Ken Loach e a arte como martelo
Poucos cineastas conseguiram transformar indignação política em obra de arte com tanta coerência quanto Ken Loach. Filho da classe trabalhadora britânica, Loach, nascido em Nuneaton (uma cidade no norte de Warwickshire, Inglaterra), fez de sua câmera uma extensão das assembleias populares, dos corredores dos sindicatos e dos apartamentos apertados onde se vive entre contas atrasadas e esperanças esgarçadas. Desde os anos 1960, o diretor não apenas construiu um repertório cinematográfico marcado pelo realismo, mas também deixou claro que arte e política, para ele, são inseparáveis. Sua filmografia é uma denúncia continuada das desigualdades e das contradições do capitalismo moderno, mas também uma celebração da solidariedade, essa palavra quase proibida no léxico neoliberal contemporâneo.
O estilo de Loach é deliberadamente simples e funcional. Nada de efeitos pirotécnicos, enquadramentos estilizados ou trilhas sonoras que nos digam o que sentir. Ele prefere luz natural, atores desconhecidos e roteiros que poderiam ter sido retirados do jornal do dia. Não há espaço para glamour. O resultado é uma estética que beira o documentário, mas que se alimenta da ficção para tocar pontos nevrálgicos do tecido social. Esse método é o que fez filmes como Kes (1969), Riff-Raff (1991), Terra e Liberdade (1995) ou Eu, Daniel Blake (2016) parecerem tão atuais, mesmo décadas depois.
“Quer você ame ou deteste seus filmes, Ken Loach impõe respeito pela obstinação e pela clareza de seu projeto. Sua arte social é um lembrete de que o cinema pode, sim, intervir no mundo – não para resolvê-lo, mas para que não nos acostumemos à sua crueldade.”
Mais do que um cineasta, Loach é um cronista das fraturas britânicas – e, por extensão, das fraturas globais. Seus personagens não são heróis grandiosos, mas cidadãos comuns atravessados pelo desemprego, pela precarização do trabalho, pelo racismo e pela violência burocrática do Estado. Ao se recusar a suavizar essas narrativas, Loach contraria a lógica dominante de entretenimento, onde até a miséria é estetizada para virar produto. Ele não faz filmes para “ganhar corações e mentes” de forma romântica; faz para incomodar, para desafiar e, quem sabe, para mobilizar. Essa postura também lhe rende críticas recorrentes.
Há quem o acuse de panfletário, de insistir numa mesma tecla, de não permitir ao espectador um respiro estético diante de tanto sofrimento. Mas essa própria crítica ignora que Loach, na verdade, busca o choque ético, não apenas estético. A pergunta que seu cinema nos faz é: por que aceitamos como normal aquilo que deveria ser intolerável? Em vez de fórmulas prontas, oferece dilemas, contradições e uma ética do olhar.
Cinema como martelo, não como espelho
É inevitável comparar Loach com outros diretores politizados. Se Bertolt Brecht dizia que “a arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para moldá-lo”, Loach é um artesão desse martelo. Seus filmes não pretendem apenas refletir injustiças, mas criar um senso de urgência. O resultado é um cinema que não se consome passivamente. Mesmo quando concorre a prêmios prestigiosos – venceu duas Palmas de Ouro em Cannes – Loach mantém o desconforto como estratégia. Ele sabe que festivais e tapetes vermelhos podem absorver e neutralizar o discurso; por isso insiste em se posicionar publicamente contra políticas de austeridade, privatizações e guerras.
Mas seria um erro pensar que sua obra é pura denúncia sem poesia. Há ternura em Loach. Sua câmera se detém nos gestos pequenos, nos afetos miúdos, nas resistências cotidianas. É o abraço de solidariedade entre personagens, a piada no pub, a esperança de uma carta de emprego. Esse lirismo discreto dá aos filmes uma força de humanização rara. Se ele é um panfletário, é um panfletário da empatia.
Além disso, Loach desafia a indústria ao manter uma coerência autoral num tempo em que cineastas muitas vezes se dobram às exigências do mercado global. Mesmo envelhecendo – atualmente está com 89 anos – ele não abandonou o front. The Old Oak (2023) tratou da chegada de refugiados sírios ao norte da Inglaterra e das tensões com comunidades locais empobrecidas. Em vez de soluções fáceis, Loach mostrou o que poucos querem ver: a disputa entre vítimas do mesmo sistema, uma narrativa que desmonta o discurso xenófobo e expõe o abandono estatal.
No Brasil, Loach é admirado e estudado por críticos, cineclubes e universidades. Seu cinema dialoga com as nossas próprias mazelas – a desigualdade estrutural, a violência institucional, o drama do trabalho precarizado. Talvez por isso sua filmografia seja revisitada com frequência, como um espelho incômodo, mas necessário. É curioso: um diretor britânico consegue falar tanto do Brasil quanto de qualquer outro país periférico. A chave é a universalidade das injustiças, não a nacionalidade.
No fundo, Loach nos lembra que cinema não é apenas entretenimento, mas linguagem política. Isso incomoda quem prefere a arte “neutra” – que, no fundo, é só a arte dominante travestida de imparcialidade. Ao manter-se fiel a esse compromisso, Loach construiu uma carreira longeva e, sobretudo, coerente. É como se dissesse: se o mundo não mudou, não há motivo para mudar o cinema. E nisso reside a provocação maior: o problema não é ele repetir seus temas; o problema é os temas continuarem existindo.

Seu legado, portanto, não está apenas nos prêmios ou no estilo realista. Está na coragem de usar a arte como instrumento de reflexão coletiva. Num tempo em que muitos artistas preferem o conforto da neutralidade, Loach opta pelo desconforto da tomada de posição. E, paradoxalmente, é esse desconforto que faz seu cinema permanecer vivo, urgente e necessário.
Quer você ame ou deteste seus filmes, Ken Loach impõe respeito pela obstinação e pela clareza de seu projeto. Sua arte social é um lembrete de que o cinema pode, sim, intervir no mundo – não para resolvê-lo, mas para que não nos acostumemos à sua crueldade. É uma lição dura, mas essencial, num planeta onde a desigualdade insiste em ser a maior bilheteria de todas.
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