entenda.

E o mundo da pintura, já foi preconceituoso com você em algum momento?

Sim. Muito. Mas não o mundo, algumas pessoas, algumas galerias brasileiras. Primeiro porque não estudei formalmente a Pintura, segundo porque meu autodidatismo me obrigou a inventar, intuitivamente, uma nova tela para a pintura (uma vela náutica oceânica de poliéster), tão boa que me permite expor permanentemente ao ar-livre. E, ademais, bela; embora muito difícil de pintar, pois, não permite nem o esboço e, nem a correção. Um ótimo material, em resumo. E isto numa época em que a tela de pano está decadente, isto é, já não tem a mesma qualidade que tinha no passado, quando era de linho e alcalina. Ou seja, autodidata, excêntrico, subversivo e ainda por cima prescindindo das galerias para expor… Já viu, né? Mas foi bom. Repudiado, achei o meu caminho, sendo pioneiro na criação da modalidade “galeria pessoal”. Nasceu assim: um dia, eu bestando e comendo jabuticaba na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, dias depois de ter feito uma exposição ao ar-livre no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, na Eco-92, com público estimado em dois milhões de pessoas, reparei, bem na minha frente, uma agência do Bradesco apinhada de gente e com uma placa na entrada que dizia “Banco Bradesco”. Então pensei, se o Bradesco precisa de nome na porta para traficar o nosso dinheiro, o que direi eu, um simples pintor de poesias coloridas. Então atravessei a rua e abri a minha primeira galeria pessoal e desde então me tornei um pintor profissional. E mais: independente.

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Em que período a sua natureza libertária esteve mais presente de uma forma visceral em seus trabalhos?

Sem liberdade interna e externa a Arte é uma chatice. É a liberdade, “a surpresa da liberdade” que impulsiona o pintor a pintar. É o que vem “de graça”. Julgo que o tema dos jarros de flores, como eu o concebo, é o mais libertário, pois, é somente forma e cor. Nele, já estamos livres das quatro grandes pragas da Pintura; a saber, a literatura, a história, a anedota e o conceito. Pintura é imagem, e imagem é silêncio, daí uma pintura que seja forma e cor ser mais pintura, pois, é mais silenciosa. Quanto mais silenciosa a imagem mais ela grita, melhor ela é. Ou seja, não é bom se contar histórias nem historinhas numa pintura, muito menos apelar-se para a anedota. E o blá-blá-blá conceitual é um horror. Está matando a arte visual e criando filósofos do óbvio, acacianos abestalhados.

Quando escreveu seu livro sobre a China, imaginava que a nação hoje seria essa potência no campo econômico, ou melhor, já via indícios de alguma coisa nesse sentido quando estava no país, pois, como bem diz, a China de Mao Tsé-Tung naquela época, era a China dos camponeses?

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Bem, foi uma pena a China ter ido por este caminho. A Terra é esgotável e está esgotada. Se me permite a onipotência, penso que a China errou e creio que um dia retomará o caminho do “horizonte camponês”, que é muito mais humanístico, belo e viável. Além de garantir uma saúde melhor para os seus cidadãos. Aliás, não só a China, mas creio que o mundo do futuro será de jardineiros e poetas, ou não será. A China de hoje gosta mais de mim do que eu dela – deduzo, pois, me honrou com uma Medalha de Ouro, em Londres, na Olympic Fine Arts Exhibition, em 2012, enquanto eu a critico e a aconselho a gastar os seus trilhões de dólares falsos acumulados comprando pintura que, aliás, é o verdadeiro dinheiro. Bom dinheiro é o que reproduz boa pintura nas suas cédulas… que fingem ser pinturas. Mas já não existem dinheiros assim.

Você diz que o período de estudos nos EUA e na Itália, foram fundamentais na sua formação. Qual a lembrança mais notória daqueles momentos no efervescente anos 60?

