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Anahuac fala de ideologia na tecnologia vigente

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Anahuac de Paula Gil é membro fundador do G/LUG-PB – Grupo de Usuários Gnu/Linux da Paraíba, trabalha com informática a mais de 20 anos, tendo implementado soluções de redes e conectividade na Secretaria de Educação e Cultura da Cidade do Recife em projetos de informatização popular patrocinadas pelo Ministério de Educação e Cultura do Brasil. Trabalhou também como responsável pela área de informática da UNBEC (União Norte Brasileira de Educação e Cultura), que é a sede administrativa de todas as Escolas Maristas do Norte/Nordeste do Brasil, atendendo soluções de conectividade e implementação de políticas de informática educativa e uso da Internet. Professor de diversas disciplinas de informática por mais de 12 anos em uma rede de escolas técnicas e Universidades disseminadas no Nordeste chamada IBRATEC. Consultor de TI sempre propondo soluções que permitam substituir o software proprietário por software livre e ministrando palestras sobre os benefícios diretos e sociais do Software Livre para pequenas e grandes empresas e organizações governamentais. É também membro do comitê diretivo do “Consórcio Para o Desenvolvimento do Software Livre para América Latina e Caribe” que é mantido e coordenado pela UNESCO em associação com diversos representantes da comunidade Software Livre da região. Foi ganhador do Prêmio AREDE de 2014.

Anahuac, tecnologia e ideologia andam juntas?

A ideologia é onipresente. Não ter ideologia, já é uma ideologia em si, mas é claro que nem sempre isso é evidente ou desejável pelos poderes que controlam a economia, os meios de produção, a especulação financeira e outras áreas de poder. Assim criam-se as ilhas de alienação, bolhas de suposta neutralidade ideológica. A tecnologia sempre foi uma ferramenta a serviço dos meios de produção e portanto íntima do poder e dos meios de controle, assim ela sempre foi eminentemente elitista. Termos como tecnologias livres, recicláveis, renováveis, sustentáveis ou inclusivas, são relativamente novos e, na sua maioria, são usados como fachada para passar uma imagem de inocência ou bom-mocismo para os governos e empresas que a usam com o objetivo de concentrar riqueza e controlar as pessoas.

O Software Livre é um movimento social e político que surge formalmente em 1983 através dos esforços de Richard Stallman, criador do Projeto GNU e da Free Software Foundation. Nesse momento a ideologia é trazida a primeiro plano para discutir a tecnologia como ferramenta de transformação social empoderando o usuário final, garantindo-lhe sua liberdade através do acesso aos códigos dos programas de computador. Esse momento revoluciona a relação entre fornecedores e usuários de tecnologia, transferindo o poder para o último. Os desenvolvedores, tradutores, escritores e todos os demais participantes da construção de um programa de computador, doavam de forma espontânea sua inteligência para garantir que o melhor produto fosse feito, mas de forma a perpetuar a independência do usuário.

O estímulo para fazer um bom trabalho partia do altruísmo em saber que se está ajudando o próximo. Trabalhando de forma colaborativa e empenhada para esse propósito o resultado tende a ser melhor, mais eficiente e muito mais adaptado às necessidades reais do usuário. A estabilidade, funcionalidade e segurança se sobrepõem a estética, amigabilidade ou ergonomia. O mercado levou uma década para perceber os benefícios qualitativos do desenvolvimento colaborativo feito por entusiastas dedicados. Então, em 1998 foi fundada a OSI – Open Source Initiative com o objetivo de flexibilizar o discurso de libertação do usuário final, estimulando o enfoque meramente técnico do desenvolvimento colaborativo.

Desde então o enfoque tem sido enfraquecer a ideologia do Software Livre para fortalecer a percepção supostamente não ideológica, de que o importante é fazer programas de computador de qualidade que poderão ser ou não livres em função dos interesses do mercado. Troca-se assim, a ideologia revolucionária e social do Software Livre pela velha e nefasta ideologia do mercado. Então sim, a tecnologia sempre terá a ideologia consigo. Quer se goste, se perceba ou não.

Quando isso torna-se mais perceptível para o público leigo?

