Black Friday: uma armadilha de consumo?
Todo mês de novembro, o capitalismo veste preto e promete redenção. É a Black Friday, o dia em que o desconto vira dogma, o impulso se disfarça de oportunidade e o cartão de crédito ganha o poder de ressuscitar desejos adormecidos. O fenômeno, importado dos Estados Unidos, tornou-se no Brasil um evento quase religioso — um feriado não oficial em que multidões virtuais se ajoelham diante da tela, clicando “finalizar compra” como se isso garantisse absolvição financeira.
A data, originalmente criada para liquidar estoques antes do Natal, virou um ritual de consumo global. Só que, de uns tempos pra cá, a aura de “grande negócio” tem sido desbotada pela repetição de velhos truques: preços inflados dias antes, descontos fictícios, produtos de qualidade duvidosa e uma sensação coletiva de ter sido, mais uma vez, ludibriado com o sorriso de quem acredita estar economizando. O brasileiro aprendeu a desconfiar — e com razão. Afinal, o desconto de 70% muitas vezes é sobre um preço que nunca existiu.
“O problema está menos na data e mais no comportamento coletivo. Vivemos na era do consumo performático, onde mostrar que se comprou vale mais do que o que se comprou. O carrinho cheio virou símbolo de status digital. E, nesse cenário, a Black Friday é apenas o espelho de uma sociedade que mede felicidade em parcelas e autoestima em “reviews”.”
Além da enganação, há o aspecto psicológico. A Black Friday não é sobre necessidade, é sobre desejo manipulado. A cada banner piscante, a promessa de um “último dia”, um “estoque limitado”, um “só até meia-noite”. É o medo de perder — o FOMO (fear of missing out) — transformado em estratégia de venda. O consumidor, acuado por uma economia que o aperta e por uma cultura que o convence de que “quem não compra, fica pra trás”, entrega-se ao frenesi. Comprar virou um tipo de anestesia emocional, um antídoto temporário contra o tédio, a insegurança e o vazio.
No fim, a Black Friday é menos sobre preços e mais sobre controle. As empresas não vendem produtos: vendem sensação de poder, vendem pertencimento, vendem a ilusão de que o consumo é uma forma de liberdade. E, ironicamente, é justamente no dia em que mais se fala em “liberdade de escolha” que mais gente compra o que não precisa, com dinheiro que não tem, para impressionar quem não se importa.
O teatro do desconto e a comédia da ilusão
O espetáculo é previsível. As marcas encenam generosidade; os consumidores representam esperteza. De um lado, slogans ufanistas prometem “os menores preços do ano”; de outro, comentários nas redes sociais vibram com “achadinhos imperdíveis”. O palco é digital, mas o enredo é antigo: a economia do desejo.
As lojas criam uma sensação de urgência calculada — a psicologia comportamental aplicada à planilha de vendas. O consumidor acredita estar vencendo o sistema quando, na verdade, é apenas uma peça no tabuleiro. O jogo é sutil, quase elegante: “leve três, pague dois” soa como vitória, mas é só um lembrete de que você não precisava nem do primeiro.
Enquanto isso, as empresas de logística, os marketplaces e os bancos sorriem nos bastidores. A Black Friday é o Super Bowl do consumo, onde todos ganham — menos o comprador, claro, que termina o mês com mais boletos do que antes. A ironia é que, mesmo ciente disso, ele volta no ano seguinte. O capitalismo é mestre em transformar arrependimento em estímulo para a próxima compra.
Há, porém, uma nova consciência despontando. Pesquisas mostram que uma fatia crescente de consumidores já trata a Black Friday com desconfiança. Comparadores de preços, sites de alerta de fraude e comunidades online que desmascaram promoções falsas têm feito o papel de “vigilantes do desconto”. A tal “sexta-feira negra” começa a ser vista, por alguns, como “sexta do autoengano”.
Mas seria exagero demonizar o evento. Há também quem realmente economize: quem pesquisa, compara, espera e aproveita o momento para trocar o celular antigo, comprar um eletrodoméstico essencial ou antecipar o presente de Natal. A Black Friday pode ser útil — desde que não se confunda necessidade com impulso, e promoção com propósito.
O problema está menos na data e mais no comportamento coletivo. Vivemos na era do consumo performático, onde mostrar que se comprou vale mais do que o que se comprou. O carrinho cheio virou símbolo de status digital. E, nesse cenário, a Black Friday é apenas o espelho de uma sociedade que mede felicidade em parcelas e autoestima em “reviews”.
No fundo, talvez a pergunta não seja se a Black Friday é uma armadilha — mas por que ainda caímos nela de bom grado. O que nos seduz tanto na ideia de pagar menos? Talvez o desejo ancestral de sentir-se esperto num mundo que insiste em nos chamar de tolos. Talvez o alívio efêmero de apertar “comprar agora” e acreditar, por um segundo, que controlamos algo.

O desconto, afinal, é o novo feitiço moderno: faz-nos acreditar que o preço baixou, quando, na verdade, quem está de joelhos é o próprio consumidor. E o “Black” da sexta-feira não se refere mais à cor das etiquetas, mas à escuridão momentânea da razão.
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