O mais notório é que eu estava longe da ditadura brasileira, podia viver, sem medo de ser morto, nem seqüestrado. Longe dos anos de chumbo, aliás, se me permitem, de kriptonita, já que éramos todos jovens super-homens lutando pelas liberdades democráticas. Minhas “bolsas de estudos” foram disfarces para sair do país, sem chamar muito atenção. A liberdade, diga-se, é a mais deliciosa das delícias. E não só a liberdade política, a do corpo também. Na América eu vivi a liberdade do corpo, na Itália a liberdade da alma. Inesquecível: um dia, fui a uma festa, na Memorial Church, e vi os jovens estudantes de Harvard dançando rock, que acabava de nascer, como que enlouquecidos, em cima dos túmulos dos heróis americanos. Foi como se estivessem se libertando da caverna, e eu também. Mas, o melhor de Harvard é o Fogg Museum. Lá vi pela primeira vez os impressionistas franceses e os pintores coloniais americanos primitivos, de lindas marinhas. Uma maravilha. O Fogg foi um dos lugares que definiu a minha vida de pintor. Na Itália, em Florença, a simples visão do David de Michelangelo [Michelangelo Buonarroti, escutor e pintor italiano, 1475-1564] foi suficiente para eu acreditar no valor da beleza, para sempre. As pedras de Roma ensinaram-me a permanência do belo, os gramados de Harvard o grande valor da sociedade rica, ainda que, no caso, unilateralmente rica. Enfim, tudo de belo e bom que aprendi na minha meninice, no subúrbio carioca do Encantado, com os balões, com as festas de São João, com a frescura dos quintais frutíferos, com as pipas que eu mesmo fazia, com a bola de gude e sua visão interna do cosmos, com o carnaval do carnaval do carnaval, tudo isso que formou a minha estética e a minha poética foi reforçado nos meus exílios americanos e italianos. Pena que os anos 60 terminaram. Nós, os puros das utopias, os sentimentais da razão, merecíamos novos e mais duradouros anos 60. Precisamos avançar até os Anos 60. Quanto mais antiga a crença maior a fé. O Deus Sol há de voltar, creio. Pois, Deus bonito era o Sol…

O autodidatismo lhe deu mais liberdade como pintor, ou acredita que mesmo se não fosse autodidata, essa liberdade viria da mesma forma?

Aposto mais no autodidata e no excêntrico, no sentido de “fora do centro”. Antigamente, na tradição oriental, os melhores pintores, capazes de criar escola, eram excêntricos. Geralmente eram aventureiros, escritores, calígrafos, poetas, místicos, jardineiros que um dia, na maturidade, de repente, começavam a pintar – e tão valioso era o seu autodidatismo que podiam fundar uma escola. Noel [Noel Rosa, sambista, compositor e bandolinista 1910-1937] carioca tinha razão – samba não se aprende no colégio. Todos os cursos de pintura se dizem livres, mas a verdade é que se lhe põem um determinado pincel nas mãos muito dificilmente você o abandonará. O pintor tem que criar o seu espaço, só dele, senão morre na Lua. Ninguém é grande ocupando o lugar do outro. Não há competição na Pintura. Um pintor só é grande quando atinge sua expressão pessoal, resultado também de sua técnica pessoal. Na verdade, um pintor para ser grande precisa desaprender… profundamente.

Por que é tão difícil ser pintor na juventude? Afinal você não é o primeiro que diz isso para nós…

A Pintura é uma Arte da maturidade. Exige, hoje, uma expressão já pronta, uma caligrafia já elaborada, uma poética já construída. Ademais, é necessário uma “integridade psíquica”, algo que se conquista na maturidade. Quanto mais “integridade psíquica” mais se pode ser original e ser acreditado na sua originalidade. Ou seja, a Pintura é uma Arte extremamente difícil que deve ser feita com muita facilidade. E Alegria. Pintura é poesia, vem da juventude, mas, para ser pintor é preciso ser sátiro e anjo a um só tempo. Uma coisa é pintar, outra é ser pintor. Ser pintor é um disfarce para se lutar pela paz mundial, pelo universo da pessoa. Um segredo: a Pintura é a única Arte capaz de plasmar a vida na tela, por isso é o verdadeiro dinheiro. Pinto para que o mundo vire pintura.

