O roubo do cofre do Adhemar
Em tempos de polarização ideológica intensa, é sempre útil revisitar episódios do passado que ajudam a compreender a formação de certos discursos políticos no Brasil contemporâneo. Um dos mais emblemáticos — e controversos — é o episódio do roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros, em 18 de julho de 1969, realizado por integrantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). A ação foi liderada por militantes de esquerda armada que, em plena ditadura militar, buscavam recursos para sustentar a luta contra o regime autoritário. A operação ainda chama atenção, mais de cinco décadas depois, não apenas pelo montante roubado, mas também pelas figuras envolvidas — entre elas, Dilma Rousseff, que viria a ser presidenta da República.
O cofre, escondido no apartamento de uma amante do ex-governador Adhemar de Barros, no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, continha, segundo relatos, cerca de 2,6 milhões de dólares em dinheiro vivo — uma fortuna considerável, sobretudo para os padrões da época. A operação foi cuidadosamente planejada e executada por militantes da VAR-Palmares, organização que havia surgido da fusão de outras facções da esquerda armada e que tinha como objetivo derrubar a ditadura militar pela via revolucionária.
“É inegável que o episódio do cofre do Adhemar ocupa um lugar ambíguo na história do Brasil: ao mesmo tempo que revela a brutalidade e o desespero de uma geração disposta a tudo para combater uma ditadura, também expõe os limites morais da luta armada.”
Apesar de nunca ter sido condenada judicialmente por envolvimento direto no roubo, Dilma Rousseff aparece em documentos da época como uma das líderes da organização. Esse fato tornou-se combustível frequente para ataques políticos, especialmente durante suas campanhas eleitorais e os anos em que ocupou a presidência. O ponto central da crítica, no entanto, costuma oscilar entre o moralismo seletivo e a má compreensão histórica. O que é mais relevante hoje, olhando em retrospectiva: o destino do dinheiro, os meios utilizados ou os motivos políticos do grupo?
O que o episódio do cofre do Adhemar revela é, em parte, a complexidade da política brasileira, onde as fronteiras entre legalidade, legitimidade e moralidade frequentemente se embaralham. Adhemar de Barros era conhecido por sua célebre frase atribuída a seus opositores: “rouba, mas faz”. Ele teve mandatos marcados por denúncias de corrupção e enriquecimento ilícito. O dinheiro guardado clandestinamente em um cofre fora do sistema bancário é, por si só, uma evidência de práticas irregulares — se não ilegais.
Dinheiro sujo, fins ideológicos
Logo, o roubo do cofre não é apenas um ato criminoso da esquerda armada: é também a violação de um patrimônio que, pelo que tudo indica, fora obtido de forma igualmente ilícita. O que se observa, portanto, é o confronto entre dois tipos distintos de ilegalidade: uma, estatal e conservadora, que lucrava à sombra da ditadura; outra, insurgente e revolucionária, que se dizia comprometida com a derrubada do regime.
A justificativa ideológica não absolve moralmente o roubo, mas tampouco é possível analisá-lo com os olhos do Código Penal comum. A ditadura institucionalizou a repressão, a tortura, a censura e o desaparecimento forçado de opositores. Para muitos militantes da época, não havia outra alternativa senão pegar em armas e buscar fundos de todas as formas possíveis para financiar suas atividades — o que incluía assaltos a bancos, sequestros e, como nesse caso, a expropriação de um cofre recheado com dólares de origem obscura.
A esquerda armada fracassou em seu objetivo de derrubar o regime militar, mas o debate sobre seus métodos ainda provoca desconforto. O Brasil nunca passou por um processo de justiça transicional robusto, como o ocorrido em países como Argentina ou África do Sul. Por isso, episódios como o do cofre de Adhemar continuam sendo usados seletivamente, muitas vezes mais para desqualificar adversários do que para buscar uma compreensão mais ampla do período.
Ao longo dos anos, o roubo do cofre foi romantizado por uns e demonizado por outros. Virou roteiro de livro, documentário, memes e material de campanha. A direita se apoia no episódio para pintar a esquerda como antidemocrática e criminosa; a esquerda o relativiza como parte da resistência legítima a um regime opressor. Mas os fatos históricos pedem mais nuance do que os discursos de campanha costumam admitir.

É inegável que o episódio do cofre do Adhemar ocupa um lugar ambíguo na história do Brasil: ao mesmo tempo que revela a brutalidade e o desespero de uma geração disposta a tudo para combater uma ditadura, também expõe os limites morais da luta armada. A história, por mais incômoda que seja, não pode ser reescrita com as cores fáceis do maniqueísmo.
Revisitar esse episódio, é importante para refletir não apenas sobre o passado, mas também sobre como ele é manipulado no presente. A memória histórica não pode ser sequestrada por conveniências eleitorais. O roubo do cofre do Adhemar, afinal, é mais do que um episódio de militância: é um espelho do Brasil que fomos — e talvez, do Brasil que ainda somos.
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