FonteCindam e a maxidesvalorização do real
Em janeiro de 1999, o Brasil enfrentou uma das maiores turbulências econômicas de sua história recente. A abrupta mudança do regime de câmbio fixo para o flutuante, provocada pela pressão cambial e pela fragilidade fiscal do país, culminou na maxidesvalorização do real. O dólar, que até então era mantido artificialmente em uma banda de preços determinada pelo Banco Central, disparou, revelando as fragilidades do sistema financeiro e a vulnerabilidade das reservas internacionais. No centro dessa tempestade cambial estavam dois bancos: o Marka e o FonteCindam.
O caso do Marka ganhou notoriedade rapidamente, graças à figura de seu controlador, Salvatore Cacciola, e ao vultoso prejuízo que a operação gerou aos cofres públicos. No entanto, o envolvimento do FonteCindam, um banco de perfil mais discreto, foi igualmente relevante — e, em certos aspectos, mais embaraçoso para o Banco Central. A operação feita com o FonteCindam também envolveu a venda de dólares a um preço inferior ao praticado no mercado, em condições que, até hoje, geram dúvidas quanto à legalidade e à motivação.
“A história do FonteCindam talvez seja menos conhecida que a do Marka, mas seu papel naquele janeiro turbulento de 1999 foi decisivo.”
O então controlador do FonteCindam, Roberto Steinfeld, tentou afastar sua instituição do escândalo envolvendo o Marka, alegando que a operação feita com o Banco Central era corriqueira e não exigia amparo em resoluções emergenciais, como o voto 006 — o mesmo usado para justificar a ajuda ao Marka. Segundo ele, o FonteCindam não tinha problemas de liquidez e apenas adquiriu dólares no dia 14 de janeiro de 1999 por R$ 1,322, uma taxa acima da banda cambial então vigente. No entanto, conforme revelou o Ministério Público Federal, o auxílio ao banco só foi concretizado no dia seguinte, 15 de janeiro, já após o fim oficial do regime de bandas, quando o dólar havia se tornado uma mercadoria escassa e em forte valorização.
A justificativa oficial do Banco Central para o socorro tanto ao Marka quanto ao FonteCindam baseou-se em uma carta da BM&F (Bolsa de Mercadorias & Futuros), que alertava para os riscos sistêmicos da quebra das duas instituições. Essa unificação dos casos, porém, foi criticada por Steinfeld, que sugeriu que sua instituição estaria sendo usada como pretexto para legitimar uma operação muito mais controversa: a do Marka.
Uma transação “corriqueira?”
O episódio também teve implicações políticas desconfortáveis. Um dos pontos levantados por críticos da operação com o FonteCindam foi que Paulo César Ximenes, ex-presidente do Banco Central e, na época da aplicação, presidente do Banco do Brasil, era cotista de fundos do banco. Steinfeld negou qualquer relação privilegiada e afirmou desconhecer que Ximenes era investidor. Ainda assim, a coincidência levantou suspeitas, especialmente porque a credibilidade do sistema financeiro estava, àquela altura, severamente abalada.
A CPI do Senado que investigou os dois casos concluiu que houve erro por parte do Banco Central ao vender dólares abaixo do valor de mercado, mas não conseguiu comprovar dolo por parte dos dirigentes da autoridade monetária. Ainda assim, em 2012, uma decisão judicial da 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou que os controladores do Marka, do FonteCindam e ex-diretores do Banco Central deveriam ressarcir os prejuízos causados ao erário. O valor total fixado foi de R$ 1,57 bilhão, sendo cerca de R$ 522 milhões referentes ao FonteCindam, sem correção. Atualizados, esses valores já ultrapassavam R$ 6 bilhões em 2015, quando o Tribunal de Contas da União também aplicou uma sanção financeira de R$ 4,77 bilhões aos envolvidos, incluindo uma multa de R$ 1 bilhão ao próprio FonteCindam.
No entanto, diferentemente do Marka, que foi liquidado, o FonteCindam conseguiu escapar da intervenção direta do Banco Central. Tentou vender suas operações ao banco francês BNP, mas o descrédito no mercado inviabilizou o negócio. Sem opções, transformou-se em uma empresa de participações que, segundo seu ex-controlador, “por enquanto não participa de nada”.

À luz dos eventos de 1999, o episódio do FonteCindam permanece como uma advertência sobre os perigos de decisões mal fundamentadas em momentos de pânico econômico. A tentativa do Banco Central de salvar o sistema, embora compreensível no contexto de uma crise sistêmica, revelou-se custosa e pouco transparente. A ausência de critérios claros para o socorro a instituições financeiras, e a posterior dificuldade em explicar tecnicamente essas operações, corroeram a confiança pública em instituições que deveriam operar acima de qualquer suspeita.
Passados mais de 25 anos, a lição que permanece é a necessidade de prudência, rigor técnico e accountability na atuação de autoridades monetárias. A história do FonteCindam talvez seja menos conhecida que a do Marka, mas seu papel naquele janeiro turbulento de 1999 foi decisivo — e ainda ecoa nas discussões sobre responsabilidade fiscal e moralidade administrativa.
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