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O cinema vigoroso de Spike Lee

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Spike Lee nunca foi apenas um cineasta — é uma instituição em movimento. Um artista que fala alto, filma com raiva e monta como quem dispara um manifesto. Desde os anos 1980, quando surgiu com Faça a Coisa Certa, ele ergueu uma filmografia que é, ao mesmo tempo, um diário urbano e um ensaio político sobre o que é viver, sonhar e sobreviver na América que prefere não se olhar no espelho. Lee é o cronista das contradições, o antropólogo dos becos do Brooklyn e o incendiário que, ao contrário dos acomodados, nunca abaixou a câmera para agradar.

Em uma época em que Hollywood virou refém da franquia e da obviedade, Spike (nascido em Atlanta no dia 20 de março de 1957), se manteve fiel a uma tradição autoral: a de incomodar. Febre da Selva, Malcolm X, A Última Noite, 25ª Hora, O Plano Perfeito, Infiltrado na Klan — cada título é uma variação do mesmo tema: o indivíduo esmagado por sistemas maiores que ele, seja o racismo, o capital, o crime ou a própria culpa. O estilo é inconfundível: câmera em movimento direto, cores intensas, trilhas pulsantes e uma verve de panfleto elegante. Spike filma como quem prega: com convicção, ritmo e indignação.

“Lee, aos 68 anos, continua filmando com a impetuosidade de um estreante. Seus enquadramentos exagerados, os planos frontais e a montagem sincopada não são maneirismos: são sua caligrafia visual, o idioma de um autor que faz política com a lente.”

Mas não se engane: por trás da fúria existe método. Lee é formado em cinema pela NYU, onde aprendeu a desmontar a linguagem clássica e reconstruí-la com sotaque afro-americano. Seu uso da cidade como personagem é quase geográfico: ele entende Nova York como um organismo vivo, um campo de batalha moral onde o drama humano se mistura ao concreto e ao barulho. Poucos diretores filmaram as ruas com tanta intimidade. É ali que ele encontra não apenas o caos, mas também a beleza.

É nessa mesma Nova York que se passa Luta de Classes, seu novo filme, lançado recentemente e já saudado como o retorno do velho Spike em plena forma. A história de David King (Denzel Washington), magnata da música que tem “os melhores ouvidos do ramo”, é uma parábola sobre privilégio, moral e abismo social. Quando o filho de seu motorista (Jeffrey Wright) é sequestrado por engano, King precisa descer do seu arranha-céu de vidro e pisar novamente no asfalto. O sequestro, como sempre nos filmes de Lee, é só a superfície de algo mais profundo: uma investigação sobre o que o dinheiro pode comprar — e o que ele nunca alcança.

O pregador da imagem e do incômodo

Spike Lee está de volta à forma que o consagrou: a de cronista furioso do sistema. Luta de Classes ecoa o melhor do seu cinema, com ecos de O Plano Perfeito (2006) e o nervo social de Faça a Coisa Certa (1989). Aqui, o vilão não é o sequestrador, Yung Felony (ASAP Rocky), um aspirante a rapper que é mais um sintoma do que uma ameaça. O verdadeiro inimigo é o fosso invisível entre os que têm tudo e os que nunca tiveram nada. E Lee, fiel à sua retórica provocadora, não oferece catarse. Apenas um espelho, e nele, o reflexo desconfortável de uma América que perdeu o senso de comunidade.

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Com Denzel Washington em estado de graça — reunido ao diretor depois de Malcolm X e O Plano Perfeito —, o filme combina a solenidade trágica do ator com a urgência elétrica da direção. Jeffrey Wright adiciona densidade e melancolia, enquanto ASAP Rocky surge como símbolo da juventude sem mapa, órfã de ídolos e oportunidades. A moral da história, se há uma, é amarga: a riqueza protege, mas também isola; e quando o mundo real invade a bolha, não sobra luxo que sirva de escudo.

Lee, aos 68 anos, continua filmando com a impetuosidade de um estreante. Seus enquadramentos exagerados, os planos frontais e a montagem sincopada não são maneirismos: são sua caligrafia visual, o idioma de um autor que faz política com a lente. Há quem o acuse de panfletário; ele mesmo não nega. “Prefiro ser panfletário do que neutro”, disse certa vez. E é exatamente essa recusa à neutralidade que faz dele um sobrevivente num cinema que se tornou covarde.

O curioso é que Luta de Classes, mesmo sendo sobre desigualdade, não é um panfleto unidimensional. Spike humaniza todos os lados, ainda que com sarcasmo. Ele entende que o sistema não precisa de vilões quando a estrutura inteira é viciada. O sequestro, nesse contexto, é apenas um lembrete: até as vidas mais protegidas estão a um erro de distância do caos.

Spike Lee nunca foi apenas um cineasta — é uma instituição em movimento (Foto: Wiki)
Spike Lee nunca foi apenas um cineasta — é uma instituição em movimento (Foto: Wiki)

Talvez por isso seu cinema continue tão necessário. Spike Lee não filma para o conforto — filma para o confronto. Seu vigor está justamente nessa disposição de morder a mão que o alimenta, inclusive a da própria indústria que o consagrou. E ao contrário de tantos contemporâneos domesticados pelo tapete vermelho, ele ainda acredita que o cinema é um ato político. Luta de Classes não é apenas mais um filme — é mais um capítulo na longa cruzada de um cineasta que, desde sempre, se recusa a aceitar o mundo como ele é.


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