Um esforço massivo é feito de forma cotidiana para manter o público leigo alienado dessas questões. Não apenas com a tecnologia, mas no contexto geral. A tecnologia virou item de consumo e símbolo de status social. Há humanos vendendo órgãos para poder consumir um smartphone. Cerca de 85% dos humanos usam um sistema operacional baseado em Software Livres e sequer tem noção disso. Praticamente toda a infraestrutura da Internet está baseada em servidores, serviços, softwares e protocolos livres, mas isso não tem servido para tornar seus usuários mais independentes. Na verdade, a percepção do usuário leigo é sempre forçada para levá-lo o mais longe possível dos objetivos mercadológicos de controle, dependência e colonização. Os produtores de tecnologia são os países mais ricos com melhores centros educacionais e maiores investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Essa tecnologia então é vendida em forma de serviços com quase nenhuma transferência de conhecimento, mantendo os clientes, em geral sociedades menos desenvolvidas, dependentes e escravizadas de seus fornecedores. Simultaneamente as campanhas mercadológicas fazem os leigos se arrepiar de emoção, perderem noites de sono e enfrentarem filas quilométricas para adquirir a última versão de sua algema digital ou jaula tecnológica.

A ideologia atrapalha os avanços tecnológicos em algum sentido?

Claro que não. O que atrapalha é a insegurança de um sistema econômico falido que se sente aterrorizada com a possibilidade de perder o poder de manter seus usuários dependentes. Os maiores avanços da humanidade foram conquistados em ambientes colaborativos, onde o pensamento era enaltecido pela sua capilaridade, pelo seu alcance, pela sua forma de se fazer entender e servir como mais um grão de areia na construção do conhecimento. Mesmo em tempos modernos os centros de pesquisa e desenvolvimento clínico e médico é feito de forma colaborativa, livre e transparente para o benefício da unanimidade. Todos os sistemas judiciários do mundo são abertos, públicos e acessíveis, porque essa é a única forma de garantir que a justiça prevaleça. Por que com a tecnologia predomina o obscurantismo, o segredo, o código proprietário e as estratégias de colonização? O sistema operacional mais versátil, escalável e seguro do mundo, em pleno funcionamento em aeronaves, automóveis, elevadores, telefones, geladeiras e em toda sorte de sistemas de vigilância, controle de tráfego e muito mais, é livre. O sistema operacional GNU é o resultado da mais perfeita coesão entre ideologia libertária e conhecimento tecnológico.

Como o Brasil está inserido num contexto global quando o assunto é a criptografia?

A área de segurança criptográfica não é minha especialidade. Sei que há belas iniciativas de soluções autônomas para garantir nossa soberania, por parte do Exército Brasileiro. Mas há fragilidades enormes, em especial a submissão tecnológica aos modelos, protocolos e chaves de softwares internacionais, em especial dos Estados Unidos. Infelizmente vivemos momentos sombrios que estão colocando em xeque o pouco desenvolvimento tecnológico nacional. A criptografia envolvida.

Considera a privacidade a principal questão ética dos nossos dias?

O desconforto da quebra da privacidade foi vencido. Há uma década atrás, quando alertávamos para o Carnivore da CIA nos chamavam de conspiracionistas, alucinados, filhotes da Guerra Fria e paranoicos. Naquela época pensar em ser monitorado e vigiado 24 horas por dia era algo muito desconfortável, invasivo, repugnante. Não é mais. Em 2012 as revelações do Snowden provaram que as redes devassas – Facebook, Twitter, WhatsApp, Skype e Google (todas dos EUA) – sob ordens da NSA, promoviam a maior devassa massiva jamais impetrada por qualquer organização ou estado na história da humanidade. A escala é tamanha que faz qualquer proxy da China parecer brincadeira de criança. Até aquele momento os EUA negavam com veemência qualquer iniciativa do tipo. Depois das denúncias, o Rei estava nu, e não era mais necessário esconder suas ações, sequer para os governos aliados que também estavam na lista. Não consigo me convencer de que Snowden tenha agido de forma isolada, incentivado por um súbito ataque de humanismo. No meu ponto de vista ele esteve e continua estando a serviço do governo dos EUA.

Apesar de tudo, os números de adeptos às redes devassas só cresce, o número de empresas e governos fazendo uso de BigData para seus negócios só cresce e até mesmo o terceiro setor, apesar de mais consciente, tem aderido massivamente sob o argumento de que não tem nada a esconder. Quando se abre mão da privacidade como um direito individual, se permite o monitoramento coletivo, o perfilamento social e a concentração de poderes muito além do que deveria ser possível ser detido. Bons exemplos do uso sinistro desse poder são as bolhas de interesse, os algoritmos de combate ao chamado “fake news”, a ingerência proposital no humor dos usuários e a censura descarada de sítios contendo pensamentos econômicos antagônicos ao do mercado defendido pelas empresas donas das redes devassas. Infelizmente estamos vivendo o período de expansão e aprimoramento dos sistemas de vigilância e coleta de dados e levará algumas décadas para que consigamos, como sociedade, perceber seus malefícios e passemos a criar regulamentações efetivas.

Como avalia o chamado Marco Civil da Internet?