Em uma certa ocasião, você afirmou que se nos permitissem saber mais sobre Marx, com certeza seríamos todos os comunistas a caminho do anarquismo. Existiu alguma experiência que o fez chegar a essa ideia que hoje é tão firme em sua personalidade?

Querido, eu só não fundo o Partido Comunista Democrático porque gosto muito da convivência com a minha esposa. Explico. No Brasil, onde existe a ditadura dos partidos (o mandato é do partido, não do eleito; é proibida a candidatura avulsa), quem manda é o diretório. Pouco importa se você ganha a eleição ou não, tem poder quem frequenta as reuniões dos diretórios, que geralmente são à noite; ou seja, só frequenta quem está brigado com a esposa… Ora, amo minha mulher, logo minha carreira política termina aqui.

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Resta o anarquismo. Sim. Só acredito no Governo do poeta. Creio na ordem anárquica como a mais magistralmente eficaz e democrática. Ser pintor é se autogovernar. Marx [Karl Marx, filósofo, sociólogo e jornalista alemão, 1818-1883] e Freud [Sigmund Freud, neurologista e criador da Psicanálise, 1856-1939] foram assassinados pelos conservadores antes mesmo de serem lidos e digeridos. Fazem muita falta na atualidade, assim como Marcuse [Herbert Marcuse, sociólogo e filósofo alemão, 1898-1979], outro grande assassinado. Lembro uma frase de Marx, que cito de memória, de grande atualidade, e que vale um tratado de sociologia: “Os burgueses, não contentes em prostituírem as filhas dos operários, têm um prazer incontido em se cornearem entre si”. Lindo!

Em que tem trabalhado atualmente?

Há dez anos me dedico a pintar aos jarros de flores. Mas, você sabe, o mais difícil de ver é a ponta do nariz. Antes, sempre, nas minhas paisagens, nas minhas pinturas de casarios tiradentinos eu punha no fundo, como detalhe, a magnífica Serra de São Jose de Tiradentes, que há 25 anos contemplo aqui de casa. Mas, nunca a protagonizei, ou seja, ela como o tema da tela, sozinha na sua magnificência. Agora pinto um jarro de flor e uma Serra de São José, alternadamente. Amo a Serra tanto quanto amo os jarros de flor. Ou seja, como diz o Caymmi [Dorival Caymmi, cantor e compositor baiano, 1914-2008]: O pescador tem dois amor… Assim mesmo no singular, que é pra rimar. Há algum tempo, também, só aceito trabalhos não-remunerados. Atualmente ajudo a Associação de Antigos Alunos da Faculdade Nacional de Direito, onde estudei e me formei, embora nunca tendo exercido a profissão. Realizamos uma festa no Dia Nacional da Liberdade, a 12 de novembro, batismo e nascimento de Tiradentes, onde, numa programação cultural no Salão Nobre da Faculdade, agraciamos personalidades e entidades com a Medalha da Resistência Cidadã. Para a festividade deste ano, tenho trabalhado no projeto Nossas Desculpas, onde Brasil e Portugal pedem reciprocamente desculpas pela expulsão e banimento da Família Real e a condenação dos Inconfidentes. Trabalho também, com Cidinha, minha mulher, e alguns amigos, na programação da nossa Fundação artística e cultural. Acordo cedo, durmo cedo. O melhor de Tiradentes é o ar puro e o silêncio. O tempo que sobra cuido do meu jardim, dos meus canários belgas. Adoro minha família e adoro receber meus amigos. Sou um homem ocupado… mas disponível.

Última atualização da matéria foi há 2 anos


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