Essa é uma lei necessária para um estado democrático de direito capitalista. Os poderes de controle estão sempre alertas, mas no caso da Internet eles demoraram a perceber o seu potencial de aglutinação e organização social, de repasse de conhecimento e de formação de opinião. Quando despertaram, sua ânsia provocou movimentos impetuosos de controle, limitação e censura. O Marco Civil da Internet é um instrumento necessário para conter o ímpeto de acreditar que a internet se trata de “terra de ninguém” e que todo comportamento é válido. Trata-se de uma ação civil muito bem executada, que conseguiu aglutinar todos os atores, onde houve concessões importantes de todas as forças envolvidas. Não é perfeita, mas é considerada como modelo por personagens importantes como Tim Berners-Lee. O seu ponto mais fundamental foi garantir, legalmente, a neutralidade da rede, sem a qual a Internet deixa de ser terreno fértil para a inovação tecnológica. Infelizmente a prática mostra que nem sempre o mercado age de forma a manter essa neutralidade: o zero-rating, prática pela qual os provedores não consomem da franquia quando se acessam determinadas redes sociais, é um exemplo, porque a violação da neutralidade da rede também se da de forma financeira, ou seja, se for mais barato acessar o WhatsApp do que o riot.im está se rompendo a igualdade de condições.

A Academia já entendeu o valor do Software Livre para a sociedade?

Existem diversas iniciativas de valor na adoção e desenvolvimento de Softwares Livre pela Academia. Grandes universidades como PUC, URGS e UNICAMP são referência no entendimento tecnológico e filosófico do Software Livre. Existem, também, milhares de projetos menores sendo desenvolvidos em praticamente todas as universidades do país, mas com menos engajamento ideológico.

É espantosa a miopia acadêmica para entender o poder revolucionário do ponto de vista educacional permitido pelo acesso irrestrito ao código. Não se trata apenas de ter o software para realizar uma determinada tarefa, mas ter acesso à inteligência de como se faz isso, ou seja, quais os passos lógicos e matemáticos que realizam o trabalho. Esse é o verdadeiro valor do Software Livre. A Academia vive um sentimento dicotômico: liberdade de conhecimento x interesses privados. A prática de produzir conhecimento de ponta, mas publicar apenas o mínimo necessário para chamar a atenção de investidores e a submissão aos interesses do mercado, formando especialistas nas ferramentas proprietárias, são dois exemplos de como a Academia termina não valorizando o potencial do Software Livre, e consequentemente, não valorizando a si mesma. Então existem algumas ilhas de excelência, mas no geral, a Academia optou por se manter fiel ao mercado e suas ferramentas. Infelizmente.

Como se encontra a utilização do Software Livre em nosso país?

O uso no Brasil segue a tendência mundial de isolar o Software Livre nos servidores e infraestrutura de redes. O objetivo de “OSIficar” a forma de lidar com as tecnologias livres, apropriando-se dos benefícios do desenvolvimento colaborativo para reduzir custos e melhorar a qualidade dos softwares, sem empoderar o usuário final, atendendo os interesses do mercado é uma regra ampla usada nos dias atuais. Basicamente todo o mercado privado, organizações e governo usam Softwares Livres em alguma medida, pois não há como fugir do padrão da web, mas sempre confinado aos nichos de segurança, conectividade ou infraestrutura. Um outro uso massivo, no Brasil e no Mundo, está nos smartphones: mais de 87% de todos os aparelhos usam o sistema operacional Android, que usa um Kernel Linux. Apesar disso, não há nenhuma mudança substancial no comportamento ou no empoderamento do usuário final. Prova-se, então, que o argumento de que é necessário ter um volume grande de usuários para fazê-los mais livres não se sustenta. A verdadeira mudança não acontece pelo simples uso, mas pela conscientização da importância da liberdade do usuário. Ao longo do tempo o ativismo do Software Livre foi perdendo sua força ideológica, se deixando contaminar pelo pensamento mercantilista do Open Source. Assim suas comunidades, sempre ativas, transformaram-se em grupos no Facebook, seus líderes e representantes, foram contratados pelas gigantes da tecnologia sob regras de sigilo e impedidos de seguir seu ativismo. Esse movimento acabou com a pressão social do ativismo do Software Livre, reduzindo assim, o uso de soluções livres para uma série de serviços: onde antes se instalava um mailman, agora se cria um google-groups. Na minha percepção o aumento no uso do Software Livre é constante e só aumenta, mas passa despercebido por não ser necessário fazer grandes licitações e por não mobilizar mais os inexistentes grupos de ativismo. É um crescimento silencioso e portanto difícil de detectar.

Existe ética no mercado de tecnologia?

A ética é a mesma do mercado em geral: nenhuma. Há inúmeros exemplos que poderiam ser citados, inclusive dentro do ecossistema do Software Livre. É muito triste quando a inspiração para compartilhar com as pessoas é transformado em um bem ou produto com fins meramente comerciais. É muito triste quando toda a sociedade encara como natural e aceitável a total falta de correção como sendo “parte do jogo” ou “são só negócios” ou “eu faria o mesmo”. A humanidade vai precisar de alguns séculos para evoluir ao ponto onde a sociedade valha mais do que os negócios.

Quais os reais perigos de mensageiros e redes sociais como WhatsApp e Facebook?

Esses são dois representantes do que batizei de Redes Sociais Devassas. Elas enganam as pessoas, se dizendo seguras, que respeitam sua privacidade e que lhe prestam serviços extras para seu bem. Essas são ferramentas a serviço de um projeto de controle social em escala global. A coleta de dados massiva permite que os computadores façam perfilhamento social usando inteligência artificial, oferecendo aos seus controladores a capacidade de intervir nas timelines de grupos específicos mudando sua percepção da realidade, seus valores sociais, seu grau de tolerância e de intolerância para determinados assuntos. Revoluções podem ser impedidas, guerras civis podem ser incentivadas, governantes derrubados e novas percepções sobre temas como a democracia em si, podem ser reprogramadas.

É esse perfilamento que permite a criação das bolhas de interesse, feitas para conter um determinado assunto dentro de limites pré-determinados, permite também, definir o alcance de determinados assuntos. A mesma inteligência que é desenvolvida sob a desculpa de permitir a monetização da rede social, ou seja, o algoritmo que replica uma propaganda paga para o perfil contratado é o mesmo usado para filtrar conteúdo indesejado. Mas quem determina os assuntos desejáveis, permitidos ou não? O Facebook, por exemplo, é um “Estado ditatorial”. Tem poder de polícia, pode limitar sua liberdade, tem sistema judiciário para determinar o que é certo ou errado e tudo sob o controle de um único comandante não eleito. A moral usada para determinar o que é permitido ou o que é excessivo, fica a cargo de um grupo de pessoas do interior de Utah. Imagine qual é a sua percepção sobre a libertinagem sexual dos brasileiros, liberalização do aborto na Suécia, uso de burcas no Irã e a prisão de Guantánamo, para citar apenas alguns temas polêmicos. Um caso famoso foi a censura da conta do Ministério da Cultura pela publicação de fotos dos índios Botocudos, onde haviam seios à mostra. Assim o “Estado” do Facebook se sobrepõe, inclusive, às leis dos países onde atua.

Faz pouco tempo o Google colocou em funcionamento um algoritmo para combater o famoso “Fake news” com o argumento de manter os resultados de suas pesquisas mais confiável. Um dos resultados mais interessantes foi o bloqueio a sites de conteúdo de pensamentos de esquerda como o World Socialist Web Site, ou seja, na percepção estabelecida do mercado capitalista, o pensamento divergente do socialismo passa a ser encarado como falso. Esse é o grau de manipulação, em escala global, da qual estamos falando. É claro que a percepção individual e de seus pequenos grupos de amigos, família e colegas de trabalho ou estudo, não é essa. O que se percebe de imediato são os benefícios da comunicação barata e instantânea, o compartilhamento de fotos e vídeos, as mensagens com as melhores promoções e tudo gratuito ou a um preço muito baixo.

Trata-se de uma armadilha e quase toda a humanidade conectada caiu nela, não conseguem perceber os riscos e está convencida de que é assim que deve ser. Se os poderes sinistros souberem dosar seu ímpeto de controle e manipulação, dificilmente essa relação será rompida. A melhor analogia para descrever esse cenário é a proposta no filme Matrix, só que sem a parte física, não estamos entubados em bolhas reais, estamos sendo mantidos em bolhas digitais. Existem redes sociais livres e federadas: Diáspora, riot.im, gnusocial, mastodon e muitas outras. O problema é que nenhuma delas é tão viciante quando as devassas, exatamente por respeitar sua privacidade. Sem perfilar não há indicação de melhores amigos nem propagandas direcionadas. Isso tende a desagradar os viciados.

Em que está trabalhando neste momento?

Faço parte da equipe técnica do Portal da Transparência da Prefeitura de João Pessoa, organizo um evento anual de tecnologia chamado EXPOTEC – expotec.org.br, coordeno o Projeto JUNTS de inclusão Digital – junts.com.br e sou membro do coletivo #ultraGNU, que foi criado há alguns anos para defender a filosofia do software livre, buscando fazer uma separação clara entre o pensamento Software Livre e Open Source. Convido a todos a fazerem parte do #ultraGNU pelo Telegram ou Riot.im, basta procurar por @ultragnu nas duas ferramentas.

Última atualização da matéria foi há 2 anos


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